domingo, 31 de maio de 2015

Com as canelas de fora






Na versão inglesa do website de um hotel francês,que visitamos alguns verões atrás,  um aviso em letras garrafais: ‘Homens não poderão usar a piscina, se estiverem vestindo short. É uma questão de higiene’.



A mensagem era clara e tinha um alvo certo, os turistas ingleses. Na França, os homens nadam de ‘speedos’ (do mesmo jeito que a gente chama barbeador de gilete, sunga em inglês é speedo). Na Inglaterra, de short e bermuda. Vi uma mensagem espelhada (que mostra exatamente o oposto) no site de um parque temático inglês. Os rapazes eram ‘convidados’ a usar bermudas e shorts, para preservar a decência do estabelecimento. Comentei sobre o assunto com as minhas amigas inglesas, que se disseram incomodadas com a sunga. Uma delas disse: credo, ficar vendo as coisas balançando e os cabelos saindo do calção. Não é nada bonito.




Confesso que nunca tinha pensado no caso sob esta ótica.
 

 
Rapazes caridosos
arquivo pessoal





Sempre tem alguma coisa interessante acontecendo em Londres, especialmente no fim da primavera, começo do verão, a cidade ferve. No fim-de-semana retrasado, as ruas que circulam o St. James Park até o palácio da rainha foram fechadas para uma série de corridas de uma milha. Paralelo ao evento, topei com os rapazes da foto acima, com muita pele descoberta. Eles estavam angariando fundos para uma instituição de caridade. Eu estava tão ocupada tirando as fotos, que não saberia dizer qual. Mas aqui funciona assim. Digamos que você queira arrecadar fundos para o lar dos velhinhos por exemplo. Ao invés de sair pedindo dinheiro para a causa, você diz: quanto você me dá para eu correr seminu pelo centro de Londres? Ou, quanto você me dá para cada quilômetro que eu correr e assim por diante. O fato é que esses moços caridosos pararam o trânsito, os pedestres e foram fotografados por uma legião de turistas. Uma cena impensável na virada do século vinte, quando roupa de banho ainda era uma raridade, disponível apenas para os mais ricos. Melhor contar essa história do princípio.
 
 
 
Modelo de 1890 - arquivo pessoal



Até meados do século dezenove, só os homens nadavam. Escondidos em praias exclusivas para eles. Claro que estou falando desta ilha, onde o clima nada tropical não colabora. Depois, os banhos de mar passam a ser encarados como atividade física, quase que medicinal. A ideia era se molhar, nadar um pouco e sair. Tomar sol não estava em questão. Aliás, as pessoas de pele bronzeada eram as que trabalhavam nos campos, os pescadores, os plebeus. A pele branca era sinônimo de riqueza. Hoje em dia, os branquelos são os que vivem trancafiados nos escritórios sem tempo, nem dinheiro, para umas férias à beira mar. Sinal dos tempos.

 
  
Modelo de 1890
Copyright: Leicestershire County Council Museums Service
 
 
 

As mudanças na sociedade e na forma de viver ficam evidentes na exposição Riviera Style, no Fashion and Textile Museum em Londres – um museu charmosinho escondido numa ruela perto da estação de London Bridge. As primeiras peças da mostra são as roupas de banho femininas. Na virada do século vinte, as mulheres começam a ir à praia. Já imaginou nadar com o modelito acima, feito de lã, usando uma cinta por baixo e meias pretas?  O tecido era pesado e coçava horrores quando molhado. Tudo em nome da moral e bons costumes da época.
 
 
 
Modelos masculinos
arquivo pessoal
 
 
 
Para ficar de acordo com o decoro da época, os homens também tinham que cobrir o peito na praia, uma lei que só foi abolida em 1930. Os cintos não eram meramente estéticos, eles evitavam que o maiô virasse um ‘balão’ na água.
Quem já passou pela Itália no meio do mês de agosto deve ter se surpreendido com algumas cidades totalmente desertas. Culpa do Ferragosto, um feriado nacional, porque ninguém é ferro e todo mundo precisa descansar um pouco na praia. O país para literalmente. Um problema para os velhinhos, que não viajam e não têm onde sequer comprar comida. Nesta Ilha distante do Mediterrâneo, na década de trinta muitas fábricas seguiam o exemplo italiano e fechavam suas portas durante uma semana no verão. Nascia assim o conceito de férias!  E, de brinde, a moda praia.
 
