Em Merseyside, um subúrbio da famosa Liverpool
dos Beatles, que não é exatamente bonito, nem
próspero, entrou para o mapa desta vez por causa de um crime terrível, em 1993.
James Bulger, um menininho de dois anos, foi às compras com a mãe. Ela entrou
numa loja e, um minuto depois, o garotinho tinha desaparecido. Dois dias mais
tarde, foi encontrado morto. Seu corpo não deixava dúvidas, foi uma morte
violenta. Ele havia sido despido da cintura para baixo e torturado brutalmente;
apresentava 42 marcas de agressões físicas graves.
Com a ajuda de câmeras de vigilância
e de testemunhas, o assassinato foi desvendado rapidamente. Os culpados eram
dois meninos de dez anos de idade: Jon Venables e Robert Thompson. A natureza e
a crueldade do crime provocaram uma forte resposta da população. Mais de
quinhentas pessoas foram ao tribunal exigir que Venables e Thompson fossem
condenados à prisão perpétua. O caso mudou a forma como esta ilha encara os
crimes cometidos por crianças e adolescentes. Os dois foram os réus mais jovens
condenados à prisão, no século vinte, no Reino Unido.
Jon Venables |
O julgamento foi criticado pela
Corte Europeia de Direitos Humanos, que em 1999 declarou que os meninos não
haviam recebido um julgamento justo. O fato é que os dois foram julgados numa
Corte para adultos e saíram do tribunal como prisioneiros: deveriam cumprir uma
sentença de no mínimo oito anos. Os nomes de Jon e Robert foram divulgados para
o público e suas famílias tiveram que mudar de cidade e de identidade, temendo
serem vítimas de justiceiros. Logo após o julgamento, a pena foi revista e
subiu para um mínimo de dez anos. Eles não sairiam da cadeia antes dos vinte
anos de idade.
Robert Thompson |
O tabloide ‘The Sun’ deu início então a uma
campanha. Recolheu duzentas e oitenta mil assinaturas e pressionou o ‘home secretary’,
uma espécie de ministro para assuntos internos, a aumentar o tempo de custódia.
Em 1994, a pena subiu para um mínimo de quinze anos. A interferência do governo,
impulsionada pela opinião pública, foi duramente criticada e, em 1997, a pena
foi reduzida. A Casa dos Lordes (o senado daqui) determinou que o executivo não
poderia interferir com a Justiça. O então primeiro-ministro, o Conservador John
Major, afirmou: “a sociedade precisa condenar um pouco mais e compreender um
pouco menos”. Ele certamente estava afinado com o ‘humor’ geral da nação,
sedento de sangue e inflamado pela mídia. Mas o primeiro-ministro estava certo?
No Livro ‘Why Love Matters
(2004), (não encontrei uma versão em português), a autora Sue Gerhardt vai
buscar na neurociência algumas respostas para comportamentos como o dos
assassinos confessos de James Bulger. A ideia central do livro é que o amor
ajuda a construir as conexões cerebrais, que tornam possível que uma pessoa se
relacione bem com outro ser humano. Ela cita o caso clássico dos órfãos da
Romênia, que foram negligenciados, abusados e totalmente privados de contato
humano e amor, enquanto cresciam em orfanatos públicos e miseráveis. Bebês, que
eram confinados em berços, sem higiene, sem carinho e atenção. As dificuldades,
enfrentadas nos primeiros anos de vida destes órfãos, não deixaram apenas sequelas
psicológicas. Exames de tomografia revelaram que no cérebro dessas crianças existia
um buraco negro, no que deveria ser a parte responsável por controlar as emoções.
Elas também apresentavam vários problemas de aprendizado, atrasos
cognitivos e de linguagem. Em outras palavras, a falta total de amor impediu o
desenvolvimento cerebral.
Orfanato romeno |
O caso dos órfãos é extremo e
ilustra bem como o cérebro se desenvolve nos primeiros anos de vida. Mas a
autora foi mais longe e investigou também o passado dos meninos assassinos de
Merseyside. Não chega a surpreender que ambos venham de famílias totalmente desestruturadas.
A mãe de um era alcoólatra, a do outro sofria de depressão profunda. Ambas eram
separadas dos pais das crianças e batiam muito nos filhos. Os pais não eram
melhores. Os meninos foram expostos à pornografia a partir dos três anos de
idade e começaram a fumar maconha aos seis. Os dois viviam numa situação onde
os níveis de estresse eram constantemente altíssimos, o que segundo a autora,
resulta num desenvolvimento cerebral comprometido.
O ‘Why love matters’ acabaria
influenciando algumas políticas de ação social neste país. Mas o ponto é que
nem todo mundo que é exposto a essas condições sai por aí torturando e matando
criancinhas. Felizmente este é o comportamento raro. Por outro lado,
nem todo assassino teve um começo de vida difícil.
