quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Tradições Natalinas


 
Já houve um tempo em que ter dentes podres era podre de chique. Os endinheirados desta parte do mundo esfregavam açúcar nos dentes, para eles ficarem pretos. Ter açúcar em casa era símbolo de status, um luxo que só os ricos podiam bancar. Na lógica do esnobismo, dente preto era sinal de riqueza. Hoje em dia, açúcar é um ingrediente de primeira necessidade, que não falta nem na casa mais pobre da Inglaterra. E ter dente podre é podre mesmo.
 

Acabo de chegar do supermercado. Na minha sacola estão vagens do Quênia, limões do Brasil, tomates da Holanda e arroz da Índia. Não, não estou esnobando. Aliás, não tem nada de extraordinário na minha geladeira. O fato é que esta Ilha depende enormemente do resto do planeta para pôr a comida na mesa de seus habitantes. Existem muitas campanhas para promover a produção local, orgânica e sazonal, a fim de diminuir o impacto da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Quanto menos transporte, menos óleo queimado. No verão nós vamos a uma fazenda, que funciona como um enorme sacolão ao ar livre. A versão inglesa do ‘pesque e pague’ aqui é o ‘colha e pague’. São campos de morangos, aspargos e espinafre. O problema é que não tem absolutamente nada no inverno. O outono termina com as festas da colheita: abóboras, daí a tradição do Halloween, nos Estados Unidos, maçãs, batatas e couve de Bruxelas mais no fim da estação.
 

Meu pai gosta de contar que quando apareceu a primeira geladeira na casa dos pais dele, no ensolarado norte de Minas, a maior diversão da família era oferecer água gelada para as visitas. Antes do advento da geladeira, os alimentos eram preservados em sal, banha e açúcar. Nos países de inverno rigoroso, conservar os alimentos para os dias de escassez era questão de sobrevivência. Hoje em dia, o que se vê nas tradições natalinas da Inglaterra é quase que um retorno ao tempo em que comprar vagem, tomate e limão no inverno era impensável.
 

Londres, quem não sabe, é cosmopolita. Menos da metade de sua população nasceu neste país. O número de imigrantes disparou nas últimas décadas e isso traz muitas consequências. A melhor delas é que a cidade se abre para os sabores de outras culturas. Aleluia! Os panettones italianos ganham mais espaço nas prateleiras dos supermercados a cada ano, para minha alegria.
 

 Meus vizinhos dos dois lados são aposentados. O vizinho do lado esquerdo é um viúvo. Inglês típico: joga ‘bolws’, semelhante ao jogo de bocha e tem um allotment. Allotment são pedaços de terra, geralmente do tamanho de uma quadra de tênis, que o governo local arrenda aos moradores. Lá eles cultivam frutas, legumes e verduras. No verão, o Wally abastece a nossa casa com frutas vermelhas, couve-flor, abobrinhas, tomates e as batatas que planta. Do outro lado, vive Kathy, também viúva. Quem não a conhece, acha que ela é indiana. Ela parece indiana, mas nasceu ao lado do Brasil, na Guiana. Todo dezembro nós convidamos os dois para um almoço de fim-de-ano. Eles chegam cedo e vão embora tarde. Foi aqui em casa num desses almoços, que  aos setenta e dois anos Wally provou um panettone pela primeira vez. Achou exótico.
 

 
 


 

 

As grandes redes de cafeteria lançam seus produtos sazonais, para atrair clientes. Investem em chocolate quente de vários sabores, com creme e calda de frutas; chás de maçã com canela e bolinhos de natal. Um apelo forte para os jovens, que estão mais abertos a experimentar as novidades. Já a turma do Wally gosta mesmo é de tradição e natal é a época em que dá para ser tradicional sem ter que pedir desculpas. Uma das comidinhas tradicionais de natal começa a aparecer nas lojas em novembro. São as ‘mince pies’, umas empadinhas doces recheadas de frutas secas, especiarias e brandy, o primo inglês do conhaque. 


