quarta-feira, 29 de julho de 2015

Destino Número Um


O Royal Opera House em Londres é um espanto. O teatro é lindíssimo, enorme, tem vários restaurantes e apresentações de música, dança e balé de primeira linha. Também é um espaço democrático. Existem ingressos a partir de quatro libras (vinte reais) até mais de cem libras. No intervalo das apresentações, várias pessoas abrem suas maletas térmicas e retiram de lá bananas, sanduiches caseiros e outras farofices. Enquanto isso, homens de ternos alinhados e mulheres com saltos tão altos, que fariam Isaac Newton duvidar de suas leis, bebem champanhe como quem toma Coca-Cola. O convívio civilizado destes dois mundos no mesmo hall sempre me surpreende e me encanta. Tem lugar para todo mundo. De certa forma, a crônica social que se desenrola despretensiosamente entre um ato e outro do Royal Opera House traduz bem o espírito londrino.

 

“Londres é uma cidade aberta para pessoas do mundo todo”. A frase é do brasileiro Thiago Soares ao lado de sua esposa, a argentina Marianela Nunez. Além de casados, eles são o primeiro casal de bailarinos do Royal Ballet e estrelam um curta produzido pelo Visit London, uma organização empenhada em criar a reputação internacional da cidade. A peça promocional é uma graça. No filminho, Marianela conta que, assim que viu Thiago pela primeira vez, soube que ele era o novo ‘cara’ do Brasil. Ele revela que a pediu em casamento durante uma apresentação no Royal Opera House. Ela estava toda concentrada e só entendeu o que se passava quando ele abriu uma caixinha (com o anel) e ela se sentiu a garota mais sortuda do planeta. Eles se dizem apaixonados pela cidade e enumeram as qualidades da capital inglesa.



 





Logo que cheguei em Londres, uma capa da revista Time Out me perseguia e me assombrava na mesma medida. Estava em todas as bancas e dizia: POSH NOSH FOR LESS DOSH. Que diabo de língua era aquela? Do que me valeram os anos de Cultura Inglesa? Aprendi rápido que o inglês das ruas não havia entrado na sala de aula e que na capa da revista estava escrito: comida metida (chique) a preços baratos. Recentemente outra capa da Time Out me chamou atenção. Dizia que Londres é a cidade mais grandiosa do planeta.
 
 
 
 

 


 


Todo mundo gosta de puxar a sardinha para o seu lado, mas neste caso não era exagero. Os números do Office for National Statistics, uma espécie de IBGE inglês, não deixam dúvidas: Londres é atualmente a cidade mais visitada do mundo. Bateu Paris, Bangkok e Nova York no ranking das mais populares. Recebeu, em 2013, 16.8 milhões de turistas. Nada mal mesmo. Esse povão gastou 11.2 bilhões de libras (multiplique por 5 para saber que não é pouca fartura). Mas o que Londres tem, que as outras não têm? Qual é o segredo do sucesso?


 

National Gallery - Trafalgar Sqaure

 
De certa forma, as páginas da Time Out trazem a resposta. A revista publica a programação cultural, artística e eventos esportivos da cidade. É só dar uma folheada e mesmo a pessoa mais desplugada percebe que tem muita coisa acontecendo na capital. O tempo todo. Os museus são de graça. Sua praia é arte moderna? Clássica? Histórica? Moda? Design? Música? Cultura pop? Ninguém precisa fazer o programa que não curte. Não faltam opções. E o melhor é que os museus londrinos não são aqueles prédios onde o pó se acumula e pessoas esverdeadas pela falta de sol se arrastam morosamente.