Este parece ser o caso de Will
Cornick. Aos quinze anos, ele esfaqueou e matou cruelmente a professora Ann
Maguire na sala de aula, na frente dos colegas. O motivo? Não gostava dela. Segundo
consta, os pais de Will adoravam o filho e viviam em função dele. Ele era um
estudante brilhante. Dois anos antes de cometer o crime, teve um desmaio numa
excursão da escola, foi diagnosticado com diabetes e começou a apresentar
mudanças de comportamento, que incluíam automutilação. Ele teria sofrido uma
decepção grande ao ser rejeitado para o serviço militar e, no natal de 2013,
mandou uma mensagem pelo Facebook a um amigo, dizendo que ia matar a
professora. Ele teria dito também que pretendia matar outras duas professoras,
uma delas grávida. Na época, se falou muito que, se fosse nos Estados Unidos,
onde a venda de armas é liberada, ele provavelmente teria feito um estrago muito
maior. Aqui não é fácil conseguir arma de fogo.
A professora Ann Maguire |
O crime aconteceu em abril de 2014. Ele foi condenado à prisão perpétua. Em sua sentença, o juiz disse que Will Cornick era um risco para a sociedade. Cornick também foi julgado numa Corte para adultos, que decidiu que o réu sabia o que estava fazendo no momento do crime. O caso dividiu opiniões, como era de se esperar. Uma colunista do The Guardian (com uma linha mais de esquerda) criticou a sentença. Disse que o cérebro do adolescente, devido a sua pouca idade, não estava completamente amadurecido e questionou a sanidade mental do rapaz. Já a colunista do tabloide The Sun escreveu: “agora ele vai cumprir a sentença, onde estará sendo monitorado, para que não cometa suicídio. Pessoalmente, eu lhe ofereceria uma corda e privacidade”.
William Cornick |
O Reino Unido é um dos países que tem as leis mais duras com relação à maioridade penal. Opiniões tão diversas como as das duas colunistas acima não deixam dúvidas: este é um terreno difícil de trilhar. Parece claro que muita gente insiste em enxergar o assunto pelos extremos. Um lado transformando o criminoso em vítima e o outro em diabo encarnado. Pode um infrator ser ao mesmo tempo vítima e agressor? Afinal, qual é o objetivo de uma sentença? Punição? Vingança? Oferecer a oportunidade de reabilitação do criminoso? Mandar a mensagem de que o crime não compensa? Já vi muitos comentários defendendo que crianças como Venables e Thompson devem mesmo ser emprisionadas, para servirem de exemplo. Será que quem comete crimes tão bárbaros como o assassinato de James Bulger realmente pensa nas consequências?
De volta ao século passado, enquanto
o primeiro-ministro John Major exibia seu lado linha dura, seu oponente e
sucessor Tony Blair fazia outras apostas. Em um famoso discurso inflamado, ele falou
sobre a repercussão do assassinato de James Bulger: “Ouvimos falar de crimes
tão horríveis que provocam raiva e descrença em proporções iguais ... Estas são
as manifestações feias de uma sociedade que está tornando-se indigna desse nome”.
Já passou foi água debaixo dessa ponte.
Dezoito anos mais tarde, a maioridade penal neste país continua sendo dez anos.
Mas neste meio tempo, tanto os governos dos trabalhistas (Blair e Brown) quanto o
de David Cameron vem trabalhando duro para diminuir a criminalidade de crianças
e adolescentes. As medidas têm caráter preventivo. Vão desde investimentos em
educação, não só nas escolas como também nas prisões, até um sistema de triagem
mais eficiente nas delegacias de polícia. Muitos infratores não chegam a ser
condenados. Recebem advertências , medidas socioeducativas e são
monitorados.
O governo reconhece que um problema
sério entre jovens nesta ilha são as gangues. Principalmente nas regiões mais
pobres, elas fazem parte da cultura local. Em geral, a criminalidade tem caído
por aqui, com exceção das brigas de gangues, nas quais adolescentes são
esfaqueados. Existem várias estratégias em vigor para tentar reverter essa
situação. Uma delas é um programa de computação que ‘prevê’ possíveis
conflitos, com base em informações coletadas através de mídias sociais. Outra
linha de ação envolve ainda mais a comunidade. Pessoas, que no passado faziam
parte de gangues, são contratadas para dar palestras em escolas e ajudar a
polícia a entender como os bandos recrutam novos membros.
Nem o judiciário, nem o serviço
social e tampouco o sistema prisional desta ilha são perfeitos. Longe disso. Entretanto, estatísticas
do governo revelam que, em 2006, havia 100 mil crianças e adolescentes (entre
10 e 17 anos) nas prisões daqui. Este número caiu dramaticamente. Em 2013, eram
27.854 presos na mesma faixa etária. Resultado de uma política de prevenção de
criminalidade. Ao que tudo indica, menos condenação e mais compreensão tem dado
resultados.