sábado, 31 de janeiro de 2015

Pele de Raposa



 
 
 
Antigamente elas frequentavam os ambientes mais exclusivos de Londres. Acompanhavam as mulheres mais chiques. Invariável e definitivamente mortas, elas desfilavam enroladas ao pescoço das ricas e aristocratas. Hoje já não podem mais ser caçadas e tampouco esquentam os cangotes da mulherada. Nem por isso sumiram da cena urbana. Vivinhas da Silva, elegantes, curiosas e atrevidas, as raposas estão bem presentes nas cidades desta ilha. 





 
                           
 
 
A raposa do vídeo acima ganhou seus vinte e sete segundos de fama ao visitar um Café no centro de Londres essa semana. Repararam na quantidade de gente filmando a nova celebridade? Anos atrás, uma prima distante da saidinha do vídeo entrou de penetra numa festa aqui em casa. Era verão e comíamos no jardim, para comemorar meu aniversário. A descarada chegou na maior cara de pau. Sentiu o cheiro de carne e se convidou. Caminhou entre as pernas dos convidados e saiu como chegou, sem pedir licença. Danada roubou minha festa. O resto do dia foi tomado por conversas que giraram em torno das raposas. Todo mundo tinha um caso para contar.  
 
 
 
Penetra no quintal de casa
 
 
Turista, que é turista com ‘T’ maiúsculo, chega em Londres e tira foto de ônibus de dois andares, cabines vermelhas de telefone, dos leões da Trafalgar Square e de esquilinhos no parque. São as fotos mais clichê da cidade. Tanto que os bichinhos já aprenderam a capitalizar, fazem pose e chegam bem pertinho. É só oferecer comida, que os esquilos vêm alegres e sorridentes. Esta última parte por minha conta – para enfeitar um pouquinho o texto. O que os turistas nem sempre percebem é que vida selvagem urbana, além de roedores e pombos, que muita gente considera ratos alados, também tem as raposas. 

 
 
Quem mora na Inglaterra com certeza já viu pelo menos uma raposa andando pela rua, em parques e quintais. Apesar de viverem bem perto dos humanos, ainda são selvagens e arredias. Daí o espanto dos frequentadores do Café de Londres e de meus convidados. As raposas não chegam muito perto, são ariscas, desconfiadas e medrosas.
 

De vez em quando a gente ouve notícia de uma raposa que entrou em casa e trouxe pulgas de presente. Ou então que o gato de uma vizinha levou a pior numa briga. Sem contar nos coelhos, porquinhos da índia e galinhas que viraram jantar de raposa. Outras vezes as notícias são muito mais tenebrosas. Tem um caso famoso que até hoje habita o imaginário local e tira o sono de muitos pais. Uma raposa aproveitou que a porta do quintal de uma casa em Londres estava aberta e entrou. O casal assistia tevê na sala. Sorrateira, ela subiu a escada e atacou duas bebezinhas de nove meses. As gêmeas Lola e Isabella sofreram ferimentos graves nos braços e rostos. O caso aconteceu em 2010 e desde então as meninas já passaram por várias cirurgias reconstrutivas.
 
 
 
Meninas atacadas por raposa
 
 

 

 

A boa notícia é que ataques como o das gêmeas, embora terríveis, são extremamente raros. Todos os dias no Reino Unido, pelo menos dez pessoas procuram o pronto socorro porque foram vítimas de ataques de cachorros, que são animais domésticos. De acordo com as entidades de proteção à vida selvagem, se for contar nos dedos, o número de vítimas de raposas não dá para encher uma mão por ano.
 


O ataque às gêmeas foi péssima publicidade para a causa das raposas. Eu mesma volta e meia deixava algum resto de comida no quintal, para alimentar as visitantes noturnas. Na época do ataque, o assunto, é claro, dominou a mídia. Uma das recomendações repetida exaustivamente foi que não se alimentasse as raposas, porque elas ficam cada vez mais confortáveis e confiadas. Depois que acabei com a boca livre, minhas freguesas foram se servir em outra freguesia. Sumiram até que, em dezembro de 2013, uma resolveu morrer  bem no canteiro em frente de casa. 


