William e Catherine foram passear na Provence.
Ficar num 'dolce far niente' no casão de um amigo. Até aí, nada de mais. Não fosse pelo fato
de eles serem o Duque e a Duquesa herdeiros do trono britânico, de ela ter
se bronzeado nua da cintura para cima e de um paparazzi espertalhão ter tirado
fotos indiscretas. As imagens, quem não se lembra, saíram em jornais e revistas
de fofocas ao redor do globo. Foram publicadas quase no mundo todo. Quase.
No Reino Unido, a
mídia não publicou uma foto sequer do topless de Kate. Anos antes, o episódio
da morte da sogra, perseguida por paparazzi pelas ruas de Paris, caiu muito mal
para a imprensa por aqui. O Buckingham Palace
e a Imprensa firmaram então um trato para preservar a imagem dos meninos
William e Harry, que cresceram ressabiados com a mídia, para dizer o mínimo. O
fuxico do banho de sol aconteceu quando os jornais estavam no olho do furacão
de um escândalo da mídia nacional. Por isso, e porque ninguém quis se arriscar
a ter que lidar com indenizações milionárias, as fotos jamais foram publicadas
nesta ilha.
Todo o mal-estar
midiático causado pelo episódio da morte de Diana fez a realeza investir pesado em
relações públicas. Como moeda de troca, a mídia recebe uma ocasional entrevista
com um membro da família real, fotos ‘de família’ como as do noivado do século
e do bebê real. E o direito do público de ser informado? Os mamilos da duquesa
são realmente de interesse público? Get a life!*
Uma coisa que me chamou a atenção, logo que vim morar na
Inglaterra, foi como a cobertura policial era sem graça. Os jornais passavam
dias e dias repetindo as mesmas informações de uma história quente. É que por
aqui nenhum detalhe de um crime sai nos jornais até que o caso seja julgado. A
medida visa evitar que as notícias ‘melem’ o julgamento, influenciem a opinião
dos jurados e atrapalhem as investigações. Um exemplo de um caso recente: um
casal matou os pais da esposa. Os velhinhos foram enterrados no quintal da casa
deles, debaixo do nariz de um investigador de polícia. Ninguém soube do caso,
ninguém deu falta dos dois, até que quinze anos mais tarde a farsa foi
revelada. Logo que os corpos foram descobertos, a única coisa que saiu nos
jornais foi que um casal havia sido preso, suspeito de assassinato e que os
corpos estavam enterrados no quintal. Mais nada. Depois do julgamento, liberou
geral. Cada detalhe mórbido da trama foi revelado exaustivamente pela mídia,
com mais ou menos destaque, dependendo do veículo em que foram publicados.
Nos filmes americanos de tribunais, volta e meia alguém
apela para a Primeira Emenda Constitucional, que garante o direito de
expressão. No Reino Unido isso não acontece, simplesmente porque o país faz
parte de um grupo muito seleto de países onde não existe uma constituição
escrita. O que existem por aqui são leis históricas, algumas muito antigas como
a Magna Carta, que foi assinada na Idade Média, quase trezentos anos antes dos
portugueses içarem suas velas rumo ao Brasil e que vale até hoje.
Além das leis históricas, também chamadas de leis comuns,
existem as ‘Royal Charter’. Não, não se trata de aviões fretados para levar
membros da família real em excursões para a Disney. Esse charter é outro.
‘Royal Charter’, para nós Carta Régia, nada mais é do que é um documento formal
emitido por um monarca, concedendo um direito ou poder a um indivíduo ou uma
instituição, por exemplo. Em sua história, a monarquia britânica emitiu mais de
980 cartas régias. Cerca de 750 ainda estão em vigor.
Acompanhei, na escola onde trabalho como voluntária,
crianças do terceiro ano primário discutirem com paixão os termos de uma ‘Carta
Régia’ com as regras de conduta, que elas achavam importantes. Trinta e dois
meninos e meninas de sete e oito anos concordaram que: Primeiro; não se deve
falar palavrão. Segundo; não se pode empurrar o colega no playground. Terceiro;
nada de cuspir no outro. Quarto; todos devem ter a chance de jogar futebol no
recreio, mesmo os mais perebas. A lista tinha outros seis itens, igualmente
relevantes para eles. Assim que ficou pronta, a Carta foi impressa. Todos
assinaram embaixo e ela foi pregada na parede, no caso de alguém esquecer um
item importante. A Carta não transformou as crianças em anjinhos de um dia para
o outro. Mas cada vez que uma das regras era quebrada, o injustiçado recorria a
ela para reclamar seus direitos. Tá acompanhando a analogia?
