Dia de eleição no
Brasil, mas aqui na Inglaterra é tudo muito distante. Amanheceu céu lindo,
depois de muitos dias cinza e de um temporal ontem. Preferia mil vezes fazer
uma caminhada, ver as cores do outono e dar um tapinha na vitamina D, porque
daqui em diante a coisa só vai piorar, a escuridão vai dominar os dias e sair
sem casaco nem pensar até a primavera.
Só tinha eu na
minha metade do vagão, no trem que ia até Wimbledon. Duas estações pra frente e um sujeito de uns
vinte e poucos anos espera a porta abrir para entrar no trem. Ele usa um terno
preto, que gostaria de ser casual e alinhado, mas que na verdade é só esquisito
mesmo. Ele é um tipinho franzino com uma maleta 007 metálica. O cabelo preto e
farto ganhou uma escova antes de sair de casa. Ele ajeita o topete, dá um
trejeito no pescoço, a porta abre e ele entra.
Com um vagão inteiro para escolher, ele pede licença e senta exatamente
na minha frente, nossos joelhos quase se tocam e eu dou uma arredadinha pro
lado. Ele diz que o trem não irá até o ponto final hoje, domingo. Agradeço pela
informação que não pedi e digo que só vou até Wimbledon. Wimbledon, ele diz e
faz uma pausa. Eu também.
Saco a minha
melhor cara de paisagem e faço de tudo para não olhar para o homem. Ele começa
a cantar a La Boheme. Mais a frente, do outro lado do vagão um grupo de
tenistas faz muito barulho. A estação de Wimbledon é a próxima. Vejo que eles
vão se levantar, eles ajeitam suas bolsas com raquetes e me levanto para sair
antes deles. Ai o trem empaca. Cinco longos minutos sem se mexer e o doidão
alisando o topete com uma mão e a maleta 007 com a outra. Imagino que deva
estar cheia de tranqueiras, mas e se tiver armas? O autofalante anuncia que se
você vir algo de extraordinário, que, por favor, informe o mais rápido
possível. Penso que talvez fosse melhor ir para outra porta. As malas com as
raquetes bloqueiam o corredor. O sujeito canta outro trecho da música. Os
rapazes ficam em silêncio observando o sujeito também. O trem começa a se mover
e ele bate palmas de um jeito teatral, abrindo os braços e fechando. Os rapazes
caem na gargalhada. Saio em disparada para pegar outro trem até Waterloo.
A peregrinação
cívica continua a bordo do 139. O ônibus cruza a ponte sobre o Tâmisa e me faz
suspirar. O southbank, mesmo depois destes anos todos morando aqui, ainda me
emociona, principalmente num dia de sol. Passamos por Trafalgar Square e a
praça está fervilhando de turistas. Um homem beija um dos leões enquanto a
namorada tira a foto. Mais adiante uma fila de dar volta no quarteirão. Vejo de
relance o selo da república do Brasil. Ai! Será que o consulado mudou? Da
última vez não tinha essa fila não. Este
é o primeiro ano que a eleição aqui acontece no Consulado e na Embaixada.
Resolvo ir até Oxford Street e procurar o consulado, que fica numa travessinha.
Lá havia duas filas, uma à direita da porta e outra à esquerda. Antes de chegar à fila, passei por um
corredor polonês de crentes tentando ganhar o voto do eleitor para a causa do
altíssimo. Uma das filas era para quem ainda não tinha buscado o título e não
sabia onde iria votar. Fui para outra fila, que andava rápido. O tempo de ver
um moço responder a um questionário da Globo Internacional sobre seus hábitos
de consumo. Havia também pilhas de revista Leros (que os gringos chamam de
Lerróz), a revista do brasileiro na Inglaterra.