 

Cheguei da rua num sábado à noite e notei a raposinha prostrada. Ela mal se mexia. Fiquei com pena. Busquei um pouco de água e um pouco de leite e deixei lá para ela. Na manhã seguinte, ela estava morta. Uma encrenca.  A previsão do tempo anunciava uma ventania de proporções bíblicas para o dia seguinte. O transporte provavelmente seria afetado e as pessoas deveriam ficar em casa. Passei horas tentando entrar em contato com a administração regional do bairro. Olhei na internet, se a raposa tivesse morrido no meu quintal, eles não viriam. Como é uma espécie protegida por lei, não poderia (nem queria para falar a verdade) enterrá-la. Jogar no lixo também estava fora de questão (mesmo se não fosse proibido, o lixo aqui é recolhido uma vez por semana). Depois de muitas ligações e de memorizar a mensagem enrola contribuinte gravada por algum burocrata do governo, consegui que uma  pessoa de carne e osso atendesse à ligação. Garanti que a raposa estava a poucos centímetros da calçada e o homem do outro lado da linha disse que ia mandar alguém buscar o corpo. Fiquei na tocaia o dia todo. Vieram dois homens num caminhão de lixo. Meteram umas luvas encardidas nas mãos. Abriram um grande saco transparente e sem cerimônia levantaram a raposinha pelo rabo. Num instante ela estava embalada. Um deles arremessou o pacote na caçamba. Deu um risinho de quem acertou o alvo de primeira. Pelo jeito como trabalhavam, vi que não era o primeiro bicho morto que eles recolhiam. É meio ridículo, eu sei, mas depois que eles se foram,  meu marido e eu ficamos um tempo em silêncio. Só não sei se foi pela alma da raposa ou pela crueza da morte.

 

 


Sentimentalismo patético, diriam os caçadores de raposa. Coisa de gente da cidade, que compra carne no supermercado e nem pensa que alguém teve que abater o animal. A caça à raposa era uma das tradições mais fortes da vida rural britânica. Era. Não é mais. O vídeo da raposa no Café em Londres coincide com o aniversário de dez anos da proibição à caça. Foram anos de lobbies e brigas até que finalmente o Parlamento passou a lei.

 
 
Protesto no Parlamento
 
 
A caça, com dezenas de cachorros encurralando uma raposa, que não tinha a mínima chance de se defender, ou escapar, era para os ingleses o que as touradas são para os espanhóis. A história mudou. Sabe safari na África onde os turistas miram suas câmeras e não suas armas para os animais selvagens? Pois é, nesta ilha, dez anos depois da proibição à caça da raposa, a tradição está ressurgindo com mais força. Só que repaginada. Os ‘caçadores’ também não usam mais espingardas. O que os cães farejam é um pedaço de trapo, impregnado com urina de raposa. É como uma caça ao tesouro, uma oportunidade para as pessoas da comunidade se reunirem e participarem de um evento social. Aliás, o caráter social e cultural da caça era um dos argumentos mais fortes dos que se opunham à proibição.
 
 
 
 
 

A raposa do Café virou celebridade neste tempo em que todo mundo grava na memória, não a da cabeça e sim a do celular, as imagens que marcam. E não basta só registrar. Tem que compartilhar. Na constelação de imagens que pipocam na internet a cada segundo, esta fez sucesso.  Talvez porque, por mais urbanóides que estejamos, ainda somos tocados pela vida selvagem. Uma vida que resiste e insiste em nos chamar. Coisa de origem. 
 
 
 
 
 
 

 
 

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Chame a Parteira




A mulher arrasta os pés pelo corredor longo de portas fechadas. A luz fria engana; é dia ou noite? O cheiro de desinfetante e drogas arranha o nariz. O som de gritos, choros e gemidos atravessa as portas e fura os ouvidos. O coração bate acelerado. Dois passos adiante, andando eficientemente, segue outra mulher, imune à luz, ao odor e ao barulho. Nestas horas a ironia é irresistível.‘Vocês dão beliscão nelas?’ Pergunta a mulher que se arrasta. A outra dá uma piscadela antes de abrir a porta de um quarto vazio. As duas entram. Pouco depois é a vez de a mulher gritar, gemer e chorar. Falam por aí que a dor do parto é uma das mais doídas.  







  

Não sei de você, mas sou daquelas que se emociona com cena de bebê nascendo em livros, filmes e novelas. Pode ser o filme mais podre, com os atores mais canastrões do planeta. Não importa. Fico comovida do mesmo jeito. Deve ter mais gente como eu. Digo isso porque desde janeiro de 2012 o ‘Call the Midwife’ (exibido no Brasil pelo canal BBC HD com o nome de Chame a Parteira) é um dos maiores sucessos da tevê britânica. No ano passado, alcançou uma audiência consolidada no Reino Unido de quase onze milhões de telespectadores, batendo o famoso Downton Abbey da concorrência. A série, já na quarta temporada, mostra o drama de parteiras no pós-guerra, num dos bairros mais pobres de Londres.

