quarta-feira, 15 de abril de 2015

Maioridade penal na Inglaterra





Em Merseyside, um subúrbio da famosa Liverpool dos Beatles, que  não é exatamente bonito, nem próspero,  entrou para o mapa desta vez por causa de um crime terrível, em 1993. James Bulger, um menininho de dois anos, foi às compras com a mãe. Ela entrou numa loja e, um minuto depois, o garotinho tinha desaparecido. Dois dias mais tarde, foi encontrado morto. Seu corpo não deixava dúvidas, foi uma morte violenta. Ele havia sido despido da cintura para baixo e torturado brutalmente; apresentava 42 marcas de agressões físicas graves.



James Bulger

Com a ajuda de câmeras de vigilância e de testemunhas, o assassinato foi desvendado rapidamente. Os culpados eram dois meninos de dez anos de idade: Jon Venables e Robert Thompson. A natureza e a crueldade do crime provocaram uma forte resposta da população. Mais de quinhentas pessoas foram ao tribunal exigir que Venables e Thompson fossem condenados à prisão perpétua. O caso mudou a forma como esta ilha encara os crimes cometidos por crianças e adolescentes. Os dois foram os réus mais jovens condenados à prisão, no século vinte, no Reino Unido.



Jon Venables

O julgamento foi criticado pela Corte Europeia de Direitos Humanos, que em 1999 declarou que os meninos não haviam recebido um julgamento justo. O fato é que os dois foram julgados numa Corte para adultos e saíram do tribunal como prisioneiros: deveriam cumprir uma sentença de no mínimo oito anos. Os nomes de Jon e Robert foram divulgados para o público e suas famílias tiveram que mudar de cidade e de identidade, temendo serem vítimas de justiceiros. Logo após o julgamento, a pena foi revista e subiu para um mínimo de dez anos. Eles não sairiam da cadeia antes dos vinte anos de idade.
Robert Thompson


 O tabloide ‘The Sun’ deu início então a uma campanha. Recolheu duzentas e oitenta mil assinaturas e pressionou o ‘home secretary’, uma espécie de ministro para assuntos internos, a aumentar o tempo de custódia. Em 1994, a pena subiu para um mínimo de quinze anos. A interferência do governo, impulsionada pela opinião pública, foi duramente criticada e, em 1997, a pena foi reduzida. A Casa dos Lordes (o senado daqui) determinou que o executivo não poderia interferir com a Justiça. O então primeiro-ministro, o Conservador John Major, afirmou: “a sociedade precisa condenar um pouco mais e compreender um pouco menos”. Ele certamente estava afinado com o ‘humor’ geral da nação, sedento de sangue e inflamado pela mídia. Mas o primeiro-ministro estava certo?


No Livro ‘Why Love Matters (2004), (não encontrei uma versão em português), a autora Sue Gerhardt vai buscar na neurociência algumas respostas para comportamentos como o dos assassinos confessos de James Bulger. A ideia central do livro é que o amor ajuda a construir as conexões cerebrais, que tornam possível que uma pessoa se relacione bem com outro ser humano. Ela cita o caso clássico dos órfãos da Romênia, que foram negligenciados, abusados e totalmente privados de contato humano e amor, enquanto cresciam em orfanatos públicos e miseráveis. Bebês, que eram confinados em berços, sem higiene, sem carinho e atenção. As dificuldades, enfrentadas nos primeiros anos de vida destes órfãos, não deixaram apenas sequelas psicológicas. Exames de tomografia revelaram que no cérebro dessas crianças existia um buraco negro, no que deveria ser a parte responsável por controlar as emoções. Elas também apresentavam vários problemas de aprendizado, atrasos cognitivos e de linguagem. Em outras palavras, a falta total de amor impediu o desenvolvimento cerebral.

Orfanato romeno


O caso dos órfãos é extremo e ilustra bem como o cérebro se desenvolve nos primeiros anos de vida. Mas a autora foi mais longe e investigou também o passado dos meninos assassinos de Merseyside. Não chega a surpreender que ambos venham de famílias totalmente desestruturadas. A mãe de um era alcoólatra, a do outro sofria de depressão profunda. Ambas eram separadas dos pais das crianças e batiam muito nos filhos. Os pais não eram melhores. Os meninos foram expostos à pornografia a partir dos três anos de idade e começaram a fumar maconha aos seis. Os dois viviam numa situação onde os níveis de estresse eram constantemente altíssimos, o que segundo a autora, resulta num desenvolvimento cerebral comprometido.