 
 
Promessa de dias luxuosos
© King & McGaw
 
 
 
O ‘pulo do gato’ foi popularizar as férias à beira mar e ao mesmo tempo vender a ideia de que era um luxo e exclusivo para poucos. Neste ponto parece que as coisas não mudaram tanto assim. A internet está cheia de websites que prometem exatamente a mesma coisa, com uma linguagem diferente. Se antes da guerra o chique era ir até à costa, hoje em dia é viajar para a Austrália, ou se banhar nos hotéis de luxo em Dubai.

 
Pijamas de Praia
arquivo pessoal
 
 
 
De volta aos anos 30, um bom exemplo da nova moda, que sonha com dias ensolarados, eram os pijamas estampados, que as ricas e famosas usavam antes da guerra, desfrutando coquetéis quase tão exóticos quanto as estampas. Uma excentricidade de vida curta. Os tempos mudaram drasticamente. Durante a Segunda Guerra não havia clima e nem dinheiro para coquetéis e moda praia. Foi um período dormente, que despertou com força no final da década de quarenta e cinquenta, com uma revolução nos materiais. Os maiôs de lã desapareceram. Vieram os de elásticos e as fibras industriais ficavam cada vez mais sofisticadas, abrindo caminho para os modelos que revelam o contorno do corpo.
 
 
 
Anos 40 e 50
arquivo pessoal


 
Nos anos 50 e 60, os concursos de beleza se popularizam. Os desfiles de maiô são destaque. Os modelos estruturados, de lastex, buscam inspiração nos corpetes. No fim dos 60 uma  nova revolução de costumes está no ar. Menos estrutura e estampas psicodélicas. Os biquínis, que existiam na França desde 1946,  só começaram a aparecer nas praias daqui na década de 60. Dez anos depois, se tornam mais populares do que nunca.
 
 
 
Modelito de Miss
arquivo pessoal
Modelo com bolso
arquivo pessoal

Anos 70
© Leicestershire County Council Museums Service



 A grande diferença, de acordo com o estilista David Sassoon, é que na década de 50 as moças queriam se parecer com suas mães, nas décadas seguintes, as mães querem se parecer com as filhas.
 
 
 
Modelos cavados nos anos 80
arquivo pessoal

 
 
 
Chegam os anos 80 das mulheres profissionais e poderosas. Saem os modelos estampados, os decotes ficam profundos e as cavas altas.


No novo milênio, a ênfase nos tecidos é maior, assim como a preocupação com um bronzeado bonito. A Speedo, aquela empresa australiana das sungas, lança um maiô de natação que ajuda a quebrar recordes de velocidade.

 
2000 Novos tecidos
 
 
 
Brasil, Austrália, Estados Unidos e Inglaterra se firmam como os centros que lançam a moda praia. Aos poucos os biquínis ficam maiores. Saem as tanguinhas e surgem os shortinhos. É a moda praia se ajustando aos novos padrões de corpo, cada vez mais gordinhos.

 

Modelos que cobrem mais
arquivo pessoal

 
 
 
Sabe aquelas situações  em que a gente está sozinha e adoraria ter alguém para dividir um momento? Pois é, aconteceu comigo quando caminhava numa praia da Tailândia. Vi uma senhora italiana, que já tinha passado faz tempo dos 60. Ela usava um chapelão, muitas correntinhas de ouro com penduricalhos e a calcinha do biquíni. O sutiã, tenho a impressão, ela deve ter se esquecido de por na mala. Uma figuraça! Estava olhando para ela, quando percebi que ela tinha os olhos fixos no mar e o queixo caído. Virei o rosto para ver o que ela estava olhando e vi um casal de mulçumanos quebrando as ondas, em direção à praia. Ele usava uma bermuda. Ela uma burca preta. Só o rosto estava à mostra. Tive que parar para ver melhor aquele choque de culturas, doida pra ter com quem dividir a cena.