 
 
Call the Midwife
 
 



A palavra ‘midwife’ vem do inglês antigo, quando ‘mid’ era ‘com’. Então ‘midwife’ significa com a esposa, com a parturiente. Em português, parteira. A palavra parteira ainda me remete à ideia de uma mulher mais experiente, embora sem treinamento formal, numa comunidade rural e sem recursos, que ajuda outras mulheres a terem os filhos em casa. A parteira daqui é muito diferente dessa imagem romantizada.
 
 
As midwives atendem à maioria dos partos no Reino Unido. Elas são enfermeiras treinadas em obstetrícia. Mas não são enfermeiras, são midwives, que é outra especialidade. Para se chegar lá, é preciso fazer um curso universitário que varia de três a quatro anos de duração. Quem já tem diploma em enfermagem, pode fazer uma especialização. A profissão é tão valorizada na Inglaterra, que o governo paga as mensalidades da faculdade e oferece uma ajuda de custo às estudantes (a grande maioria mulheres, mas não exclusivamente). Universidade aqui é paga.

 

As midwives são responsáveis pelo pré-natal. Se a gravidez é normal, de baixo risco, a mulher não se consulta com o ginecologista, só a midwife. Ela também faz o parto, no hospital ou em casa e cuida do pós-natal, até 28 dias depois do nascimento. Algumas delas ainda trabalham em clínicas de planejamento familiar. Em dezembro do ano passado, o National Institute for Health and Care Excelence (Instituto de Excelência em Saúde e Cuidados, em tradução livre) publicou uma recomendação relativa aos partos. Em resumo, diz que os centros conduzidos por midwives são ainda mais seguros do que os hospitais, em se tratando de gravidez de baixo risco. Ressalta que o número de anestesias, cortes cirúrgicos no períneo e uso de instrumentos (fórceps) nos partos é significativamente menor. O número de partos que resultam em cesarianas é o mesmo dos hospitais.

 

É mais seguro mesmo? A verba alocada ao NHS, o serviço nacional de saúde do Reino Unido, não paga apenas o salário dos profissionais envolvidos, medicamentos, manutenção e equipamento. Boa parte do dinheiro acaba sendo gasta em compensações. O setor que recebe a maior fatia deste montante é o de ginecologia e obstetrícia. O NHS pagou mais de três bilhões de libras em indenizações por barbeiragens em partos entre os anos de 2000 e 2010. Isso soma doze bilhões de reais! Um número que cabe redondinho nas manchetes de jornais. Um escândalo da saúde pública. Mas com números, todo cuidado é pouco. Todo mundo sabe que, quando bem torturados, os números contam qualquer história. Então é melhor olhar essa história com calma.  



As compensações relativas aos partos são maiores porque as vítimas que, por exemplo, sofreram falta de oxigenação cerebral durante o nascimento, vão precisar de cuidados pela vida toda. Em muitos casos nunca vão conseguir trabalhar e serão dependentes.  O que quer dizer que o valor pago a cada um dos processos é maior do que em outras áreas. Além disso, o número de ações cresceu, porque aumentou o número de partos. Mas não foi somente o número de nascimentos que subiu, aumentaram também os escritórios de advocacia que trabalham na base do ‘no win, no fee’, se não ganhar a causa, não paga nada. O que estimula mais pessoas a entrarem com processos judiciais e cria uma cultura mais litigiosa. O fato é que menos de um em cada mil nascimentos resulta em um destes processos. É claro que para as famílias afetadas, esses números não significam absolutamente nada. Entretanto, o NHS garante que o Reino Unido é um dos lugares mais seguros do mundo para se dar à luz, embora reconheça que por vezes a falta de parteiras e profissionais experientes pode gerar complicações e até mortes.
 
 

A brasileira Tatiane Del Campo é fã de carteirinha das midwives e do modelo inglês. Ela teve os dois filhos aqui. Disse que a informação que recebeu durante a gravidez foi fundamental. Sabia o que esperar. Perto do dia esperado para o nascimento de seu segundo filho, a mãe dela veio ajudar. A bolsa rompeu e a dona Paula começou a insistir para que a filha fosse para o hospital. Tatiane disse para a mãe relaxar. Em Roma, faça como os romanos. Explicou que, só quando as contrações são intensas, a mulher fica na maternidade. Se chegar lá antes da hora, a gestante é mandada de volta para casa. Tatiane levou o conselho ao pé da letra, controlou a frequência das contrações e até saiu para dar uma volta no quarteirão, para o horror da avó da criança. Voltou para casa e tomou um loooongo banho de chuveiro (falta d’água não era problema). Sentiu uma contração mais forte. Estava na hora. Ligou para o hospital e foi aconselhada a esperar por uma ambulância. Ela não queria ter filho em casa. Correu com o marido para o hospital. Dois minutos depois de dar entrada, nasceu o Gabriel. Tatiane virou lenda na maternidade, a parturiente mais rápida deste lado da ilha. Um recorde aplaudido com bom humor pelas midwives de plantão e que ela conta com um sorriso orgulhoso. 