British Museum e o telhado premiado do arquiteto Norman Foster
 
 
O British Museum abriga uma das coleções mais controvertidas. Parte do mundo antigo da Grécia, Egito e vários países do Oriente Médio está lá para todo mundo ver. Algumas peças foram compradas. Outras, contrabandeadas na cara dura.  A Grécia vive querendo repatriar algumas das peças. A briga é boa. Os ingleses dizem que no museu as obras estão protegidas para a posteridade. Vendo o que o Estado Islâmico anda fazendo com os tesouros arqueológicos no Oriente Médio, o argumento ganha força – que nenhum grego me ouça. Mas esse é um assunto para outra hora. O que interessa é que o British Museum está comemorando os melhores resultados de sua história. Recebeu em 2013 seis milhões e setecentos mil visitantes. Turistas que foram atraídos não só pela mostra permanente do acervo, mas também por exposições temporárias como a que contou sobre a vida e morte aos pés do Vesúvio.

 

O nome do jogo é inovação e dinamismo. Palavras que os marqueteiros adoram, mas que aqui são levadas a sério. Não só nos museus, mas nos teatros e outros templos da cultura, as bolas estão sempre no ar, num malabarismo habilidoso.

 

Informação e estratégia

 

 
Esse malabarismo é muito profissional e não brinca em serviço. O vídeo promocional acima é apenas uma pontinha visível deste trabalho do London & Partners, uma organização que funciona num esquema de cooperação entre a prefeitura local e a iniciativa privada. Eles sabem direitinho que os franceses estão entre os que visitam mais a capital, mas que os mais mão aberta são os viajantes do Oriente Médio. Os brasileiros, assim como os russos, gostam de visitar as atrações que tenham ligação com a monarquia, como a Torre de Londres, onde Ana Bolena perdeu sua cabeça. Ou o Palácio de Buckingham, residência da rainha, sem falar na Catedral de St. Paul, onde Charles e Diana se casaram.
 
Durante vários anos fiz a retrospectiva dos fatos marcantes do ano para uma emissora de televisão brasileira. Me lembro que em 1997, fui ao centro de São Paulo fazer algumas entrevistas para o programa. Uma senhorinha me disse emocionada que o que tinha gostado mais no ano foi da morte da princesa. ‘Foi muito lindo’, disse ela, como se falasse da novela das sete. Na cabeça dela, era uma ficção. Um conto de fadas de um reino distante. O fato é que a monarquia vende. Mas será que atrai mesmo turistas para esta ilha?
 


Foto de divulgação

 
 
                   
O fascínio real
 
De acordo com o Visit London, parte do London & Partners, a família real é sim um atrativo. Em 2010, as atrações reais renderam meio bilhão de libras. Os turistas teriam listado o que achavam mais representativo desta ilha. A rainha ficou em terceiro lugar, depois dos ônibus de dois andares e dos castelos.
 
O jornal The Guardian, famoso por ser antimonárquico, diz que não dá para mensurar se a família real rende ou não rende dinheiro para o turismo do país. Eles levam em conta somente o ingresso cobrado para a visitação do Palácio de Buckingham no verão. O que não dá para cobrir nem as despesas reais. Logo, a família real dá prejuízo, na conclusão do jornal.
 
Já o The Telegraph, argumenta que o custo da família real é uma barganha. A rainha, príncipes e princesas custam ao contribuinte britânico 56 centavos de libra por ano. O custo da presidência alemã é o mesmo, eles argumentam. E quem é mesmo o presidente da Alemanha? Você sairia de casa para visitá-lo?
 
 


A roda gigante que era para ser temporária e se tornou uma das maiores atrações turísticas
 
 

 
 
Do mesmo jeito que Nova York é chamada de Big Apple, Londres foi um dia a Big Smoke.O fog londrino ficou no passado, junto com as lareiras a lenha. A cidade acaba de conquistar pela quinta vez em sete anos o título de a mais popular do planeta, de acordo com o Mastercad Annual Destinations Cities Index. A expectativa é de que 2015 termine com o número recorde de 18.82 milhões de visitantes. Com uma vida cultural intensa, parques e muita área verde, transporte fácil, restaurantes cosmopolitas e acomodação de sobra, Londres está deixando as outras capitais na fumaça.

 
 
 
  

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Fator Cultural




“ Existem dois tipos de pessoas: As que usam Chanel e as que batizam a filha com o nome Chanel”.