O ‘Why love matters’ acabaria influenciando algumas políticas de ação social neste país. Mas o ponto é que nem todo mundo que é exposto a essas condições sai por aí torturando e matando criancinhas. Felizmente este é o comportamento raro. Por outro lado, nem todo assassino teve um começo de vida difícil.


Este parece ser o caso de Will Cornick. Aos quinze anos, ele esfaqueou e matou cruelmente a professora Ann Maguire na sala de aula, na frente dos colegas. O motivo? Não gostava dela. Segundo consta, os pais de Will adoravam o filho e viviam em função dele. Ele era um estudante brilhante. Dois anos antes de cometer o crime, teve um desmaio numa excursão da escola, foi diagnosticado com diabetes e começou a apresentar mudanças de comportamento, que incluíam automutilação. Ele teria sofrido uma decepção grande ao ser rejeitado para o serviço militar e, no natal de 2013, mandou uma mensagem pelo Facebook a um amigo, dizendo que ia matar a professora. Ele teria dito também que pretendia matar outras duas professoras, uma delas grávida. Na época, se falou muito que, se fosse nos Estados Unidos, onde a venda de armas é liberada, ele provavelmente teria feito um estrago muito maior. Aqui não é fácil conseguir arma de fogo.


A professora Ann Maguire



O crime aconteceu em abril de 2014. Ele foi condenado à prisão perpétua. Em sua sentença, o juiz disse que Will Cornick era um risco para a sociedade. Cornick também foi julgado numa Corte para adultos, que decidiu que o réu sabia o que estava fazendo no momento do crime. O caso dividiu opiniões, como era de se esperar. Uma colunista do The Guardian (com uma linha mais de esquerda) criticou a sentença. Disse que o cérebro do adolescente, devido a sua pouca idade, não estava completamente amadurecido e questionou a sanidade mental do rapaz. Já a colunista do tabloide The Sun escreveu: “agora ele vai cumprir a sentença, onde estará sendo monitorado, para que não cometa suicídio. Pessoalmente, eu lhe ofereceria uma corda e privacidade”.



William Cornick


O Reino Unido é um dos países que tem as leis mais duras com relação à maioridade penal. Opiniões tão diversas como as das duas colunistas acima não deixam dúvidas: este é um terreno difícil de trilhar. Parece claro que muita gente insiste em enxergar o assunto pelos extremos. Um lado transformando o criminoso em vítima e o outro em diabo encarnado. Pode um infrator ser ao mesmo tempo vítima e agressor? Afinal, qual é o objetivo de uma sentença? Punição? Vingança? Oferecer a oportunidade de reabilitação do criminoso? Mandar a mensagem de que o crime não compensa? Já vi muitos comentários defendendo que crianças como Venables e Thompson devem mesmo ser emprisionadas, para servirem de exemplo. Será que quem comete crimes tão bárbaros como o assassinato de James Bulger realmente pensa nas consequências?  

De volta ao século passado, enquanto o primeiro-ministro John Major exibia seu lado linha dura, seu oponente e sucessor Tony Blair fazia outras apostas. Em um famoso discurso inflamado, ele falou sobre a repercussão do assassinato de James Bulger: “Ouvimos falar de crimes tão horríveis que provocam raiva e descrença em proporções iguais ... Estas são as manifestações feias de uma sociedade que está tornando-se indigna desse nome”.

 Já passou foi água debaixo dessa ponte. Dezoito anos mais tarde, a maioridade penal neste país continua sendo dez anos. Mas neste meio tempo, tanto os governos dos trabalhistas (Blair e Brown) quanto o de David Cameron vem trabalhando duro para diminuir a criminalidade de crianças e adolescentes. As medidas têm caráter preventivo. Vão desde investimentos em educação, não só nas escolas como também nas prisões, até um sistema de triagem mais eficiente nas delegacias de polícia. Muitos infratores não chegam a ser condenados. Recebem advertências , medidas socioeducativas e são monitorados.

O governo reconhece que um problema sério entre jovens nesta ilha são as gangues. Principalmente nas regiões mais pobres, elas fazem parte da cultura local. Em geral, a criminalidade tem caído por aqui, com exceção das brigas de gangues, nas quais adolescentes são esfaqueados. Existem várias estratégias em vigor para tentar reverter essa situação. Uma delas é um programa de computação que ‘prevê’ possíveis conflitos, com base em informações coletadas através de mídias sociais. Outra linha de ação envolve ainda mais a comunidade. Pessoas, que no passado faziam parte de gangues, são contratadas para dar palestras em escolas e ajudar a polícia a entender como os bandos recrutam novos membros.