Os recordistas Tatiane e Gabriel
 


 

Ao contrário de Tatiane, Siobhan Mc Brien não quis ter o terceiro filho no hospital. Os dois primeiros haviam nascido de parto normal, sem anestesia numa maternidade. Quando ficou grávida do terceiro, um surto de infecção hospitalar ocupava as manchetes dos jornais. Siobhan, que já não gostava de hospital, procurou sua médica generalista. Ela incentivou o parto em casa e indicou uma midwife, que fez todo o acompanhamento do pré-natal. Quando entrou em trabalho de parto, a midwife foi até a casa dela com uma estudante, que nunca tinha ajudado num parto. Siobhan conta que foi uma experiência única e inesquecível. Teve a filha em seu quarto, acompanhada do marido e das parteiras. Assim que Beth nasceu, a estudante chorou de emoção.

 

 

 

 
Beth nasceu em casa

 

 
Antes do nascimento de Beth, Siobhan pensou em ter a segunda filha em casa, mas morava em outro bairro e o médico local não gostava da ideia. Para ela, ainda existe muita resistência quanto ao parto em casa. Ela disse que não teve medo e que, se houvesse alguma complicação, o hospital era perto de casa. Um estudo conduzido na Holanda e publicado em 2013, revela que o número de complicações sérias em partos feitos em casa é menor do que nos realizados em maternidades. Um em cada mil em casa. Dois ponto três em cada mil nascimentos em hospitais. 


 

Óbvio  que nem todos os partos são naturais. Um em cada quatro nascimentos no Reino Unido acontece por cesariana, que é classificada como uma cirurgia de grande porte. Um aumento de 25% desde a década de 70. O governo considera um número alto. Quer reduzi-lo. Tanto que uma das recomendações publicadas no site do NHS é que, se a mulher insistir em ter uma cesariana porque está ansiosa com a perspectiva de um parto normal, então ela deve ser encaminhada a um profissional da área de saúde mental.   




As cesarianas podem ser planejadas ou de emergência, dependendo de cada caso. Se correr tudo bem, a mãe e o bebê passam duas noites no hospital. Tatiane e Gabriel voltaram para casa duas horas após o parto. Nos partos normais, se não houver nenhuma complicação, mãe e bebê vão para casa no mesmo dia. Depois disso,  são acompanhadas em casa por parteiras e ‘health visitors’, agentes de saúde. Elas dão aconselhamento sobre como cuidar do bebê, amamentação e checam se a mãe corre risco de depressão pós-parto.
 
 

Quando a grávida vai para o primeiro exame de pré-natal na Inglaterra, ela sai carregada de folhetos informativos, um livreto sobre gravidez e parto e cupons.  Um dos cupons é para receber uma caixa cheia de fraldas, amostras grátis e outros brindes. É uma delícia o dia em que a caixa chega em casa. Parece que a gravidez fica ainda mais real. A futura mãe é aconselhada a tomar parte em cursos de pré-natal, no hospital ou os promovidos pelo NCT (National Childbirth Trust) , que é a maior organização de caridade direcionada aos pais. Nestes cursos, a gestante aprende sobre a gravidez e o parto, além de cuidados com o recém-nascido. Fiz o do NCT, que quando nada é uma oportunidade de se conhecer outras pessoas que estão no mesmo barco. Durante o curso, eles batem muito na tecla do parto natural. Falam de como os anestésicos podem ser prejudiciais para o bebê. Também recomendam fazer um plano de nascimento e entregá-lo à midwife na hora do parto. Marinheira de primeira viagem e caxias, fiz tudo isso. No plano, meu marido dizia que gostaria de cortar o cordão umbilical. Na hora H, o plano foi ‘pras cucuias’, ninguém se lembrou dele. Lição um de maternidade: esqueça os planos.  



Esta foi uma lição que a brasileira Luciana Auler aprendeu a duras penas. Entrou na maternidade com muitas expectativas e seu plano bonitinho debaixo do braço. Estava determinada a ter o parto na piscina e sem anestesia. A história é longa, ela foi para a maternidade às 7:30 da manhã. Lucas nasceu às 9:30 da noite, de cesariana. Luciana é muito grata aos cuidados que recebeu, mas se sentiu como se tivesse falhado. Todos eram muito gentis com ela, mas ela se sentia julgada. O segundo filho ela foi ter no Brasil.