 A piadinha eu ouvi no rádio e fazia parte de um programa para revelar novos talentos cômicos. Politicamente incorreta até a raiz, a frase expõe a divisão de classes nesta Ilha. Os ingleses preferem fazer de conta que ela não existe. Falar de conflitos, expor diferenças não é de bom tom. Mas que as diferenças existem, ah sim, elas existem. Uma amiga brasileira teve a filha aqui na Inglaterra. Queria furar a orelha da menina, mas foi aconselhada por uma amiga inglesa a desistir da ideia. "Furar orelha de criança é coisa de cigano", ela teria dito. Na visão de alguns ingleses, furam as orelhas das bebezinhas as mães ‘working class’, de classe baixa para você e eu.

As escolas primárias também olham torto para  meninas de brincos. Em muitas delas o uso do acessório é proibido, em outras, as alunas são obrigadas a tirar os brincos na hora da educação física. Surgem histórias e mais histórias horripilantes de orelhas que ficaram infeccionadas por causa dos famigerados brincos. Pais e educadores indignados circulam petições pedindo uma lei que ponha fim ao que eles consideram abuso infantil.
 



 



 

O tema da orelha furada volta e meia aparece nas discussões de grupos de brasileiras que moram no exterior. Não vejo muita referência às divisões de classe, mas é comum por aqui dizer que furar orelha de bebê é uma forma de tortura. Algumas brasileiras dizem que é exagero e que no Brasil as meninas já saem da maternidade com os brinquinhos. Faz parte da cultura.

 

Tortura para a vida toda
 

 Há os que vão mais longe e comparam os furinhos nos lóbulos com a mutilação genital de meninas. Vi essa comparação várias vezes. Este é um assunto muito mais sério. No entanto, para alguns trata-se de mais uma questão cultural. Para as vítimas, é uma tortura que dura uma vida (provoca infecções, problemas renais, aumenta o risco de abortos, de infertilidade, de morte pós-parto, dor ao urinar e principalmente dor durante o ato sexual).


A rede de notícias CNN cobriu o tema pelo menos uma vez em que eu estava de plantão. As tevês compravam o conteúdo da rede americana e podíamos reproduzir as histórias. Nunca me esqueci daquela reportagem. Mostrava uma menina de uns sete, oito anos sendo levada para a ‘operação’. Contaram para ela que ela ia ter uma surpresa e ela foi toda feliz.  Com a câmera ao lado da criança, o cinegrafista registrou o momento em que a navalha cortava sua carne. A menina urrava e, embora segurada por várias mulheres, esperneava de dor. Uma cena que não consegui deletar da cabeça, mesmo sendo uma realidade tão distante da brasileira.




 

 

Aqui na Ilha a história é diferente. Estima-se que 66 mil mulheres e adolescentes vivam neste país sofrendo as consequências da FGM (em inglês Female Genital Mutilation) a mutilação genital feminina. A maioria, primeira ou segunda gerações de imigrantes vindos de países africanos, do Oriente Médio e Ásia. Muitas meninas são levadas para o país de origem de seus pais nas férias de verão. Lá elas são cortadas a seco (sem nenhum anestésico) em geral por outras mulheres, que usam de facas a cacos de vidro. Mas a prática também acontece aqui na terra da Rainha.
 

A FGM é ilegal no Reino Unido desde 1985. Entretanto, nestes trinta anos ninguém foi condenado. No começo deste ano, um médico acusado de mutilar uma paciente somaliana (que havia sido previamente mutilada quando criança) foi inocentado pela Justiça. A paciente sofreu complicações ao dar à luz, porque seus órgãos genitais haviam sido cortados e costurados, impedindo que o bebê nascesse naturalmente. O Dr. Dhanuson Dharmasena (nascido no Sri Lanka, onde a prática da mutilação é comum), um residente recém-formado em obstetrícia, foi chamado para ajudar. Ele fez um corte e o menino nasceu com ajuda de fórceps. Seu erro foi ter costurado a mulher da forma como se faz nas mutilações sexuais. Ele se defendeu dizendo que não sabia das regras (o hospital onde ele trabalhava atende anualmente em média 130 mulheres, que têm dificuldades durante o parto, devido às FGM). Ele disse que a parturiente sangrava muito e que se ele não tivesse intervindo, ela teria morrido. Ficou assim o único caso que foi a julgamento por aqui.


