sábado, 29 de novembro de 2014

Estado Babá X Estado Madrasta



Experimenta procurar uma tomada num banheiro inglês. Vai perder seu tempo. Tirando uma de formato especial para carregar o barbeador elétrico, não existem tomadas em banheiros por aqui. É ilegal. O dono da casa não ganha o habite-se e nem vende a propriedade, se tiver a tomada. Se algum acidente acontecer e ficar provado que tinha a ver com a tomada ilegal, o proprietário responde a um processo criminal. Por quê? Porque o Estado quer prevenir acidentes. O cidadão desavisado pode querer secar o cabelo e tomar um banho ao mesmo tempo e acabar virando torrada. 

Os pubs, como são chamados os bares ingleses, precisam de uma licença para vender bebida. A licença limita o horário de funcionamento do pub e determina a hora em que o estabelecimento deve fechar. O dono do pub toca um sino, dez, vinte minutos antes de encerrar a venda de álcool. Aí, meu amigo, é o estouro da boiada. Pavlov, se pudesse ver a cena, salivaria de prazer. Os frequentadores de pub reagem condicionadíssimos ao sinal. Correm para o balcão e compram tantos copos de cerveja, quantos eles conseguem carregar. Aqui não tem copo lagoinha para beber cerveja. Ela é servida em pints, um copão de mais de meio litro. 568,26 ml para ser exata. Os fregueses não se importam que a bebida não esteja gelada. Aliás, o conceito de bebida gelada é uma coisa que eles ainda não alcançaram. Tenho esperança de que um dia eles ainda cheguem lá. Enquanto isso, bebem e servem refrigerantes, sucos, água e cerveja em temperatura ambiente. Cheers!  

Além do desespero para comprar o último trago, a decisão de marcar hora para fechar os pubs provoca outro fenômeno tipicamente inglês: a hora do rush dos bebuns. Claro, né? Saem todos alegrinhos e altinhos na mesma hora. Por que não se pode ficar bebendo no pub à noite, em dia da semana, até a hora em que o freguês ou o dono do bar quiser? Porque o Estado quer combater o alcoolismo e os chamados comportamentos antissociais agressivos. 

Sabe qual é a última? A discussão de um projeto de lei que proíbe que se fume dentro de carros, que transportem crianças. Se a lei passar, o motorista não vai poder fumar dentro do próprio carro, se tiver uma criança presente. Fumar é proibido em lugares públicos fechados. Por quê? Porque o Estado quer proteger o pulmão do cidadão. *

Tomadas em banheiro, horário dos pubs e fumantes são apenas três itens de uma lista interminável de proibições e regulações que renderam ao Estado Britânico o apelido de ‘Nanny State’. O Estado babá. Cada um dos pontos listados acima é passível de debate. Não é nem preciso se esforçar muito para entender a motivação por trás deles. Mas é o papel do Estado? Até que ponto o Estado deve, ou pode se intrometer na vida do cidadão? Quem é que demarca esses limites? É excesso de controle público sobre o privado? O cidadão não seria capaz de fazer suas próprias escolhas? Que fim levou o bom senso? 

A filhinha de uma amiga estava balançando a cadeira para trás, perdeu o equilíbrio, caiu de costas e bateu a cabeça. Chorou, ganhou colo da mãe e passou o dia bem. À noite, começou a vomitar. Assustada, a mãe pensou que talvez fosse por causa da queda e a levou para o pronto socorro. Já era tarde, o plantão estava movimentado. Elas tiveram que esperar mais de duas horas para serem atendidas. A menina vomitando. Quando finalmente foram recebidas por um médico, ele perguntou o que tinha acontecido. Ouviu em silêncio e perguntou ao final da história:
- Que horas ela caiu? Você viu a queda?  

Minha amiga disse que havia sido pela manhã e que não tinha visto, porque a menina brincava no quintal, enquanto ela tinha ido à cozinha buscar qualquer coisa. Antes de examinar a criança, o médico disse que teria que acionar o serviço social. Por quê? Porque o acidente havia acontecido de manhã e a mãe só tinha levado a criança ao hospital à noite. Além disso, ela não tinha presenciado a queda. Você negou socorro a uma criança que ainda por cima estava desacompanhada!  Ele deu seu veredito à mãe atônita. Desnecessário dizer o estresse que a família passou. Quanto à menina, ela tinha sofrido uma indisposição estomacal. Mais nada. 

A cunhada de uma vizinha teve um bebê. Marinheira de primeira viagem. Feliz da vida. Quando o menino tinha poucas semanas de vida, ela notou um roxinho no rosto dele. Levou-o ao hospital. Eles fizeram uma tomografia de cabeça e encontraram uma pequena fratura. A criança foi imediatamente tirada da mãe. Um trauma enorme, ela ainda estava amamentando. Os pais recorreram e só puderam levar o bebê para casa, dois meses depois, porque a avó da criança se comprometeu a viver com a família e ser a guardiã do menino. A mãe não podia sequer carregar o bebê sem a presença da sogra. A família pediu uma revisão do processo. Negado. Os pais então contrataram um advogado, que pediu um parecer de outro médico. No fim das contas, o bebê não tinha fratura nenhuma na cabeça. O que aconteceu foi que, na hora do exame, ele se mexeu . O que parecia uma fratura, na verdade era um tremido na imagem. Apesar do erro, esta família está ‘fichada’ para sempre. A mãe vive apavorada que tomem seu filho novamente.