Burkini
arquivo pessoal




Uma das últimas peças da exposição em Londres é um burkini. O nome diz tudo: um híbrido de burca com biquíni. Um modelo que ficou famoso quando a chef Nigella Lawson foi se banhar na Austrália, vestindo um deles. O burkini cobre mais o corpo do que o modelo feito de lã do começo deste post. Talvez a moda pegue entre as mulçumanas da Tailândia e elas possam nadar com mais conforto. Afinal, a grande diferença entre o modelo de 1900 e o burkini está no tecido, leve e confortável. O que leva a pensar que a tecnologia pode estar evoluindo constantemente, mas os modelos vão sempre refletir um determinado momento histórico. O que nossos tataranetos vão dizer de nós?




segunda-feira, 25 de maio de 2015

Arco-íris retumbante






Bandeira do orgulho gay


 
 
 
Tive um encontro inesquecível durante um evento sobre meninos de rua, promovido pela Unicef em São Paulo. Foi com uma das representantes do órgão no Brasil. Pior é que não me lembro do nome dela (uma injustiça da minha memória). Eu disse que admirava o trabalho que eles estavam fazendo e perguntei se ela honestamente acreditava que um dia não veríamos mais crianças vivendo nas ruas de São Paulo. Ela respondeu que sim e acrescentou: às vésperas da abolição da escravatura no Brasil, se alguém dissesse que os escravos seriam libertados, pouca gente acreditaria. As mudanças acontecem. Infelizmente quase nunca no passo que gostaríamos. Mas elas acontecem. Quando leio as notícias do dia e fico com vontade de chorar de desânimo e tristeza, penso neste breve encontro de anos atrás.

 

Pensei nesta mulher mais uma vez no fim-de-semana. Os irlandeses, frequentemente taxados de católicos retrógrados, votaram um ‘big fat yes’ , um sim com letra maiúscula, para a legalização do casamento gay. Dezenove países já atravessaram essa ponte, mas foi a primeira vez em que o assunto foi definido pelo voto popular, através de um referendo. O voto não era obrigatório, mas ainda sim o comparecimento às urnas foi alto (passou dos 60%). Muitos irlandeses, que não moram mais na Irlanda, fizeram questão de voltar ao país só para votar. O resultado não poderia ser mais claro: 62.1%  ( mais de 70% em Dublin) disseram que queriam que a constituição fosse alterada, para legalizar o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo. O não venceu em apenas um pequeno distrito eleitoral numa área rural.

 
 


Cartaz de Campanha
 
 
 
 

O jornal 'The Independent' publicou um artigo escrito por um ativista irlandês homossexual, às vésperas da votação. No texto, Ross Golden Bannon narra as dificuldades que passou durante a campanha pelo sim, batendo de porta em porta, pedindo apoio para a legalização do casamento gay. Ele fala do inferno de crescer ‘diferente’ num país católico e conservador, dos desvios que tinha que tomar para ir comprar alguma coisa, para não ter que topar com adolescentes que, na certa, iriam humilhá-lo. Para Ross, cada não que ele recebeu doeu muito. Uma nação inteira iria decidir se ele era ou não igual aos outros. Embora sem gostar, ele sabia que era parte do jogo.

 

Um jogo arriscado. Não faz muito tempo, precisamente em 1987, os irlandeses participaram de um referendo para decidir se o divórcio deveria ser ou não legal. O não venceu naquela ocasião. O sim desta vez indica que no espaço de apenas uma geração a sociedade irlandesa passou por uma transformação profunda.  O resultado do plebiscito mostra que a rachadura da igreja católica num dos países mais conservadores deste lado da Europa é enorme. O abuso sistemático praticado por padres pedófilos e sádicos durante anos (e com o conhecimento do alto clero irlandês) agora paga seu preço. A igreja católica foi o poder mais influente nos primeiros sessenta anos da República da Irlanda, moldando governos e ditando regras culturais, morais e políticas no país.