 
Não é fácil indiciar os culpados por este tipo de crime. As famílias envolvidas não falam sobre o assunto. A paciente somaliana, por exemplo, declarou que sofria muito por estar no centro do processo. Seu nome foi preservado, graças à uma decisão judicial. Mas em sua comunidade, todo mundo sabe quem é quem.



Em alguns países a sexualidade feminina é mais do que um tabu. As meninas são mutiladas para que não tenham libido e portanto não envergonhem suas famílias e seus maridos. O que eles chamam de honra, é  questão de vida ou morte.

 


Crimes de honra



Shafilea Ahmed era uma moça bonita. Nascida e criada na Inglaterra. Filha de imigrantes paquistaneses. Aos dezessete anos, ela queria viver como suas amigas da mesma idade. Sonhava com festas, maquiagem e rapazes. Seus pais não se conformavam e torturavam a garota, para que ela vivesse de acordo com a cultura paquistanesa. Ela estava muito aculturada para o gosto deles. Eles a levaram para o Paquistão e quando ameaçaram deixá-la  por lá, ela entrou em desespero e chegou a tomar água sanitária. De volta à essa Ilha, Shafilea procurou o governo local, para que arranjassem uma acomodação para ela. Ela temia que seus pais a obrigassem a se casar contra sua vontade. Apesar de seus esforços, ela nunca chegou a sair de casa. Seus pais a sufocaram com um saco de plástico e tentaram se livrar do corpo da filha. O chamado ‘crime de honra’ aconteceu em 2003 e os assassinos vão passar muito tempo na prisão.





Shafilea Armed



 



Infelizmente, este não é um caso único. Foram registradas mais de onze mil ocorrências de crimes de honra entre 2010 e 2014. Os atos criminosos muitas vezes são acobertados por famílias e comunidades, preocupadas em defender suas reputações. As maiores vítimas, como sempre, são as mulheres. Estes crimes incluem abuso emocional, raptos, torturas físicas e até assassinatos. Existem várias ONGs trabalhando para reverter este quadro. Quem conhece o assunto acredita que o número de abusos seja muito maior do que os reportados, porque as vítimas têm medo das consequências para suas famílias, caso decidam falar.



 

Os ingleses têm o saudável hábito de relembrar. Não para lamber as feridas, mas para que as pessoas não se esqueçam do sofrimento e do sacrifício humano de alguns e, se possível, para que se possa aprender uma lição ou duas. Por causa disso, terça que vem será celebrado o primeiro Dia pela Memória das Vítimas de Crimes de Honra. A data não foi escolhida ao acaso. Se estivesse viva, Shafilea estaria completando 29 anos no dia 21 de julho.
 
 
 
 
 

                                                                    

Vamos por um minuto nos esquecer do que os ingleses falam sobre furar as orelhas de bebezinhas. Por que mesmo fazemos isso com nossas meninas? Já paramos para pensar no assunto? Porque é cultural e é assim que se faz. Pode ser um argumento. Não dá para comparar um brinco com uma mutilação genital e muito menos com crimes contra a honra. Entretanto, nos três casos existe um fio condutor comum. O tal do fator cultural. O que é aceitável em uma sociedade, pode não ser em outras. Que bom seria se estivéssemos dispostos a pensar para valer em quais valores e práticas deveríamos manter e quais estariam melhor na lata do lixo. Enxergar além do próprio quintal pode ajudar. Ou não.

 

domingo, 5 de julho de 2015

Direito de morrer



“ Outro dia mesmo levamos nossa gata ao veterinário para ser sacrificada. Morte piedosa. Minha mulher está se acabando no hospital e não podemos fazer nada”.