Nem o judiciário, nem o serviço social e tampouco o sistema prisional desta ilha são perfeitos. Longe disso. Entretanto, estatísticas do governo revelam que, em 2006, havia 100 mil crianças e adolescentes (entre 10 e 17 anos) nas prisões daqui. Este número caiu dramaticamente. Em 2013, eram 27.854 presos na mesma faixa etária. Resultado de uma política de prevenção de criminalidade. Ao que tudo indica, menos condenação e mais compreensão tem dado resultados.




quarta-feira, 8 de abril de 2015

Requiem para Marjorie

*Da Gaveta


Na páscoa de 2012, perdi uma amiga. Uma das pessoas mais interessantes que conheci na Inglaterra. Foi embora, aos noventa e seis anos, contrariada. Tinha resolvido que ia viver até os cem, para receber um telegrama de felicitações da Rainha. Este post é para manter viva a memória de uma senhora muito especial, que tinha a mania de gostar da vida e de ser independente.



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Sessenta e cinco degraus separam a rua do quarto miserável onde a família se espreme no tempo que separa as duas grandes guerras. No corredor, um fogareiro; as meninas dividem a cama e uma cortina fina e encardida protege a intimidade do casal. Lá em cima, luz de lampião. Luz elétrica só no salão de bilhar, no andar térreo onde o pai trabalha e as mulheres são proibidas de entrar.


Sessenta e cinco enormes degraus, que só existem na memória de menina, que ela revisita há quase noventa anos. Eles vieram abaixo para dar lugar à expansão da estação de Clapham, no sul de Londres muitas décadas atrás.




Sessenta e cinco degraus que estão prestes a desabar mais uma vez, quando a memória se apagar para sempre. Marjorie está exausta, mas continua no comando, como nunca deixou de estar. Já é quase hora de partir. Os lábios tão secos já não conseguem mais cobrir a boca. Os dentes estão expostos e as rugas se fazem couro ressecado. O corpo magérrimo sustenta um fio frágil de vida. O presente não é bom. Ela abre a caixa de
reminiscências. O passado é mais seguro. As histórias já ouvi várias vezes. Sempre na mesma sequência. Sempre com as mesmas palavras. Repetir, repetir, como uma criança, que pede para ouvir o mesmo Conto de Fadas todas as noites. O passado é mais seguro.


No quarto de hospital, só uma cortina a separa da paciente na cama ao lado. Ela não se preocupa com privacidade. Os assuntos terrenos já não são importantes. Com a voz fraca, me conta as histórias uma última vez...


Marjorie está ao pé da escada. Ela pensa se já está na hora de subir os sessenta e cinco degraus. Está entediada e brinca de acender e apagar a luz. O interruptor é daqueles antigos. Um fio que desce dependurado do teto. Ela aperta o botão, aperta de novo e de novo. Até que leva um empurrão, que a faz subir os sessenta e cinco degraus, sem parar para tomar fôlego. Ela chega ao topo convencida de que foi um dos homens, que frequentava o salão de bilhar. Só anos depois, ela se dá conta que tinha levado um choque elétrico, ela fala como se tivesse acabado de juntar os pontos da história.


Menina cheia de energia, confinada num cubículo, filha de mãe religiosa, severa e reservada e de pai ausente, que sempre achava tempo e dinheiro para ir ao pub depois do trabalho, Marjorie vivia se metendo em encrencas e acabou conquistando a fama de incorrigível.


Quando tinha oito anos, todas as crianças da rua só falavam de um refrigerante novo que tinha chegado ao mercado. Marjorie sonhava em provar a novidade. Pedir para a mãe estava fora de questão; a bebida custava seis centavos de libra! Outra menina da rua, Maggie Smith, se ofereceu para comprar o refrigerante para Marjorie. Elas foram até a casa da menina. A mãe dela estava na cozinha e as duas foram direto para o quarto dos pais. Maggie levantou o colchão, tirou seis centavos de dentro de um saco de moedas e deu o dinheiro para Marjorie.


Marjorie nunca me contou que gosto tinha a bebida. Mas ficou com um sabor amargo na boca para sempre. Invariavelmente ela terminava a história num tom de contrição dizendo: ‘ foi neste dia que me tornei uma ladra’. Ah, os pecados que gente não perdoa...


A mãe de Marjorie engravidava e perdia os bebês com a mesma facilidade. Ela queria muito um menino. Marjorie sabia disso porque a irmã mais velha, Bernice, havia contado para ela. ‘Minha mãe nunca conversava comigo, só com minha irmã mais velha e com a mais nova’, ela me contou várias vezes. E depois ela continuava a história; 'naquele tempo, você sabe, as mulheres tinham filho em casa. Um dia minha mãe gritou muito. Depois apareceu a parteira com o bebê enrolado num pano e minha mãe berrou de trás da cortina: Marjorie não pode ver. Só mostre para Bernice'. Mais tarde, Bernice contou que o bebê estava preto.