 
Luciana, que tinha tudo planejado e Lucas





Como Luciana, conheço Tracey e Katie, que queriam muito um parto normal. Tracey passou quarenta! horas em trabalho de parto, Katie trinta e oito . As duas tiveram filhos por cesariana. 
 

Foi um alívio quando saiu o anúncio de que o parto de Kate Middleton , mãe do mais novo herdeiro real, tinha sido normal. Como se sabe, o bom exemplo deve vir de cima. Se ela tivesse passado por uma cesariana, não teria caído bem. Por aqui as revistas  femininas (e nada feministas) castigam as celebridades que têm filhos de cesariana. Essas mulheres são taxadas de ‘too posh to push’ - chiques, importantes demais para fazer força (na hora do parto).

 



Call the Midwife

 

 

Informação honesta, profissionais bem treinados e planejamento são fundamentais. É inegável. Como disse a Tatiane, existe aqui uma cultura que não só favorece como estimula o parto natural. O importante é que a mulher, esteja em que país estiver, não se sinta coagida, fracassada, pressionada e muito menos julgada pela forma como trouxe uma nova vida a este mundo.


 

 

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Infeliz Aniversário



Gosto de fazer aniversário até hoje. Sempre gostei. Minha mãe, que tinha cinco filhos em casa e ainda trabalhava fora, caprichava nas festas. Chegava do trabalho e, nas noites que antecediam a festa, preparava para os convidados pequenas surpresinhas, às vezes feitas de isopor. Eu achava que ajudava, mas hoje em dia tenho minhas dúvidas se era ajuda. Adorava vê-la ocupada em preparar festa para mim. Na véspera do aniversário, as crianças da casa brigavam para enrolar os brigadeiros, abrir as forminhas, tarefa que ninguém queria, e para raspar as panelas. Os primos chegavam. Os amigos também.  Coxinhas, cigarretes (coisa mais antiga) e empadinhas, as minhas favoritas. Brincávamos, corríamos e comíamos sem nem nos lembrarmos que os adultos existiam. Era tudo festa e diversão descomplicada.


No Brasil, mesmo quando se marca hora para uma festa, a gente sabe que a festa começa quando a festa começa. E acaba quando acaba. Na Inglaterra não é bem assim. As crianças são convidadas para uma festa e o convite vai escrito num cartão, que tem um toque da etiqueta francesa, o RSVP - répondez s'il vous plaît, que pede que se responda confirmando ou não a presença.  Os convites são entregues com pelo menos três semanas de antecedência.


 
Convite de festa







O convite deixa claro o horário em que a criança deve chegar e quando os pais devem buscá-la. Varia entre duas e quatro horas de festa. Os menorzinhos ficam menos tempo. Quando as crianças são pequenas, em geral o pai ou a mãe fica na festa. Mas eles que não esperem encontrar um lugar decente para assentar, petiscos e muito menos cerveja ou vinho. A festa é da criança para crianças. O adulto é apenas um acessório e como tal deve ficar o mais invisível que puder. Ah, nem pense em levar o irmãozinho ou irmão mais velho da criança convidada.




As  festas acontecem na casa da criança, ou num salão, que pode ser de uma igreja ou de um centro comunitário. Nada de centenas de balões e decoração de mesa. Nada de comidinhas rodando o tempo todo. Os anfitriões tem tudo planejado. As crianças tomam parte em brincadeiras organizadas, tipo a dança das cadeiras, jogo de estátua e o ‘pass the parcel’. Uma brincadeira em que eles passam um embrulho de muitas camadas. Cada vez em que a música para, a criança que segura o embrulho pode desembrulhar uma das camadas, que tem um presentinho (um pirulito por exemplo). Umas das regras implícitas das festas infantis é que todas as crianças convidadas vão ganhar um dos presentinhos. Garantido. O pai vai parando a música toda vez em que a mãe faz um sinal. Outra regrinha básica dos ‘party games’, os jogos de festa, é que o dono da festa tem o direito de ser o primeiro em tudo. Quando eu era criança, meus pais ensinaram que primeiro os convidados... Outros tempos. Outro continente.