 

Foi o que meu vizinho me disse alguns anos atrás, quando perguntei como estava sua esposa. Internada num ‘hospice’ (como são chamados os hospitais para pacientes terminais no Reino Unido), ela morreria alguns dias mais tarde de câncer. Fiquei totalmente desconcertada com a crueza e a franqueza dele. Quis dar-lhe um abraço, mas não movi um músculo sequer. Talvez tenha sido melhor assim. Ele não queria minha piedade, só precisava botar para fora o que estava em seu coração. Poucas vezes na vida vi um casal mais apaixonado do que Harry e Martha.




 

 

 

Um tabu de cada vez

 

Quando eu era criança, Margarida, que trabalhou primeiro para minha avó e depois para minha mãe, adorava contar uma história para eu dormir. Era tão ruim, mas tão ruim, que era boa. Era mais ou menos assim: “Um dia a gripe e a aranha se encontraram. Duas senhoras infelizes e reclamonas. A aranha disse que sua vida era uma tragédia. Ela morava na cidade e assim que terminava de construir sua teia, vinha uma pessoa limpar e destruía tudo. O trabalho não acabava nunca. Dona gripe conseguiu ser mais dramática: a vida no campo é ainda mais insuportável. Eu pego em uma pessoa, ela não se trata e acaba morrendo. Tenho que sair em busca de outra que cuide de mim. Estou exausta e maltratada. As duas então resolvem trocar de casa. Tempos depois se encontram: a gripe está felicíssima. Na cidade, eles me dão suco de laranja, cuidam bem de mim. A aranha também está no céu. Na roça, teço minha teia e ela fica lá quietinha. Ninguém se incomoda em limpá-la. Tenho vida de madame.” Fim da história. Brilhante, né?

 


Por uma dessas associações (muito livres) de ideia, li uma vez um artigo sobre a morte e pensei na fábula que escutava quando era pequena. Dizia que o sexo e a morte haviam trocado de lugar na sociedade moderna. Antigamente, as pessoas adoeciam, eram tratadas em casa, morriam em suas camas e eram veladas na sala de visita. Já o sexo, era assunto da rua. Hoje em dia, assim como a aranha e a gripe, a morte e o sexo trocaram de endereço. Morre-se no hospital, o corpo é velado e enterrado no cemitério. Já o sexo, depois da revolução sexual, é tratado com naturalidade. É quase como se pudéssemos suportar só um tabu de cada vez. Não falamos sobre a morte, porque ela foi exilada para um lugar onde não estamos mais. Pelo menos gostaríamos que fosse assim.











                                                                                 unsplash.com
 

 

 

Boa morte 

De vez em quando o site da BBC na Inglaterra abre espaço para a opinião do leitor. Essa semana trouxe uma matéria sobre a eutanásia na Bélgica e perguntou:  ‘É certo que uma mulher com depressão crônica seja autorizada a ter uma morte assistida?” Em bom português: ela pode ter uma eutanásia? (eutanásia vem do grego e significa boa morte, morte sem dor).

 

Na Bélgica, assim como na Holanda e Suíça a eutanásia é legal. Na Bélgica, desde 2013,  o direito foi estendido às crianças com doenças terminais*. Os médicos decidiram atender ao pedido de ‘Laura,’ a mulher com depressão crônica. Ela poderá ter uma morte assistida.

 

‘Laura’ tem vinte e quatro anos. Sofre de depressão crônica desde criança e, há três anos, vive internada numa clínica psiquiátrica. ‘Vida não é para mim’, ela teria dito a um jornal. Laura agora passa os dias planejando o próprio funeral e se despedindo dos pais e da avó, que a criou.

 
 
http://www.pbs.org/newshour/bb/right-die-belgium-inside-worlds-liberal-euthanasia-laws-2/
 


 





Eutanásia na Ilha
 


Do lado de cá do Canal da Mancha, o assunto divide opiniões. De tempos em tempos leio nos jornais o caso de algum paciente de doença degenerativa, que quer o mesmo direito de um cidadão belga que esteja no mesmo barco. Tem também familiares que vão à Justiça pedir para não serem importunados, caso levem um ente querido para uma boa morte nos países onde a eutanásia é legal. Desde 1961, uma lei no Reino Unido prevê até 14 anos de prisão para quem ajudar outra pessoa a cometer suicídio.
 