 

O plebiscito mostrou que o país não é mais o mesmo. O arcebispo irlandês Diarmuid Martin votou contra, ainda que afirmando que os direitos dos gays deveriam ser respeitados. Agora ele diz que a igreja católica em seu país precisa de um choque de realidade. Ele reconhece que a igreja deve tentar se reconectar com os jovens para reconquistar seu papel de autoridade moral e cultural da Irlanda. Ele se disse intrigado com o fato de que a maioria dos cidadãos que votaram sim passou doze anos estudando em escolas católicas e concluiu: a nossa mensagem não está sendo ouvida.

 

Há os que argumentam que outra pá de cal no poder da igreja católica na Irlanda foi a entrada do país na comunidade europeia -  uma poderosa alavanca econômica, que levantou o país da pobreza a um dos mais prósperos da Europa. Com a prosperidade, chegaram imigrantes e novas formas de ver o mundo. Em 1995, o divórcio foi aprovado em outro referendo. Dois anos antes, em 1993 o homossexualismo foi descriminalizado, 30 anos depois do Reino Unido.






Irlanda e Irlanda do Norte se separaram na década de 20 do século passado. A Irlanda do Norte preferiu continuar como parte da Grã-bretanha.  As disputas entre os dois países até hoje não foram totalmente remediadas, mas este é assunto para outra hora. Os outros países do Reino Unido (Inglaterra, Escócia e País de Gales) aprovaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A Irlanda do Norte se recusou a discutir o assunto. Diz que a União Civil está de bom tamanho e que casamento é só entre homens e mulheres. Qual será o peso do referendo no país vizinho sobre a questão, só tendo uma bola de cristal para saber. 
 

 

Até os anos 70 na Irlanda, a servidora pública que se casasse tinha que deixar o emprego. Era a lei. Falando em lei, até 1980, a camisinha era ilegal na Irlanda. Fico chateada de não me lembrar do nome e nem do rosto da mulher com quem falei rapidamente naquele evento em São Paulo no século passado. Pelo menos não me esqueci de sua mensagem. Mulher sabida aquela.

 

 

 

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Mind the Gap


* Da Gaveta 

 

Essa coisa chamada meia-estação-primavera-verão na Inglaterra é bem engraçada. Dizem que o tempo muda. Tudo bem é verdade que você olha pela janela às oito da noite e está claro ainda. Às sete e meia começa a escurecer. O céu então fica lindo. Num tom de azul marinho que faz lembrar um quadro holandês, daqueles bem escuros, mas com uma luz especial no pontinho certo da tela. O céu londrino a noitinha é bonito de a gente ver. É carregado de paz. Bem diferente daquelas noites brancas-aflitas em São Paulo, quando o reflexo das luzes na poluição faz um escudo de leite desnatado no céu.

 

Fora o entardecer do começo de junho, o clima não é o que se pode chamar de paradisíaco. Chove um monte. Venta ainda mais. Num só dia faz calor, faz frio, fica um tempinho gostoso e assim vai. Mas o povo se prepara para dias melhores. Ah, sim... De repente multiplicam-se os folhetos e catálogos de móveis para o verão. Muita mesa de piquenique. Muito guarda-sol. Todos os apetrechos para um jardim onde amigos sorridentes vão desfrutar alegres seus minguados churrascos com hambúrgueres e pão.

 

Nas lojas de roupas, a referência ao verão é explícita demais para ser levada a sério. Os vestidos têm mais babados que saia de baiana. São vaporosos.  Ainda não vi aquelas estampas havaianas com hibiscos cor-de-rosa em camisas de fundo vermelho, mas os vestidos não ficam muito atrás…

 

Também é só sair um solzinho que as inglesas tiram do armário umas bolsas que parecem cestinhas. Com a boca bem aberta em cima. Ali, elas enfiam água, jornais e mais uma infinidade de produtos de primeira necessidade. Fico sempre intrigada como é que elas andam de metrô com aquelas bolsas tão desprotegidas. Aprendi desde pequena que “bolsa tem que ter fecho, senão ladrão leva sua carteira e você nem vê”.