Meia hora antes do fim da festa, as crianças assentam-se à mesa e comem. Sanduíches de queijo e presunto, salgadinhos tipo batata frita e doritos. Se der sorte, pedaços de frango empanado, que foram comprados congelados, assados e servidos quando já não parecem mais muito apetitosos. Se é que já foram atraentes um dia. Pode ter também umas linguicinhas frias e murchas. Pizza, talvez. Como nem tudo é junk food, pepino em rodelas, cenoura crua cortada em palitos, tomatinhos cereja, uvas e morangos. No quesito doce, biscoitos recheados e chocolates. O bom disso tudo é que qualquer um prepara uma festa destas em menos de meia hora. A toalha de mesa, os pratinhos e os copinhos de suco são descartáveis. Não dá nem o  trabalho de lavar. Os pais, se houverem, ficam de pé ao redor da mesa, enquanto as crianças se empanturram. Se sobrar comida, ai eles se servem. Depois da comilança vem a hora de cantar parabéns. Nada de bater palma, por favor!
  









O tamanho do bolo, comprado pronto no supermercado, é sempre o mesmo.  Não importa se são seis ou trinta convidados. Em geral tem cerca de  vinte centímetros de diâmetro e uma cobertura grossa de glacê. A decoração varia. Antes de despachar os pimpolhos para casa, a mãe do aniversariante corta o bolo em fatias de mais ou menos um centímetro de espessura e embrulha num guardanapo de papel. Se for um pedaço da quina, com certeza vai mais cobertura do que bolo propriamente dito.




Numa dessas festas, quando minha filha era bem pequena, ela recebeu um pedaço de bolo. Eu disse para ela: O que você vai dizer para a mãe da sua amiguinha? Ela respondeu: Posso ter uma fatia maior?! A mãe fez que não entendeu. Eu fiz que não entendi e fomos embora levando a amostra de bolo. O bolo deve ser comido em casa e não na festa.


   




Há também as festas de escalada, de boliche, de natação, de pintura de cerâmica, em estúdio de gravação e de cama elástica. Sobrevivemos a todas elas. Varia o cenário, a locação, mas o roteiro é o mesmo. Todas com a programação afinada minuto a minuto. Todas terminando com as mesmas comidas e o bolo de sempre.




Essa conversa toda é só para falar sobre a notícia que está bombando nos sites de notícias da Inglaterra nesta segunda-feira. Não, não é terrorismo. Não, não são as últimas atrocidades do Boko Haram. O que está pegando é uma briga de pais, por causa de uma festa infantil.
É o tópico mais lido.

Em dezembro Alex, de cinco anos, foi convidado para uma festa de esqui artificial. Era o aniversário de um coleguinha de sala. O convite, claro, tinha o RSVP. O menino estava animado com a festa e os pais dele confirmaram a presença. O problema é que eles já tinham combinado com os avós do filho que o menino passaria o fim-de-semana com eles. Foi quando eles cometeram um pecado capital: se esqueceram de desconfirmar a presença de Alex na festa.



A mãe do aniversariante não gostou de levar bolo, sem trocadilhos. Quando as crianças retornaram para a escola depois do feriado de natal e ano novo, o convidado furão levou para casa um envelope pardo na pasta. Dentro dele estava uma cobrança de dezesseis libras, cerca de sessenta e cinco reais. A dona da festa estava cobrando dos pais de Alex o valor que ela havia pagado à empresa de esqui artificial para que o menino pudesse participar da festa.


O pai do garoto ficou furioso. Foi bater na casa da mulher e disse que não iria pagar a conta. O caso agora vai para um juizado de pequenas causas. Nada como viver num país de gente civilizada...


Li esta notícia em mais de um site. No da BBC, da última vez em que chequei, havia mais de mil e duzentos comentários. Óbvio que não li todos. Tenho mais o que fazer. Mas dos poucos que li, uma coisa me chamou atenção. O número de pessoas que acham que os pais de Alex são uma desgraça. Prometeram uma coisa que não cumpriram.  Claro que muitos comentários dizem que a mãe do aniversariante tinha razão em ficar chateada, mas que o comportamento dela era OTT (over the top), exagerado.


Ainda me lembro que, quando o filme Central do Brasil foi lançado na Inglaterra, muitas críticas se referiam à personagem Dora, interpretada por Fernanda Montenegro, como uma criminosa. Me senti incomodada com o rótulo que ela ganhou da imprensa inglesa. Para mim, ela era uma trambiqueira que no final se redimiu. Esse é o ponto. Aqui não existe essa de trambique. Ou se está do lado da lei, ou não. Se a Dora foi paga para escrever cartas e mandá-las pelo correio e ela não fez o que prometeu, então na lógica britânica ela é criminosa. Se o pai de Alex disse que o filho iria à festa e ele não foi, então que arque com as consequências. 