No ano passado, depois de muita discussão e de muita
pressão, uma nova Carta Régia saiu do forno. Para quê? Para autorregular a
imprensa. O que levou a Rainha a selar o documento foi um inquérito que
investigou o chamado ‘Escândalo dos telefones hackeados’, que sacodiu os
alicerces de ‘Fleet Street’, tradicional rua das empresas jornalísticas.
A história começou quando se descobriu que jornalistas do
extinto ‘News of the World’ contratavam detetives particulares para invadir
eletronicamente os telefones de celebridades, políticos e membros da família
real, a fim de conseguirem histórias exclusivas e, de preferência, escabrosas.
Além disso, policiais também foram subornados, para que passassem informações
confidenciais ao jornal. O ator Hugh Grant, J.K Rowling, a autora de Harry
Potter, a modelo Elle Macpherson e o ex-presidente da Fórmula Um, Max Mosley
foram algumas das vítimas famosas do jornalismo inescrupuloso do tabloide
sensacionalista.
O escândalo ganhou proporções ainda maiores depois que as
investigações revelaram que membros do público, como os pais da menina
Madeleine, que desapareceu em Portugal, também foram investigados ilegalmente.
A opinião pública se revoltou quando veio à tona que o celular da adolescente
Milly Dowler havia sido hackeado. Milly morreu nas mãos de um pedófilo em 2002.
O investigador, que invadiu o telefone da menina, apagou todas as mensagens
gravadas - o que levou a família dela e a polícia a acreditarem que ela ainda
estava viva, quando na verdade, se descobriu mais tarde, Milly já estava morta.
Além da família Dowler, famílias de vítimas dos ataques terroristas em Londres
em 2005 e familiares de soldados mortos no Afeganistão também tiveram suas
conversas particulares invadidas de forma indevida. No vale tudo pela notícia
que vende mais, os fins justificaram os meios.
A maior baixaria da impressa britânica gerou o Leveson
Enquiry, um inquérito batizado com o nome do juiz que o conduziu. O gigante da
mídia Rupert Murdoch, proprietário do ‘News of the World’, virou, de um dia
para o outro, o vilão mais odiado de Gotham City. Suas empresas tiveram que
pagar milhões de libras em indenizações às vítimas, em inúmeros processos
criminais. Boicotado por seus anunciantes, o tabloide encerrou suas atividades
depois de 168 anos de existência. Vários executivos da corporação de Murdoch
receberam um chute no traseiro. O comissário da Metropolitan Police de Londres
foi ‘saído’ do cargo e jornalistas tiveram que responder a processos criminais.
O editor-chefe Andy Coulson foi condenado a 18 meses de prisão.
Depois de ouvir evidências durante oito meses e de custar
ao contribuinte quase seis milhões de libras, o inquérito concluiu que a ação
criminosa da mídia teve um efeito devastador na vida das vítimas. Estava
pavimentado o caminho para a Carta-Régia. A regulação da imprensa, entre outros
motivos, foi uma resposta à pressão popular. É óbvio que a mídia esperneou.
Argumentou que as regras comprometiam a independência da imprensa e seu direito
de informar o público. Duas ações no Tribunal Superior fracassaram na tentativa
de evitar e de modificar o texto do documento.
A Carta cria um painel regulador das atividades da mídia
com poder de emitir multas de até um milhão de libras e exigir retratação
imediata. Simplificando, o painel é formado por membros do público, advogados e
representantes do setor financeiro. Não pode ter em seus quadros: políticos,
funcionários públicos, nem editores e jornalistas (na ativa ou aposentados). A
ação se dá em três frentes: a que recebe as queixas, a que faz a arbitragem e a
que cria códigos de conduta.
Como as crianças do terceiro ano, os jornais e revistas
também podem escolher se querem ou não se inscrever para o novo sistema de
regulação. Alguns já disseram que não vão assinar embaixo. Mas aqueles que
ficarem de fora correm o risco de terem processos de difamação julgados pela
justiça, sendo obrigados a arcar não só com as indenizações, mas também com os
custos do processo, se o queixoso ganhar a causa.
A polêmica sobre a ‘lei’ de imprensa britânica ainda deve
continuar. Contudo, nas palavras de Lord Leveson, ‘existe um elefante na sala’.
Este paquiderme atende pelo nome de internet. São os blogueiros, tweeters e as
mídias sociais, que transformam qualquer um em jornalista. Regular essa turma
são outros quinhentos...
*Se liga!
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