 Mince pie tem pedigree. Sua história começa no século XIII, com os cruzados, que retornaram da Terra Santa trazendo os ingredientes.  Segundo os historiadores, a receita original levava, além das frutas secas, carne de cordeiro moída, noz moscada, canela e cravo. Treze ingredientes, para representar os doze apóstolos e Jesus. Originariamente elas eram retangulares e muito maiores do que a versão atual. Mais para empadão do que empadinha. No século XVII, durante a guerra civil inglesa, a iguaria caiu em desgraça. Foi considerada pelos puritanos um símbolo da idolatria católica. Mas a mince pie triunfou até a era vitoriana, quando ganhou uma repaginação: ficou menor, sem carne e mais doce. O recheio pode ser preparado com meses de antecedência; as frutas são preservadas em álcool e açúcar. Nas lojas é fácil encontrar a tortinha nesta época do ano. Algumas são melhores que outras. Apesar dos doces ingleses serem bem menos doces que os brasileiros, acho a mince pie um pouco doce demais para o meu gosto. É massuda também. Nunca consegui comer mais de uma por dia. Não é à toa que os ingleses dizem: ‘a moment on the lips, forever on the hips’, um instante na boca, para sempre nas cadeiras. As tortinhas são servidas aquecidas e para ajudar a descer melhor, um mulled wine: vinho quente para nós.

 

 


 

 

 

O vinho quente com especiarias chegou aqui trazido pelos romanos, no século II. Lembra a receita que minha mãe preparava aos litros para a festa junina do bairro. Leva açúcar, cravo, canela e raspas de casca de laranja. É feito com vinho tinto e mesmo os apreciadores mais exigentes de vinho bebem o mulled wine no natal sem reclamar. É comum receber os amigos em dezembro para comer as empadinhas com vinho quente.
 
Aqui não tem ceia de natal no dia vinte e quatro. Essa é uma tradição católica. Os anglicanos comemoram o nascimento de Cristo com um grande almoço no dia vinte e cinco. Antigamente serviam ganso. Agora servem peru recheado de castanha portuguesa, linguiça e frutas secas e cristalizadas, acompanhado de legumes assados. A batata, que é o nosso arroz, cenoura e couve de Bruxelas, lembra o começo do texto? Servem de entrada ‘pigs in blankets’ (carne de porco no cobertor, em tradução livre). São umas linguicinhas dentro de massa folhada ou enroladas no bacon e depois assadas. Se a festa é mais chique e com menos aposentados, salmão defumado com creme fraiche e dill, servidos em blinis. Um toque cosmopolita. 
 
Os Christmas Crackers também fazem parte do almoço de natal. Não são biscoitos de natal. O crackers são uns tubos de papelão, amarrados nas duas pontas, como se fossem bombons. A pessoa assentada ao seu lado na mesa puxa uma ponta e você puxa a outra, até o embrulho se despedaçar, soltando um estalinho. Lá dentro estão uma coroa de papel de seda, uns brinquedinhos, umas piadinhas e charadas.
 
 
 
 
 
 
Adultos e crianças põem as coroas na cabeça e leem as piadinhas infames, coisa do tipo, o que um ovo disse para o outro ovo*? Geralmente têm um tema natalino e fazem jogos de palavras. Os ingleses têm mania de jogos e de se fantasiarem. Eles têm um lado lúdico, que a gente demora um pouco a pegar e que eles escondem debaixo da formalidade. A palavra excêntrico parece que foi criada para descrever este traço da personalidade britânica.
 
Depois do almoço a sobremesa tem ... adivinhe o quê? Frutas secas! É o Christmas Pudding. Pudding em geral é sinônimo de sobremesa, mas pode ser um monte de coisa, até chouriço, o black pudding. O Christmas Pudding, ou pudim de natal, é uma tradição que surgiu na Idade Média. Não é pudim e sim um bolo de frutas, que leva sebo moído  (uma gordura que envolve os rins de bois e cordeiros) e farinha de rosca na receita. Não vai ao forno. Depois de colocada numa tigela e selada com um pano ou papel alumínio, a massa é cozida no vapor. Lá dentro ia uma moedinha de prata, um presente para o sortudo que ganhasse a fatia com o tesouro dentro. O bolo de natal é preparado cinco semanas antes do grande dia e vai aos poucos curtindo no brandy. Ao ser servido, mais um tanto da bebida é derramada sobre o doce, que é flambado e acompanhado de creme misturado com mais brandy.  Meu paladar mudou muito desde que cheguei aqui. Hoje em dia como coisas que detestava no começo. Quanto ao Christmas Pudding, vou ser bem inglesa e dizer que é um gosto adquirido. Um que infelizmente ainda não adquiri. Aí vai em inglês, uma receita moderninha do Jamie Oliver de Christmas Pudding.
 
 
 
  
 
Quanto mais velha fico, mais eu gosto das tradições. Redundância, eu sei. Pouco antes do natal vem o solstício de inverno e o dia mais curto do ano. Falta luz solar. Transborda saudade do Brasil. Sinto falta dos natais com a minha família, da casa cheia de parentes e a mesa farta de referências da nossa herança portuguesa. Nem que eu viva cem anos por aqui, vou preferir o menu inglês ao brasileiro. Mas quer saber? Adoro as tradições natalinas desta ilha. Este sim, um gosto adquirido. Com muito prazer.
 