Marjorie não tem ideia de quantos filhos sua mãe perdeu. Ela se lembra de voltar para casa um dia e ver a mãe assentada perto da janela, muito triste, com o olhar vago, a cabeça raspada e todos os dentes arrancados. Um médico teria dito para a mãe dela que o único jeito de salvar o bebê, que ela carregava, seria cortando todo o cabelo e extraindo todos os dentes da boca. Marjorie faz uma pausa e revela pela primeira vez que ainda guarda a trança da mãe em algum canto da casa, e que ela não se lembra mais aonde. Depois suspira e acrescenta: ‘guardei este cabelo por tantos anos e em breve ele não vai fazer sentido para mais ninguém'...


Marjorie agora é adulta. Ela consegue um emprego de desenhista de projetos. Era só trabalho, ela diz. O chefe dela tem uma filha famosa, uma atriz e bailarina chamada Moira Shearer, que estrelou um filme chamado The Red Shoes. O pai de Moira a leva ao ballet uma noite. ‘Ele era um homem muito distinto. Estendeu os braços, com uma autoridade que eu nunca tinha visto e chamou um táxi. Eu nunca tinha entrado num táxi’, ela conta. ‘Jamais teria tido coragem de chamar um táxi’. Eles vão ver uma apresentação de Margot Fontyen. Depois do espetáculo, vão os quatro comemorar: Moira, o pai, Margot Fontyen e Marjorie vivendo seu dia de Cinderela.

Cena do filme 'The Red Shoes' 

O escritório, onde ela trabalhava, ficava no andar acima do gabinete onde Churchill despachava. Ela topou com o homem algumas vezes, até que a situação em Londres ficou perigosa demais por causa dos bombardeios. Os anos da Segunda Guerra foram os anos dourados da vida de Marjorie.


Marjorie foi levada para o norte da Inglaterra, em Yorkshire, longe das bombas. Foi morar com uma fazendeira amorosa, cujo marido tinha ido defender o país. Durante o dia, ela e a família trabalhavam duro. À noite, as mulheres se assentavam na sala e ouviam atentas as notícias de guerra pelo rádio. Elas rezavam para que o homem da casa voltasse inteiro e respirando.


A casa era cheia de crianças e de vida. Mesmo durante a guerra, na fazenda não faltava comida. Um dos meninos costumava levar nozes para ela. Vinha com as mãozinhas imundas e um sorriso no rosto. O outro menino havia perdido um olho num acidente na fazenda. ‘Antes de dormir, ele usava a ponta de uma caneta para retirar o olho de vidro e colocar num copo. Trocamos cartas até a morte dele. Mesmo com um olho só, ele viveu uma vida plena e feliz’.


Os vizinhos se juntaram e compraram uma bicicleta para Marjorie. Foi o primeiro presente que ganhou na vida e o mais valioso de todos, o que ela nunca esqueceu. A bicicleta foi seu salvo-conduto para novas descobertas. Nos fins-de-semana, ela, que havia passado a infância claustrofóbica sessenta e cinco degraus acima, experimentava os espaços abertos e o ar livre. Saía pedalando assim que sol raiava e só voltava antes de escurecer.

Marjorie recebeu quatro propostas de casamento. A todas deu a mesma resposta: não seria apropriado. Ainda mocinha ela saiu com um rapaz. ‘Ele foi um bruto. Voltei para casa e minha mãe quis saber por que meu vestido estava amassado. Nunca contei’. A experiência traumática foi decisiva. Mas também ela não era mulher de obedecer a homem nenhum. Marjorie tinha alma que não se tranca.


Depois da guerra, ainda jovem e independente, sem filhos e outras obrigações, ela passou alguns verões nos Alpes suíços e austríacos, fazendo o que mais gostava, celebrando a natureza. Tinha adquirido o gosto pelas montanhas e o ar puro. Os espaços abertos combinavam com ela.

Hoje fui ao hospital me despedir. Marjorie foi internada há menos de uma semana. Foi tudo rápido. Descobriram que um câncer está lhe comendo o pâncreas. Até duas semanas atrás, ela estava bem, se virando sozinha. Marjorie tinha horror de ir parar num asilo claustrofóbico, cheio de regras, que não eram as dela.


Ela está partindo como sempre viveu; em seus próprios termos. Dona de seu destino.
 (Abril / 2012)



* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias.  O Da Ilha também tem suas histórias ‘da gaveta’. São impressões de quando eu ainda era novata no Reino da Rainha.