 

É interessante ver como esse povo se comporta nos trens. Parece que nasceram para isso. Agem com tanta familiaridade… Espalham coisas pelo chão. São craques em comer comida engordurada, enquanto equilibram o guarda-chuva num braço e um livro no outro. Todo mundo lê muito em Londres. Pode até ser o Metro News que sai que nem pão quente de manhã ( mais porque é de graça do que por qualquer outra razão). O certo é que tem sempre alguém lendo alguma coisa no “tube”**.

 

Eu que ainda não tenho essa intimidade toda com a coisa, não consigo ler no metro sem sentir tontura. Outro dia estava matando tempo vendo os anúncios pregados na lateral do vagão, quando entraram umas figuras saídas de um romance inglês.

 

O escocês, de mais ou menos uns setenta anos, tinha pedigree. Vi de cara. Corpo esbelto. Paletó de lã escama de peixe com protetores de camurça nos cotovelos. Calça de veludo. Boina de lã. Uns óculos dobráveis e sem hastes presos numa corrente discreta de ouro. Guarda-chuva de cabo longo. Ele foi o primeiro a entrar. Com olhos de falcão avistou um lugar vazio ao meu lado. Já ia assentando quando foi interceptado com o traseiro no ar e os joelhos flexionados.

 

O inglês parecia ter a mesma idade. Também tinha pedigree. Paletó azul escuro com botões dourados. Gravata com um brasão de família estampado. Calça de risca de giz. Guarda-chuva de cabo longo. Eles eram farinha do mesmo saco.

 

“I beg your pardon”, disse o inglês ao escocês. Neste momento o alto falante do trem começava a anunciar: “This is a District Line train calling at…” Queria ouvir o que os dois senhores conversavam, mas estava tudo muito barulhento. No meio daquele ruído todo compreendi que o inglês solicitava o lugar para a “lady” que também havia entrado no vagão.

 

Contrariado e vencido por anos de educação formal, o escocês cedeu seu assento para a lady em questão. Ela era, é claro, a senhora-do-inglês. Muito altiva e sem dispensar sequer um olhar para os outros mortais daquela District Line, ela tomou o lugar como se fosse um direito de nascença. Sentou e começou a ler um jornal. Estiquei os olhos para ver o que era. “Church news” eu vi impresso no alto da página.

 

Levantei os olhos e vi Escócia e Inglaterra num duelo silencioso de queixos erguidos e expressões enrijecidas. Os dois estavam de costas um para o outro. O espaço entre eles era exíguo. Desenhei uma espada imaginária passando no meio daqueles dois. É óbvio que a lamina iria terminar aquele percurso congelada. Ambos apoiavam uma mão na barra de ferro e a outra nos respectivos guarda-chuvas. O trem sacolejava, mas eles estavam ali, se maldizendo mentalmente, impassíveis, irredutíveis. Se odiando.

 

Passou uma estação e depois outra. Perdi o interesse. Dispersei. Quando voltei meu olhar para onde eles estavam, o escocês tinha desaparecido. Sobraram o  inglês e a mulher-interessadíssima-nas-últimas-da-igreja. Notei que mister-inglês não tirava os olhos de mim. Sabia que ele estava prestes a confiscar mais um assento: o meu.

 

Sempre levanto para os mais velhos, para as grávidas, para mães com bebês. Mas aquele homem me olhava de um jeito tão autoritário, que resolvi não ceder meu lugar para a empáfia. Subitamente me senti defensora dos direitos dos povos da América Latina. Precisava defender aquele espaço!

 

Ele havia me fisgado.

 

Quando dei por mim, outro duelo acontecia naquele trem. Desta vez era comigo. O homem dobrava um pouquinho os joelhos indicando que estava cansado de ficar em pé. Eu estudava com atenção o mapa do metrô que já sei de cor e salteado.
 
 
 

 
 
 

Enquanto isso, os outros passageiros faziam aquela cara de não estou aqui. Sabe como é, né? Aquele olhar-desligado-fixo-em-lugar-nenhum, como se a alma tivesse ficado do lado de fora, esperando ser teletransplantada para a estação de destino e religada ao corpo que lhe pretence.

 

E o trem seguia viagem.

 

E o homem me encarava impaciente.