 

*Estou chocado!
 
 

sábado, 6 de dezembro de 2014

Sem Trincheiras


Duas moças conversavam na minha frente num trem em Paris. Elas deviam ter dezoito, vinte anos no máximo. Eram a personificação do charme parisiense em suas roupas de um domingo de verão.  Uma estava assentada bem na minha frente, a outra ao seu lado, do outro lado do corredor. Elas podiam ser as estrelas de um comercial de iogurte orgânico, feito com o mais puro leite de vacas alpinas. Invadida pelo espírito tiazinha piegas, olhava as duas e pensava em como a juventude é bonita. De repente, uma delas se calou e a expressão de seu rosto endureceu. Com os olhos, ela guiou o olhar da outra para o corredor. Imediatamente as duas empinaram o nariz, como cães de caça que farejam uma raposa. Virei o rosto e vi que uma mulçumana, pouco mais velha do que elas, vinha em nossa direção. A mulher tinha a cabeça coberta por um lenço e caminhava despretensiosamente, sem querer provocar ninguém. Só queria mudar de vagão. Um milímetro depois de ela cruzar o caminho das francesas, elas enfiaram os dedos nas respectivas gargantas, num gesto de nojo e repulsa. Um descaramento total. Começaram a falar mais alto do que antes e deitaram fora todo o racismo que ainda não havia sido revelado. Nunca tinha testemunhado a beleza se rachar tão brutal e rapidamente como naquele momento. O iogurte tinha azedado.

 Se você é daqueles que tem até um pincel especial para limpar o painel do carro, melhor se poupar e pular para o próximo parágrafo. Para quem ainda está por aqui, vou contar: meu carro é um modelo ‘vintage’-ecológico. É vintage para combinar com o toca-fitas, que funciona até hoje. Quando vem gente do Brasil, eu ouço: ah, se eu soubesse que você tinha isso! Joguei todas as minhas fitas cassete no lixo. Dá para notar um pouquinho de tristeza e nostalgia, quando eles dizem isso. Meu carro é ecológico, porque os retrovisores fornecem um ecossistema perfeito para as aranhas que vivem no canteiro na frente de casa. Atrás dos espelhos, elas fazem seus ninhos. De vez em quando tiro o algodão doce, feito das teias que elas produzem durante a noite. Também é ecológico, porque notei um tiquinho de musgo crescendo no porta-malas. 

Ontem, máxima de quatro graus e chuva. Gripada, fui ao supermercado. Pus as compras no carro, mas ele não quis ligar. Chamei o socorro. Socorro veio, deu um paliativo e prescreveu um mecânico. Saí do supermercado e fui direto ver o Rui, nosso mecânico português. Ele ouviu a história e deu seu diagnóstico. O caso, infelizmente, não era terminal. Parece que ainda vou guiar o ‘vintage’ por mais um tempinho. Deixei o carro aos cuidados de Rui, que me tranquilizou: é um carrinho muito bom, minha senhora. Recolhi as compras de geladeira e fui atrás de um 'cab'. O ‘cab’ está para o táxi, assim como o táxi comum está para o especial. 

O ‘cab’ encostou onde era proibido parar e entrei rapidamente. Desconforto instantâneo. Fazia uns trinta graus no carro. O banco da frente estava colado no de trás, eu mal podia mexer as pernas. O motorista era estranho. Um ser inversamente proporcional ao tamanho do carrão que dirigia. Assim que ele parou no primeiro sinal, pedi que arredasse o banco da frente. Ele me perguntou de onde eu era. 

- Ah, Brasil! Eu gosto do Brasil. Adoro o Romário, ele é tão discreto, não? Romário, o Sócrates também! Vocês são os melhores do mundo no futebol. Quer dizer, eram. Tomaram de sete para a Alemanha. 

Pronto! Não levou nem dois quarteirões e ele já estava cutucando ferida. Atchim!  Mudei de assunto e perguntei de onde ele era. Da Argélia, ele disse. Um país lindo. Vou para lá semana que vem e talvez não volte nunca mais, ele acrescentou. Perguntei há quantos anos ele vivia aqui e ele disse: vinte e cinco, nem tudo é perfeito. Contei que uma tia arquiteta tinha passado um tempo na Argélia nos anos 70, trabalhando para o arquiteto mais famoso do Brasil. A referência passou batida e ele seguiu falando dos nove irmãos que tinha vivendo lá. Perguntei se ele falava francês. Em francês ele respondeu que sim, infelizmente. Foi a deixa para ele começar a desfiar seu ódio contra os franceses.