Esta visão de mundo tem implicações que vão muito além de uma festa de criança. Por um lado, cria pessoas inflexíveis, sem jogo de cintura e intolerantes. E daí que os pais de Alex se esqueceram de avisar que o menino não ia mais? Vá dizer que a dona da festa nunca se esquece de nada? Por outro lado, tem um impacto profundo em como, por exemplo, esse povo lida com a corrupção. De acordo com o Transparência Internacional, um órgão que mede a corrupção no mundo, o Brasil ocupa o sexagésimo nono lugar entre cento e setenta e cinco países. O Reino Unido é o décimo quarto colocado. Percebeu a diferença? Mas este é um assunto para outro post. 

Por enquanto fico pensando no Alex e em seu coleguinha aniversariante. Que memórias eles vão guardar das festas de aniversário?  Serão alegres e descomplicadas? Tomara que sim. Tomara que eles nem se lembrem que os adultos existiam.



quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Preço de Banana





Na primeira vez em que meu marido foi ao Brasil, fomos fazer compras numa feira de rua perto de casa. Perguntei a ele qual variedade de banana ele gostava mais. Ele olhou para mim como se eu estivesse falando marcianês. ‘Como assim? Existe mais de um tipo de banana?’ Nos supermercados desta ilha, em geral a gente só encontra uma variedade da fruta, que vem principalmente do Caribe e América do Sul: a Cavendish, uma banana prata graúda.
 
 
Caixa de bananas
 

 

Os britânicos adoram banana, é a fruta favorita deles. Tanto que consomem mais de cinco bilhões de unidades anualmente, em média 10 quilos de banana por habitante/ano. A banana é um dos produtos mais lucrativos na prateleira dos supermercados ingleses. Também é um dos mais desperdiçados. Representa 20% dos alimentos que vão para o lixo. Via de regra, os britânicos não gostam de banana madura.
 

As bananas chegam ao supermercado depois de uma viagem que pode durar meses. As frutas são colhidas ainda verdes e imediatamente resfriadas. Cruzam o oceano Atlântico até chegarem aqui em câmeras refrigeradas. O resfriamento impede que as frutas amadureçam. Uma semana antes de serem distribuídas aos supermercados, elas são borrifadas com um gás chamado etileno, que as bananas produzem naturalmente, se não houver interferência humana. A quantidade de gás vai determinar se a fruta estará pronta para o consumo em três, cinco ou sete dias. Nota 10 em tecnologia, nota 5 em sabor...
 

Os ingleses, por uma dessas razões excêntricas que ainda não compreendo muito bem, acham a palavra banana engraçadíssima e exótica. Dizem: ‘He went bananas’, ele pirou. Há vários playgrounds chamados ‘Go Bananas’ e quando misturam banana com outras cores, ‘Blue Banana’, então é o máximo da doideira.  

 

Apesar da referência lúdica à fruta, o negócio da banana não é brincadeira. As grandes redes de supermercado usam um super programa de computador para controlar o estoque. Cada vez em que uma banana passa pelo caixa, o estoque é informado. A prateleira com a fruta é a única que é estocada várias vezes por dia, todos os dias. É também um produto estratégico na briga dos supermercados por mais clientes. O que é bom para o consumidor, mas péssimo para o produtor.
 
 
 
Bananas em oferta
 

 

Anos atrás eu estava num supermercado olhando para as bananas e pensando em quantas deveria comprar, quando uma inglesa sorriu para mim e disse: ‘eu compro as Fairtrade. Você devia pensar nisso’. Não quis fazer o que meu marido havia feito na feira no Brasil. Não quis passar recibo de que o que ela estava dizendo era marcianês para mim. Só dei um risinho e me fiz de entendida. Ah, é, disse antes de pegar uma pequena penca com um adesivo Fairtrade colado na casca. Quis dar uma de bacana, mas na verdade não sabia nada sobre o Fairtrade. Voltei para casa e pedi ajuda ao pai dos burros, o bisneto do dicionário, Mr Google.




No Brasil muita gente conhece o ISO 9001, que certifica a qualidade de serviços e produtos, como móveis por exemplo. É bom para o fabricante ter o selo de qualidade, agrega valor ao produto. O Fairtrade, ou comércio justo, não é a mesma coisa, mas é semelhante em alguns aspectos. Como no caso do ISO 9001, para conseguir a certificação, o produtor precisa atender a uma lista de exigências.   

Imagine a cena, você vai ao supermercado. Lá se depara com duas gôndolas cheias de bananas com preços diferentes, uma mais cara do que a outra. Fora isso, as frutas são iguais; mesmo tamanho, variedade e procedência. Ainda assim, mesmo sabendo que elas são iguais, você decide pagar pela mais cara.  Ficou bananas? Pirou? Tem gente que faz isso? 