A questão é: eutanásia é suicídio?  A pergunta que a BBC publicou sobre o pedido de ‘Laura’ gerou muita discussão. O caso da mulher deprimida não é o primeiro do gênero na Bélgica. Então, por que publicar a notícia agora e abrir para discussão? Fiquei com a pulga atrás da orelha. Como acontece sempre que passamos a prestar atenção num assunto, começaram a ‘pipocar’ notícias sobre eutanásia. Até que recebi um folheto convocando os eleitores cristãos a escreverem para seus parlamentares exigindo que eles votem contra um projeto de legalização da eutanásia aqui na ilha. O material, produzido pela igreja católica, adverte que o atual Parlamento não tem ‘muito bom senso, já que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo’. Mesmo assim, continua o texto, ‘não é motivo para desanimar. Precisamos impedir que o suicídio seja legalizado. Só Deus pode tirar a vida’, concluía a publicação.




A proposta de eutanásia de Lorde Falconer (para pacientes terminais com expectativa de vida de seis meses) deveria ter ido a voto antes das eleições. Houve uma votação no Parlamento para decidir se a lei, caso aprovada, seria chamada de morte assistida ou suicídio assistido (assistido não o que passa na tevê e sim de assistência - é bom deixar claro)**. Ficou morte assistida e parou por aí. Como o tema era polêmico, os parlamentares empurraram para debaixo do tapete. A previsão é de que o projeto deverá ser votado ainda este ano. Desconfio que a BBC esteja sondando o que o eleitor pensa sobre o assunto.
 

 

 


 


Todos os dias, em média cinco pessoas recebem ajuda para morrer na Bélgica. A eutanásia tem que ser assinada por três médicos. Quatro no caso de pacientes com depressão crônica. Um médico vai à casa do paciente, aplica duas injeções. Tudo muito rápido. Até o último minuto, o médico pergunta se o paciente não quer mudar de ideia. Quem é contra a eutanásia argumenta que se a prática for legalizada, pessoas com doenças crônicas ou mesmo idosos vão se sentir pressionados a tomar a decisão de encurtar a vida. Como se eles não tivessem valor, porque não são saudáveis. Quem é a favor diz que só porque é legal, não significa que seja obrigatório e que a legalização vai sim poupar o sofrimento de muita gente.


 


Eutanásia em doentes terminais, como a minha vizinha, é mais fácil entender. Mas e no caso de alguém que esteja deprimido como ‘Laura’? Muita gente argumentou que se ela não está mentalmente saudável, não poderia tomar uma decisão, que literalmente é de vida ou morte. Discutiu-se também se depressão crônica tem ou não cura.


 


 Se ela não suporta viver, por que não tira a própria vida ao invés de delegar ao outro a tarefa? Este também foi um dos argumentos que li nos comentários da matéria da BBC. A resposta de um dos leitores foi de que o suicídio geralmente é uma morte violenta e que deixa um rastro de sofrimento muito grande para os que ficam.


 

De fato, este não é um assunto fácil. Envolve questões éticas, morais, religiosas e práticas. Como evitar abusos? Como regulamentar a eutanásia? Como começar a falar de morte?
 

Será que estamos prontos para conversar sobre o tabu da vez?
 
 
 
 * http://www.sbt.com.br/jornalismo/noticias/43851/Belgica-Lei-da-eutanasia-infantil-divide-opinioes.html#.VZlyQ-1Viko

** No dia 11 de setembro de 2015, 330 membros do parlamento votaram contra o projeto de lei. 118 a favor. A Lei da Morte Assisitda não foi aprovada.

Coincidentemente, no mesmo dia,o estado a California aprovou a lei que não passou em Westminster. 23 votos a 14. A California se junta agora aos estados de Oregon, Washington, Montana e Vermont, onde medicos podem ajudar pacientes terminais a morrer.