- Eles têm coração de pedra. São seres humanos cruéis. Mataram centenas de argelinos. Lutamos contra eles durante sete anos, até ganharmos nossa independência. Eles não prestam.

O sinal fechou e ele disse com uma voz totalmente diferente e assustadoramente tranquila:

- Depois de deixá-la, vou direto para minha mesquita para rezar. Rezo dez vezes por dia. Nós temos uma relação muito especial com nosso Deus. Essa última frase ele falou como quem quer vender creme dental. 
- Atchim!
- Você é cristã?
- Yes.
- Católica, né? Os portugueses...
 
Disse que sim. Demorou um pouco para eu entender o porquê da pergunta. Ele queria ter certeza de que eu não era judia, porque dali em diante o que se seguiu foi um aniquilamento dos judeus. Ele ia ficando mais animado, o ponteiro do velocímetro subia e ele rogava pragas e mais pragas aos filhos de Israel, enquanto eu me arrependia de não ter tomado o trem de volta para casa. Mesmo gripada e com as sacolas de supermercado  teria sido melhor. Ele passou a toda por um desses radares de velocidade e eu torci para ver o flash da câmera piscar. O dia ia de mal a pior, queria chegar em casa logo. Sugeri que ele virasse à esquerda, para cortar caminho. Ele virou e começou a reclamar.  

- Não sei por que você me fez vir por aqui.  É muito mais longe, estou dando voltas. Vou ter que cobrar mais.
 
O preço havia sido combinado antes da corrida, o caminho era mais curto e o homem um mala sem alça. Ele estava cada vez mais irritado e eu incomodada. Só pensava que a única coisa que me lembrava sobre a temporada argelina de minha tia, era ela contando como eles tratavam mal as mulheres. Cheguei em casa, paguei, não dei gorjeta e fui tomar um banho para tirar a inhaca do dia.



O interessante das associações de ideias é que uma coisa leva a outra, sem nos darmos conta. O taxista raivoso e vingativo me fez lembrar das francesas racistas no trem. As duas histórias me remeteram a um anúncio de natal, que divide a opinião dos ingleses nesta temporada festiva.

 

 

 
A propaganda mostra soldados ingleses e alemães entrincheirados durante a Primeira Guerra. Miseráveis, morrendo de frio e de saudade de casa, eles começam a cantar ‘Noite Feliz’ em inglês e alemão. Um soldado inglês sai da trincheira, seguido por outro alemão. Quando menos se espera, inimigos começam a jogar bola, numa trégua natalina. A história da partida de futebol é real e aconteceu no primeiro ano da guerra, antes da coisa ficar feia demais.

O comercial foi criticado por explorar um assunto tão delicado para os ingleses, especialmente no ano do centenário da Pimeira Guerra. Para que? Para vender mais peru e biscoito no natal, delataram os críticos. Pessoalmente achei as  críticas mal-humoradas. É uma peça publicitária lindíssima e me fez pensar em outras trincheiras que se abriram em 2014. 

Um amigo querido se queixou que as brigas saíram do plano virtual e incineraram amizades reais e antigas no Brasil. Acompanhei um monte de gente postando frases sobre a importância de se respeitar as opiniões alheias, sem perder o amigo. Já que é natal, vou continuar no tema bíblico. A impressão que tive de 2014 foi a de que o mar se abriu ao meio nas relações pessoais aí no Brasil, com familiares que não se falam mais e amigos que romperam laços de infância e juventude. 
  



 
Fim de ano é tempo de fechar para balanço e também de fazer planos para o ano novo. O balanço de 2014 é longo e interessante. Talvez seja preciso mais de um natal para fechar essa conta. Minhas resoluções para o ano que vem ficam aqui comigo. O que gostaria de compartilhar são meus desejos de ano novo. 



Que em 2015 a gente consiga sair das trincheiras que cavamos aqui e ali; antes que as diferenças se tornem irreconciliáveis. Que reconheçamos que a gente gosta do outro ‘apesar de’. Apesar de o outro ser chato de vez em quando. Apesar de o outro não ter o bom gosto de torcer pelo mesmo time que eu. Apesar dele não ter o meu bom senso político. É um exercício de convivência porque só assim, quem sabe, o outro vá gostar da gente também. Apesar de todos os nossos vícios, sucessos, perfeições, escolhas erradas e pieguices em geral. Que 2015 seja um ano de mais tolerância,  jogo de cintura e amor nas relações. Sejam elas quais forem. 
 


                                     Paz e felicidade para 2015!