Experimenta
procurar uma tomada num banheiro inglês. Vai perder seu tempo. Tirando uma de
formato especial para carregar o barbeador elétrico, não existem tomadas em
banheiros por aqui. É ilegal. O dono da casa não ganha o habite-se e nem vende
a propriedade, se tiver a tomada. Se algum acidente acontecer e ficar provado
que tinha a ver com a tomada ilegal, o proprietário responde a um processo
criminal. Por quê? Porque o Estado quer prevenir acidentes. O cidadão
desavisado pode querer secar o cabelo e tomar um banho ao mesmo tempo e acabar
virando torrada.
Os pubs,
como são chamados os bares ingleses, precisam de uma licença para vender
bebida. A licença limita o horário de funcionamento do pub e determina a hora
em que o estabelecimento deve fechar. O dono do pub toca um sino, dez, vinte
minutos antes de encerrar a venda de álcool. Aí, meu amigo, é o estouro da
boiada. Pavlov, se pudesse ver a cena, salivaria de prazer. Os frequentadores
de pub reagem condicionadíssimos ao sinal. Correm para o balcão e compram
tantos copos de cerveja, quantos eles conseguem carregar. Aqui não tem copo
lagoinha para beber cerveja. Ela é servida em pints, um copão de mais de meio
litro. 568,26 ml para ser exata. Os fregueses não se importam que a bebida não
esteja gelada. Aliás, o conceito de bebida gelada é uma coisa que eles ainda
não alcançaram. Tenho esperança de que um dia eles ainda cheguem lá. Enquanto
isso, bebem e servem refrigerantes, sucos, água e cerveja em temperatura ambiente.
Cheers!
Além do
desespero para comprar o último trago, a decisão de marcar hora para fechar os
pubs provoca outro fenômeno tipicamente inglês: a hora do rush dos bebuns.
Claro, né? Saem todos alegrinhos e altinhos na mesma hora. Por que não se pode
ficar bebendo no pub à noite, em dia da semana, até a hora em que o freguês ou
o dono do bar quiser? Porque o Estado quer combater o alcoolismo e os chamados
comportamentos antissociais agressivos.
Sabe qual
é a última? A discussão de um projeto de lei que proíbe que se fume dentro de
carros, que transportem crianças. Se a lei passar, o motorista não vai poder
fumar dentro do próprio carro, se tiver uma criança presente. Fumar é proibido
em lugares públicos fechados. Por quê? Porque o Estado quer proteger o pulmão
do cidadão. *
Tomadas
em banheiro, horário dos pubs e fumantes são apenas três itens de uma lista
interminável de proibições e regulações que renderam ao Estado Britânico o
apelido de ‘Nanny State’. O Estado babá. Cada um dos pontos listados acima é
passível de debate. Não é nem preciso se esforçar muito para entender a
motivação por trás deles. Mas é o papel do Estado? Até que ponto o Estado deve,
ou pode se intrometer na vida do cidadão? Quem é que demarca esses limites? É
excesso de controle público sobre o privado? O cidadão não seria capaz de fazer
suas próprias escolhas? Que fim levou o bom senso?
A
filhinha de uma amiga estava balançando a cadeira para trás, perdeu o
equilíbrio, caiu de costas e bateu a cabeça. Chorou, ganhou colo da mãe e
passou o dia bem. À noite, começou a vomitar. Assustada, a mãe pensou que
talvez fosse por causa da queda e a levou para o pronto socorro. Já era tarde,
o plantão estava movimentado. Elas tiveram que esperar mais de duas horas para
serem atendidas. A menina vomitando. Quando finalmente foram recebidas por um
médico, ele perguntou o que tinha acontecido. Ouviu em silêncio e perguntou ao
final da história:
- Que
horas ela caiu? Você viu a queda?
Minha
amiga disse que havia sido pela manhã e que não tinha visto, porque a menina
brincava no quintal, enquanto ela tinha ido à cozinha buscar qualquer coisa.
Antes de examinar a criança, o médico disse que teria que acionar o serviço
social. Por quê? Porque o acidente havia acontecido de manhã e a mãe só tinha
levado a criança ao hospital à noite. Além disso, ela não tinha presenciado a
queda. Você negou socorro a uma criança que ainda por cima estava desacompanhada!
Ele deu seu veredito à mãe atônita. Desnecessário
dizer o estresse que a família passou. Quanto à menina, ela tinha sofrido uma
indisposição estomacal. Mais nada.
A cunhada
de uma vizinha teve um bebê. Marinheira de primeira viagem. Feliz da vida. Quando
o menino tinha poucas semanas de vida, ela notou um roxinho no rosto dele.
Levou-o ao hospital. Eles fizeram uma tomografia de cabeça e encontraram uma
pequena fratura. A criança foi imediatamente tirada da mãe. Um trauma enorme,
ela ainda estava amamentando. Os pais recorreram e só puderam levar o bebê para
casa, dois meses depois, porque a avó da criança se comprometeu a viver com a
família e ser a guardiã do menino. A mãe não podia sequer carregar o bebê sem
a presença da sogra. A família pediu uma revisão do processo. Negado. Os pais então
contrataram um advogado, que pediu um parecer de outro médico. No fim das
contas, o bebê não tinha fratura nenhuma na cabeça. O que aconteceu foi que, na
hora do exame, ele se mexeu . O que parecia uma fratura, na verdade era um
tremido na imagem. Apesar do erro, esta família está ‘fichada’ para sempre. A
mãe vive apavorada que tomem seu filho novamente.
