Antigamente
elas frequentavam os ambientes mais exclusivos de Londres. Acompanhavam as
mulheres mais chiques. Invariável e definitivamente mortas, elas desfilavam
enroladas ao pescoço das ricas e aristocratas. Hoje já não podem mais ser
caçadas e tampouco esquentam os cangotes da mulherada. Nem por isso sumiram da
cena urbana. Vivinhas da Silva, elegantes, curiosas e atrevidas, as
raposas estão bem presentes nas cidades desta ilha.
A raposa do
vídeo acima ganhou seus vinte e sete segundos de fama ao visitar um Café no centro
de Londres essa semana. Repararam
na quantidade de gente filmando a nova celebridade? Anos atrás, uma prima distante da saidinha do vídeo
entrou de penetra numa festa aqui em casa. Era verão e comíamos no jardim, para
comemorar meu aniversário. A descarada chegou na maior cara de pau. Sentiu o
cheiro de carne e se convidou. Caminhou entre as pernas dos convidados e
saiu como chegou, sem pedir licença. Danada roubou minha festa. O resto do dia
foi tomado por conversas que giraram em torno das raposas. Todo mundo tinha um caso para
contar.
Penetra no quintal de casa |
Turista, que
é turista com ‘T’ maiúsculo, chega em Londres e tira foto de ônibus de dois
andares, cabines vermelhas de telefone, dos leões da Trafalgar Square e de esquilinhos
no parque. São as fotos mais clichê da cidade. Tanto que os bichinhos já
aprenderam a capitalizar, fazem pose e chegam bem pertinho. É só oferecer
comida, que os esquilos vêm alegres e sorridentes. Esta última parte por minha
conta – para enfeitar um pouquinho o texto. O que os turistas nem sempre
percebem é que vida selvagem urbana, além de roedores e pombos, que muita gente
considera ratos alados, também tem as raposas.
Quem mora na
Inglaterra com certeza já viu pelo menos uma raposa andando pela rua, em
parques e quintais. Apesar de viverem bem perto dos humanos, ainda são selvagens
e arredias. Daí o espanto dos frequentadores do Café de Londres e de meus
convidados. As raposas não chegam muito perto, são ariscas, desconfiadas e
medrosas.
De vez em
quando a gente ouve notícia de uma raposa que entrou em casa e trouxe pulgas de
presente. Ou então que o gato de uma vizinha levou a pior numa briga. Sem
contar nos coelhos, porquinhos da índia e galinhas que viraram jantar de
raposa. Outras vezes as notícias são muito mais tenebrosas. Tem um caso famoso
que até hoje habita o imaginário local e tira o sono de muitos pais. Uma raposa
aproveitou que a porta do quintal de uma casa em Londres estava aberta e
entrou. O casal assistia tevê na sala. Sorrateira, ela subiu a escada e atacou
duas bebezinhas de nove meses. As gêmeas Lola e Isabella sofreram ferimentos graves
nos braços e rostos. O caso aconteceu em 2010 e desde então as meninas já
passaram por várias cirurgias reconstrutivas.
Meninas atacadas por raposa |
A boa
notícia é que ataques como o das gêmeas, embora terríveis, são extremamente
raros. Todos os dias no Reino Unido, pelo menos dez pessoas procuram o pronto
socorro porque foram vítimas de ataques de cachorros, que são animais
domésticos. De acordo com as entidades de proteção à vida selvagem, se for
contar nos dedos, o número de vítimas de raposas não dá para encher uma mão
por ano.
O ataque às
gêmeas foi péssima publicidade para a causa das raposas. Eu mesma volta e meia
deixava algum resto de comida no quintal, para alimentar as visitantes
noturnas. Na época do ataque, o assunto, é claro, dominou a mídia. Uma das recomendações
repetida exaustivamente foi que não se alimentasse as raposas, porque
elas ficam cada vez mais confortáveis e confiadas. Depois que acabei com a boca
livre, minhas freguesas foram se servir em outra freguesia. Sumiram até que, em
dezembro de 2013, uma resolveu morrer bem no canteiro em frente de casa.
Cheguei da
rua num sábado à noite e notei a raposinha prostrada. Ela mal se mexia. Fiquei com pena. Busquei um pouco de água e um pouco de
leite e deixei lá para ela. Na manhã seguinte, ela estava morta. Uma encrenca. A previsão do tempo anunciava uma ventania de proporções
bíblicas para o dia seguinte. O transporte provavelmente seria afetado e as
pessoas deveriam ficar em casa. Passei horas tentando entrar em contato com a
administração regional do bairro. Olhei na internet, se a raposa tivesse
morrido no meu quintal, eles não viriam. Como é uma espécie protegida por lei,
não poderia (nem queria para falar a verdade) enterrá-la. Jogar no lixo também
estava fora de questão (mesmo se não fosse proibido, o lixo aqui é recolhido
uma vez por semana). Depois de muitas ligações e de memorizar a mensagem enrola
contribuinte gravada por algum burocrata do governo, consegui que uma pessoa de
carne e osso atendesse à ligação. Garanti que a raposa estava a poucos
centímetros da calçada e o homem do outro lado da linha disse que ia mandar
alguém buscar o corpo. Fiquei na tocaia o dia todo. Vieram dois homens num
caminhão de lixo. Meteram umas luvas encardidas nas mãos. Abriram um grande saco
transparente e sem cerimônia levantaram a raposinha pelo rabo. Num instante
ela estava embalada. Um deles arremessou o pacote na caçamba. Deu um risinho de
quem acertou o alvo de primeira. Pelo jeito como trabalhavam, vi que não era o
primeiro bicho morto que eles recolhiam. É meio ridículo, eu sei, mas depois que eles se foram,
meu marido e eu ficamos um tempo em silêncio. Só não sei
se foi pela alma da raposa ou pela crueza da morte.
Sentimentalismo
patético, diriam os caçadores de raposa. Coisa de gente da cidade, que compra
carne no supermercado e nem pensa que alguém teve que abater o animal. A caça
à raposa era uma das tradições mais fortes da vida rural britânica. Era. Não é
mais. O vídeo da raposa no Café em Londres coincide com o aniversário de dez
anos da proibição à caça. Foram anos de lobbies e brigas até que finalmente o
Parlamento passou a lei.
A caça, com
dezenas de cachorros encurralando uma raposa, que não tinha a mínima chance de
se defender, ou escapar, era para os ingleses o que as touradas são para os
espanhóis. A história mudou. Sabe safari na África onde os turistas miram suas
câmeras e não suas armas para os animais selvagens? Pois é, nesta ilha, dez
anos depois da proibição à caça da raposa, a tradição está ressurgindo com mais
força. Só que repaginada. Os ‘caçadores’ também não usam mais espingardas. O
que os cães farejam é um pedaço de trapo, impregnado com urina de raposa. É como
uma caça ao tesouro, uma oportunidade para as pessoas da comunidade se reunirem
e participarem de um evento social. Aliás, o caráter social e cultural da caça
era um dos argumentos mais fortes dos que se opunham à proibição.
A raposa do Café virou celebridade neste tempo em que todo mundo grava na memória, não a da cabeça e sim a do celular, as imagens que marcam. E não basta só registrar. Tem que compartilhar. Na constelação de imagens que pipocam na internet a cada segundo, esta fez sucesso. Talvez porque, por mais urbanóides que estejamos, ainda somos tocados pela vida selvagem. Uma vida que resiste e insiste em nos chamar. Coisa de origem.