 
"Baby P"


Esse anjinho de olhos azuis escuros como a noite, morreu em 2007 aos 17 meses. Peter Connelly era o saco de pancadas da mãe, do namorado dela e do irmão do namorado. A autópsia revelou que o bebê tinha mais de 50 ferimentos pelo corpo. Durante a curta vida dessa criança, ela foi atendida inúmeras vezes por médicos e assistentes sociais. A mãe era uma mulher extremamente manipuladora, que se passava por uma pessoa amorosa. Quando o caso veio à tona, vários assistentes sociais, médicos e políticos foram desgraçados, escorraçados pela mídia e opinião pública. O caso Baby P, como ficou conhecido, mudou a cultura da assistência social neste país. 

No Reino Unido existe o ‘Children Act’ um conjunto de leis que visa salvaguardar a integridade das crianças. Se o Estado considerar que a criança está em risco, ela poderá ser colocada para adoção, mesmo sem o consentimento dos pais. São as chamadas adoções forçadas. Este tipo de adoção aumentou 20% entre 2013 e 2014. Em média cinco crianças são adotadas por este sistema todos os dias. 

Este modelo de intervenção radical é bancado por uma instituição de caridade chamada Barnardo’s, cuja missão é proteger crianças vítimas de violência doméstica. A Barnardo’s é a maior instituição de caridade de crianças, em termos do volume de capital que movimenta - cerca de 770 milhões de reais por ano.  


A instituição existe desde 1866. Foi criada por um irlandês chamado Thomas Barnardo. Seu trabalho começou dando abrigo e educação aos órfãos de um surto de cólera, numa área de Londres onde hoje em dia ficam os teatros de musicais. No ano de sua morte, 1905, a Barnardo’s cuidava de 8.500 crianças em 96 localidades. Suas boas ações, contudo, eram cercadas de polêmica. O irlandês foi acusado mais de uma vez de raptar as crianças. Ou seja, tirava-as à força das famílias, que ele achava inadequadas. Ele teria chegado ao extremo de ‘fabricar’ fotos destas crianças. Em estilo antes e depois. Ele fazia as crianças parecerem piores e mais sujas, nas fotos do ‘antes’. As fotos do ‘depois’ de sua intervenção eram bem melhores. Ele admitiu a farsa  e o uso de métodos agressivos, mas justificou: eram “abduções filantrópicas”. O jeitinho pedante de dizer que os fins justificam os meios.
 

Quase um século e meio depois, a Barnardo’s continua a defender o que eles chamam de intervenção drástica. A ideologia baseia-se em casos extremos como o de Peter Connelly. O argumento é que essas crianças têm que ser protegidas a qualquer custo e quanto antes elas forem separadas de suas famílias violentas ou negligentes, melhor para elas. Menor é o estrago. 

Esta ideologia é compartilhada por vários ‘Councils’ na Inglaterra. O Council é uma espécie de prefeitura. É responsável pelo serviço de assistência social às famílias e crianças. A questão é que a ‘construção’ dos casos que justificam as adoções forçadas fica a cargo dos assistentes sociais. Os critérios são subjetivos. Famílias, que lutam na Justiça para terem os filhos de volta, argumentam que muitas vezes os fatos são reais, mas são manipulados e retratados de uma maneira extremamente desfavorável.
O Children Act e a adoção forçada criam um cenário kafkaniano. Fornecem a justificativa legal para que crianças que ainda nem nasceram sejam postas para adoção, mesmo contra a vontade dos pais! Isso mesmo. Na prática, os pais são punidos por um crime que sequer cometeram. É o caso de um casal de adolescentes que fugiu da Inglaterra, para evitar que a criança fosse tirada deles depois do parto. A mãe da criança foi colocada em uma casa de acolhida, porque o Estado julgou que seus pais não tinham condições de criá-la. Aos dezenove anos, ela engravidou de um colega de sala. Os dois tiveram uma discussão quente. A polícia foi chamada. Como a moça já era figura conhecida do sistema, as luzes de alerta se acenderam e ela perdeu a guarda da criança, que carregava em seu ventre**. É bom deixar claro que esta é a versão apresentada pela moça e que não tive acesso ao processo, que determina a adoção forçada. Ou seja, só estou contando um lado da história.


O governo defende suas ações. Diz que nenhuma criança é afastada dos pais, sem que haja evidências claras e sólidas para que isso aconteça. É difícil comentar os casos, sem saber os detalhes. É fácil tirar conclusões apressadas e inflamadas. Se o trabalho tivesse sido bem feito no caso de Baby P, talvez o menino estivesse vivo. Ser assistente social nesta ilha é um trabalho arriscado. Os profissionais estão sofrendo uma pressão enorme do público e da mídia. Dados divulgados essa semana revelam que o número de crianças, que estão aos cuidados do Estado, é  o maior dos últimos vinte e cinco anos.  Fica a sensação de que algumas decisões são tomadas sem levar em conta o que é melhor para a criança e sim o que é mais seguro para as instituições.


A linha que separa o ‘Nanny State’, o Estado babá, de o que eu chamo de ‘Stepmother State’, o Estado madrasta, é  tênue demais para o meu gosto.




* A lei foi aprovada 

 ** Aqui vai o link de um especial sobre o tema, feito pela Rádio BBC 4: http://www.bbc.co.uk/programmes/b03pjf3z

 


  

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