 

Tem. Muitos consumidores preferem pagar mais caro pela fruta. Ao comprarem um produto com o selo de comércio justo, eles aceitam ‘rachar’ a conta da remuneração decente ao produtor. O produtor vai receber um preço justo por seu produto, seja ele banana, chocolate, chá ou café, só para citar alguns.
 
 
Chocolate com o selo Fairtrade
 

 

O Fairtrade é uma alternativa ao comércio convencional. O consumidor assume seu papel de responsabilidade na cadeia produtiva. Ele cria uma demanda pública por produtos que ofereçam às organizações de produtores condições para eles investirem em sustentabilidade, produtividade e desenvolvimento rural. Traz enormes benefícios principalmente para o pequeno produtor.  Atualmente o Fairtrade beneficia um milhão e trezentos mil produtores em setenta países. Aqui vai um link para quem quiser se informar mais: http://www.fairtrade.org.uk/en
 
 
Bananas certificadas
  

 

Outro dia um amigo brasileiro estava contando que quando vem visita do Brasil, a casa dele fica cheia de sacolas de compras e embalagens. Nós brasileiros adoramos gastar dinheiro no exterior. Muita gente chega aqui com o nome de uma loja na ponta da língua: Primark. A Primark é irlandesa e tem lojas na Áustria, Portugal, Espanha, Bélgica, França, Holanda, Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido. É o templo da moda descartável e barata, muito barata.
 
 
O templo da moda descartável
 

Antes de escrever esse texto passei por lá. Interesse puramente jornalístico é claro. Encontrei várias ofertas. Como um casaco masculino de inverno por dez libras, cerca de quarenta reais.
 
 

Casaco Masculino a R$ 40

 
 

Por causa dos preços baixos, a Primark é frequentemente acusada de explorar  mão-de-obra barata, principalmente em países asiáticos. É a primeira a levar pedrada quando surge esse assunto. É só olhar o preço nas etiquetas das roupas para concluir: a Primark está fazendo exatamente o contrário do que o Fairtrade prega e lucrando horrores. Em novembro, ao divulgar os resultados de 2014, a empresa afirmou que foi um ano ‘magnífico’ com um aumento de 30% dos lucros. Nada mal. Mas é isso mesmo? O maior sucesso da High Street (como os ingleses chamam o comércio varejista) é a Cruella Deville das lojas? A Primark é a maior vilã do comércio?
 

Ninguém duvida que várias empresas vão buscar fora matéria-prima e mão-de-obra baratas. Faz parte do jogo do capitalismo, quanto maior o lucro, melhor. Mas é falsa a ideia de que as lojas que vendem roupa barata exploram o trabalhador e as lojas que vendem roupas caras não fazem a mesma coisa. Um estudo publicado por uma organização chamada Clean Clothes mostra que marcas de luxo como Prada, Hugo Boss e Dolce Gabbana não ficam atrás da Primark quando o assunto é remuneração da mão-de-obra*. A Burberry resolveu fechar suas fábricas no Reino Unido em 2007. Mudou a produção para China, porque queria aumentar a margem de lucro em um milhão e meio de libras por ano.

O assunto é complexo demais para um post só. Há os que argumentam que um chinês ganha muito menos para fazer um casaco igual ao vendido na Primark do que um inglês receberia na Inglaterra pelo mesmo serviço . Mas o custo de vida na Inglaterra é muito mais caro e, embora a remuneração paga ao chinês seja pequena, ele recebe mais do que ganharia trabalhando nos campos de arroz por exemplo.
 


Em 2011, a Primark ganhou o status de líder do Ethical Trade Initiative ( iniciativa de comércio ético, em tradução livre). Foi uma das poucas empresas que indenizaram as famílias dos operários mortos num desabamento em Bangladesh, em 2013. O acidente matou 1.127 pessoas, quase 2.500 ficaram feridas (no atentado de onze de setembro ao World Trade Center em Nova York,  foram 2.606 vítimas fatais).  No prédio,que era como um formigueiro humano, havia 29 confecções trabalhando para marcas como a Benetton, Carrefour e Mango, que não quiseram pagar um centavo de indenização.




 
 

Em inglês existe uma expressão, 'named and shamed', que quer dizer tornar público o mal feito e envergonhar quem não agiu direito. Hoje saiu uma lista dos 'named and shamed' que não pagam salário mínimo aos empregados no Reino Unido. Entre os nomes, outro gigante da moda; a H&M. Fazer parte da lista negra dessas publicações e de outras tantas numa infinidade de blogs no mundo todo não pega bem para a marca. As empresas estão descobrindo que não basta apenas vender  produtos a preço de banana. O consumidor consciente quer mais.
 
 

* http://www.cleanclothes.org/resources/publications/stitched-up-1