 

E eu ignorava solenemente.

 

Aquele duelo de teimosias podia durar para sempre. Não durou. Uma mão de mulher tocou o braço do inglês e disse: “Dear, this is our station”. Ele não quis ouvir o chamado da mulher. Estava ocupado demais comigo. Ela insistiu. Ele saiu daquele transe, virou as costas para mim e foi caminhando devagar pela estação.

 

Respirei aliviada. Cheguei em casa como quem chega de uma batalha, depois de matar um dragão. O dragão de São Jorge, o padroeiro da Inglaterra.
 
 
 
Santa ironia, St George era turco!

 

 

(Londres/ Junho 2003)

 

Da Gaveta:

Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de quando eu ainda era novata na terra da Rainha.

 

** Este texto obviamente foi escrito antes dos smartphones. Hoje em dia os passageiros estão com os olhos colados nos equipamentos eletrônicos.

 

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Paladar Mutante




Pela primeira vez na vida, fui acampar. Podia ter escolhido melhor, mas calhou de ser na páscoa. O cenário lembrava o do filme a bruxa de Blair - foi o que a minha irmã disse ao ver as fotos da floresta. O que salvou o feriado foram as boas companhias. Estava um frio de rachar. Na primeira noite choveu sem parar. Parecia que estávamos dentro de uma panela de fazer pipoca. Na segunda, fez zero grau. Ai. O travesseiro, as roupas e até os ossos estavam gelados e úmidos. Com muita lama, chuva e frio, não nos restou muita coisa além de prosear, comer e beber, enquanto tentávamos nos aquecer ao redor da fogueira.


 
 
Comer pra esquentar

Camping assombrado
 

 

Papo vai, papo vem, e como todo mundo na roda já tinha passado dos quarenta, o assunto é claro foi parar nas comidas. Meus amigos eram ingleses, mas como um deles era filho de italiano, resolvi arriscar e desanquei o macarrão de lata. Uma das minhas amigas entrou na barraca dela e voltou segurando uma latinha. 'É esse aqui que você acha que tem gosto de comida de cachorro?' Ela perguntou. Ops! Demos boas risadas.  Para tentar limpar a minha barra, disse que nós brasileiros comemos churrasquinho de coração de galinha, o que os ingleses acham repugnante.




Bem ruim
 

 



Não tem jeito. Essa é uma daquelas discussões clássicas que não levam a lugar algum. Paladar, eu aprendi aqui, é extremamente cultural. A gente gosta do que está acostumado a comer. O consolo é que nossos gostos podem sempre mudar.
Tem comida aqui que eu não encarava de jeito nenhum e hoje em dia já como sem fazer careta, se não tiver outra opção. Uma delas é o baked beans, um feijão enlatado, que vem num molho de tomate, levemente adocicado e que os ingleses gostam de comer no café da manhã.  Aliás, os europeus em geral acham nossos doces muito doces, mas os ingleses gostam de misturar açúcar e mel na comida salgada.






Feijao doce







 


Tem também o ‘marmite’, que como o pequi, é um caso de ame ou odeie. O marmite é um gosto que ainda não adquiri. Provei mais de uma vez, mas não desce. Tem a aparência de uma geleia de chocolate. As aparências enganam. Marmite existe desde o século dezenove. A pasta escura e grudenta feita de levedura é um subproduto da fabricação de cerveja. Com a descoberta das vitaminas, o produto, que é rico em vitaminas do complexo B, se tornou popular na Primeira Guerra Mundial. Até pensei em comprar um pote e provar de novo para descrever melhor o sabor, mas resolvi deixar para imaginação de cada um. Só pense que tem gosto de remédio com uma pitada de sal.