Mostro meu
título e me informam que a minha seção fica no terceiro andar. O prédio do
consulado é antigo e bem bonito. Uma eleitora rechonchuda diz que quer ir de
elevador. A funcionária do consulado avisa que o elevador demora muito. Ela diz
que é ‘preguiçosinha’ e que vai esperar. Subo de escada e quando chego ao
terceiro andar, nem sinal dela. Uma pessoa está votando na minha seção e outra
espera na minha frente. A sala ao lado está vazia. Chega uma eleitora. A
mesária aponta para um papel pregado na parede com os nomes e números dos
candidatos à presidência. Ao ver a cola, a moça se mostra aliviada e começa e
examinar a lista. Quando saio da minha seção eleitoral, ela ainda está
estudando a lista. Pergunto: e aí, votou? ‘Ainda não, tô meio indecisa, ela
responde sem tirar os olhos do papel’. Dentro do consulado, com tanta gente
falando português, eu quero puxar assunto com todo mundo, conversar, só porque
é tão mais fácil... Em pé na porta do
elevador, uma funcionária do consulado manda todos desçam de escada. Ela diz
para a rechonchuda, vai ser um bom exercício. Sabe quando é que um inglês ia
dizer isso?
Já no ponto do
139, vejo o desfile de brasileiros pela Oxford Street. Tem camiseta de time, um
povo que me é muito familiar. Fico aproveitando o sol e os sons conhecidos,
quando vejo uma mulher de burca (daquelas que só deixa os olhos de fora) passar
falando ao telefone. Acho que ela está falando em português. Será? Me aproximo
para ter certeza. Ela reclama que vai ter que ir até a embaixada para votar e
que o filhinho dela já está cansado. Vem outra brasileira e diz que também vai
ter que ir até a embaixada e reclama da falta de organização. Sem querer ser
muito chapa branca, eu quase falo que no site do consulado estava tudo
explicado, Tim-Tim por Tim-Tim. Não falo nada. Ai uma diz que é um absurdo ter
que votar. ‘ Se ao menos a gente ganhasse alguma coisa com isso, né?’ Viro o rosto e faço de conta que não ouvi
essa pedrada. Elas não sabem como chegar até a embaixada e eu digo para pegar o
mesmo ônibus que eu, que eu mostro onde é.
Entro no ônibus
e vejo a mulher de burca entrando com o filhinho. Chamo o menino para assentar
ao meu lado, enquanto a mãe procura o cartão de transporte. A brasileira
perdida também quer ir, mas os ônibus não aceitam mais dinheiro, só o Oyster
Card ou então os passes de um dia. A moça não sabe falar inglês e não entende
porque o motorista quer que ela saia do ônibus. A mulher de burca vai ajuda-la,
mas sem cartão, não há jeitinho brasileiro que resolva. A moça desce do ônibus e a mulher de burca
senta-se ao meu lado com o filhinho no colo. Ela conta sua história.
Nasceu em São
Paulo e mudou-se para a Espanha com a filha. Lá ela conheceu o marido, um
espanhol árabe. Eles ficaram amigos por um ano até que ela se converteu ao islã
e eles se casaram. Pergunto quantos anos tem o menino e ela responde trinta e
sete. Eu rio e digo que eu não perguntaria a idade dela. Ela acha engraçado e
dá uma gargalhada sonora. Fico imaginando como será a boca, que o véu esconde.
Mesmo toda coberta, dá para perceber que ela é uma mulher vaidosa. Tem olhos
bonitos e expressivos, delineados por um lápis bem preto. O punho da camisa é decorado com pedacinhos
de cristais que formam um diamante. As unhas impecáveis. Brinco com o menino,
enquanto ela me diz que não vai ao Brasil há sete anos. ‘Desde que meu pai
morreu, não tem mais sentido’. Pergunto se ela era mais próxima do pai e ela
quase chora. Diz que os dois se entendiam bem. A família é de testemunhas de
Jeová. A mãe não a perdoa e avisou que não quer que ela apareça por lá vestida
deste jeito. O irmão falou que se ela não está com ele, está contra ele. O que
eu vou fazer no Brasil? Ela pergunta sem esperar resposta.
Mais adiante
aponto para a fila da embaixada. Ela diz que devia ter levado outro filho, um
maiorzinho. Eu digo para ela por o menino no colo e ver se eles deixam ela ir na frente. Ela fala como se estivesse
me contando o segredo mais bem guardado do mundo: ‘todo mundo olha para mim’ e
acrescenta:’ É, vai ser como no Brasil,
vou carregar meu filho e tentar furar a fila’. Nos despedimos e eles descem.
A gente sai do Brasil, mas o Brasil não sai da gente.
(5/10/2014)
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