Esse
anjinho de olhos azuis escuros como a noite, morreu em 2007 aos 17 meses. Peter
Connelly era o saco de pancadas da mãe, do namorado dela e do irmão do
namorado. A autópsia revelou que o bebê tinha mais de 50 ferimentos pelo corpo. Durante
a curta vida dessa criança, ela foi atendida inúmeras vezes por médicos e
assistentes sociais. A mãe era uma mulher extremamente manipuladora, que se
passava por uma pessoa amorosa. Quando o caso veio à tona, vários assistentes
sociais, médicos e políticos foram desgraçados, escorraçados pela mídia e
opinião pública. O caso Baby P, como ficou conhecido, mudou a cultura da
assistência social neste país.
No Reino
Unido existe o ‘Children Act’ um conjunto de leis que visa salvaguardar a
integridade das crianças. Se o Estado considerar que a criança está em risco, ela
poderá ser colocada para adoção, mesmo sem o consentimento dos pais. São as
chamadas adoções forçadas. Este tipo de adoção aumentou 20% entre 2013 e 2014. Em média cinco crianças são adotadas por este sistema todos os dias.
Este
modelo de intervenção radical é bancado por uma instituição de caridade chamada
Barnardo’s, cuja missão é proteger crianças vítimas de violência doméstica. A
Barnardo’s é a maior instituição de caridade de crianças, em termos do volume de capital
que movimenta - cerca de 770 milhões de reais por ano.
A instituição existe desde 1866. Foi criada por um irlandês chamado Thomas Barnardo. Seu trabalho começou dando abrigo e educação aos órfãos de um surto de cólera, numa área de Londres onde hoje em dia ficam os teatros de musicais. No ano de sua morte, 1905, a Barnardo’s cuidava de 8.500 crianças em 96 localidades. Suas boas ações, contudo, eram cercadas de polêmica. O irlandês foi acusado mais de uma vez de raptar as crianças. Ou seja, tirava-as à força das famílias, que ele achava inadequadas. Ele teria chegado ao extremo de ‘fabricar’ fotos destas crianças. Em estilo antes e depois. Ele fazia as crianças parecerem piores e mais sujas, nas fotos do ‘antes’. As fotos do ‘depois’ de sua intervenção eram bem melhores. Ele admitiu a farsa e o uso de métodos agressivos, mas justificou: eram “abduções filantrópicas”. O jeitinho pedante de dizer que os fins justificam os meios.
Quase um
século e meio depois, a Barnardo’s continua a defender o que eles chamam de
intervenção drástica. A ideologia baseia-se em casos extremos como o de Peter
Connelly. O argumento é que essas crianças têm que ser protegidas a qualquer
custo e quanto antes elas forem separadas de suas famílias violentas ou
negligentes, melhor para elas. Menor é o estrago.
Esta
ideologia é compartilhada por vários ‘Councils’ na Inglaterra. O Council é uma
espécie de prefeitura. É responsável pelo serviço de assistência social às
famílias e crianças. A questão é que a ‘construção’ dos casos que justificam as
adoções forçadas fica a cargo dos assistentes sociais. Os critérios são subjetivos.
Famílias, que lutam na Justiça para terem os filhos de volta, argumentam que
muitas vezes os fatos são reais, mas são manipulados e retratados de uma
maneira extremamente desfavorável.
O
Children Act e a adoção forçada criam um cenário kafkaniano. Fornecem a justificativa legal para que crianças que ainda nem nasceram sejam postas para adoção, mesmo contra a vontade dos pais! Isso mesmo. Na
prática, os pais são punidos por um crime que sequer cometeram. É o caso de um
casal de adolescentes que fugiu da Inglaterra, para evitar que a criança fosse
tirada deles depois do parto. A mãe da criança foi colocada em uma casa de
acolhida, porque o Estado julgou que seus pais não tinham condições de criá-la.
Aos dezenove anos, ela engravidou de um colega de sala. Os dois tiveram uma
discussão quente. A polícia foi chamada. Como a moça já era figura conhecida do
sistema, as luzes de alerta se acenderam e ela perdeu a guarda da criança, que
carregava em seu ventre**. É bom deixar claro
que esta é a versão apresentada pela moça e que não tive acesso ao processo,
que determina a adoção forçada. Ou seja, só estou contando um lado da história.
* A lei foi aprovada
** Aqui vai o link de um especial sobre o tema, feito pela Rádio BBC 4: http://www.bbc.co.uk/programmes/b03pjf3z
O governo defende suas ações. Diz que nenhuma criança é afastada dos pais, sem que haja evidências claras e sólidas para que isso aconteça. É difícil comentar os casos, sem saber os detalhes. É fácil tirar conclusões apressadas e inflamadas. Se o trabalho tivesse sido bem feito no caso de Baby P, talvez o menino estivesse vivo. Ser assistente social nesta ilha é um trabalho arriscado. Os profissionais estão sofrendo uma pressão enorme do público e da mídia. Dados divulgados essa semana revelam que o número de crianças, que estão aos
cuidados do Estado, é o maior dos últimos vinte e cinco anos. Fica a sensação de que algumas decisões são tomadas sem levar em conta o que é melhor para a criança e sim o que é mais seguro para as instituições.
A linha que separa o ‘Nanny State’, o Estado babá, de o que eu chamo de ‘Stepmother State’, o Estado madrasta, é tênue demais para o meu gosto.
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