 

 

 
Tem gente que gosta
 

 

Já faz uns anos, estava trabalhando como voluntária numa escola primária, quando a professora decidiu que era dia de ensinar os alunos a prepararem seus sanduíches (artigo de primeira necessidade por aqui). As crianças tinham cinco, seis anos de idade. Um dos meninos, um iraniano, era muito levado. Ele viu o pote de marmite e mandou ver. Emplastrou o pão, achando que era chocolate. Quem conhece sabe que se deve passar uma camada finíssima sobre o pão com manteiga, porque o produto é muito forte. Eu estava ocupada ajudando outras crianças, quando vi o menino prestes a abocanhar o sanduba explosivo. Não deu tempo de dizer nada. Ele cuspiu o pão numa rapidez impressionante. Os olhinhos dele se encheram d’agua e eu tive que sair da sala, porque estava quase chorando de tanto rir. O iranianinho passou o resto do dia como um anjo. Quietinho e calado. Santo marmite!


Quem só visita Londres pode ter uma ideia errada sobre os hábitos alimentares dos ingleses. A cidade é cosmopolita, com restaurantes do mundo inteiro e chefs famosos. Mas é no interiorzão do Reino que a gente tem uma visão mais clara de como eles comem.

 

Uma vez, voltando de uma viagem ao País de Gales, a fome bateu e resolvemos arriscar um pub numa cidade pequena no meio do nada. A dona do bar avisou: só tem lasanha hoje. Se só tem tu, vai tu mesmo. Esperamos o tempo que leva para esquentar um prato no micro-ondas (posso apostar que a massa tinha sido comprada pronta e congelada) e nosso almoço chegou. Lasanha acompanhada de batata assada (murcha e com casca mesmo) e purê de batata! Não vou nem entrar no mérito do sabor... que raio de combinação é essa? Esse é um exemplo meio extremo, mas o típico cidadão britânico, principalmente os com mais de 60 anos, não tem a menor imaginação na cozinha.
 
 
 
 

 

Eles dizem que é porque  durante e no pós-guerra tiveram os ingredientes racionados e tinham que improvisar com muito pouco. A segunda parte é verdade. A primeira eu acho difícil de engolir. Os franceses e os alemães também sofreram com racionamentos e a culinária deles não é como a dos ingleses.

 


Leitor de código de barras
 

 

Antes de escrever este post, fui às compras. Alguns supermercados daqui foram além no conceito de ‘self-service’ e introduziram os scanners portáteis. Você passa o cartão de fidelidade do supermercado num leitor de código de barras e retira uma das maquininhas. À medida que vai comprando, o cliente vai escaneando os produtos e já colocando nas sacolas que traz de casa. Na hora de ir embora é só apontar o leitor de código de barras para um computador, fazer o download e pagar.




 

 

Adoro essa engenhoca. De vez em quando, o computador seleciona um cliente para uma blitz surpresa. Um funcionário escolhe ao acaso alguns produtos, para checar se está tudo certo. A moça do supermercado, que uso toda semana, contou que teve uma mulher que ‘se esqueceu’ de marcar mais de cem libras em produtos (cerca de R$ 450)! Fora o mico, essa pessoa perde o privilégio de usar a maquininha e pode até ser processada por furto.
 
 
 

 

Mas o assunto é outro. Tive a paciência de contar e anotar os nomes de todas as variedades de açúcar que estavam à venda. VINTE! Açúcar para fazer geleia, tinham dois, de confeitar bolo, mascavo de três tons diferentes, granulados diversos, eram tantos que nem sei se tem produtos equivalentes no Brasil. Creme de leite fresco? Encontrei nove tipos, porque não é época de natal. Se fosse, ainda teriam os temperados com conhaque e outras bebidas alcóolicas.  


Creme de leite
 
 
 


Paraíso das formigas

 

Segundo consta, meu avô não gostava dos americanos, mas adorava a caneta Parker. Ele dizia que os americanos tinham inventado a melhor caneta do mundo. ‘Uma pena que não sabiam escrever’. Quando vou aos supermercados desta Ilha, me sinto um pouco mais neta do avô que nem cheguei a conhecer. Acredito que existam poucos países no mundo com tanta variedade de produtos nas prateleiras como aqui. Com tanta oferta, os britânicos tinham quase que a obrigação de servirem uma comida mais decente.

 



Eu poderia falar: os ingleses têm produtos do mundo todo, mas não sabem o que fazer com eles. Como gosto não se discute, por ora, vamos dizer apenas que meu paladar ainda não inglesou de vez.