quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Tradições Natalinas


 
Já houve um tempo em que ter dentes podres era podre de chique. Os endinheirados desta parte do mundo esfregavam açúcar nos dentes, para eles ficarem pretos. Ter açúcar em casa era símbolo de status, um luxo que só os ricos podiam bancar. Na lógica do esnobismo, dente preto era sinal de riqueza. Hoje em dia, açúcar é um ingrediente de primeira necessidade, que não falta nem na casa mais pobre da Inglaterra. E ter dente podre é podre mesmo.
 

Acabo de chegar do supermercado. Na minha sacola estão vagens do Quênia, limões do Brasil, tomates da Holanda e arroz da Índia. Não, não estou esnobando. Aliás, não tem nada de extraordinário na minha geladeira. O fato é que esta Ilha depende enormemente do resto do planeta para pôr a comida na mesa de seus habitantes. Existem muitas campanhas para promover a produção local, orgânica e sazonal, a fim de diminuir o impacto da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Quanto menos transporte, menos óleo queimado. No verão nós vamos a uma fazenda, que funciona como um enorme sacolão ao ar livre. A versão inglesa do ‘pesque e pague’ aqui é o ‘colha e pague’. São campos de morangos, aspargos e espinafre. O problema é que não tem absolutamente nada no inverno. O outono termina com as festas da colheita: abóboras, daí a tradição do Halloween, nos Estados Unidos, maçãs, batatas e couve de Bruxelas mais no fim da estação.
 

Meu pai gosta de contar que quando apareceu a primeira geladeira na casa dos pais dele, no ensolarado norte de Minas, a maior diversão da família era oferecer água gelada para as visitas. Antes do advento da geladeira, os alimentos eram preservados em sal, banha e açúcar. Nos países de inverno rigoroso, conservar os alimentos para os dias de escassez era questão de sobrevivência. Hoje em dia, o que se vê nas tradições natalinas da Inglaterra é quase que um retorno ao tempo em que comprar vagem, tomate e limão no inverno era impensável.
 

Londres, quem não sabe, é cosmopolita. Menos da metade de sua população nasceu neste país. O número de imigrantes disparou nas últimas décadas e isso traz muitas consequências. A melhor delas é que a cidade se abre para os sabores de outras culturas. Aleluia! Os panettones italianos ganham mais espaço nas prateleiras dos supermercados a cada ano, para minha alegria.
 

 Meus vizinhos dos dois lados são aposentados. O vizinho do lado esquerdo é um viúvo. Inglês típico: joga ‘bolws’, semelhante ao jogo de bocha e tem um allotment. Allotment são pedaços de terra, geralmente do tamanho de uma quadra de tênis, que o governo local arrenda aos moradores. Lá eles cultivam frutas, legumes e verduras. No verão, o Wally abastece a nossa casa com frutas vermelhas, couve-flor, abobrinhas, tomates e as batatas que planta. Do outro lado, vive Kathy, também viúva. Quem não a conhece, acha que ela é indiana. Ela parece indiana, mas nasceu ao lado do Brasil, na Guiana. Todo dezembro nós convidamos os dois para um almoço de fim-de-ano. Eles chegam cedo e vão embora tarde. Foi aqui em casa num desses almoços, que  aos setenta e dois anos Wally provou um panettone pela primeira vez. Achou exótico.
 

 
 


 

 

As grandes redes de cafeteria lançam seus produtos sazonais, para atrair clientes. Investem em chocolate quente de vários sabores, com creme e calda de frutas; chás de maçã com canela e bolinhos de natal. Um apelo forte para os jovens, que estão mais abertos a experimentar as novidades. Já a turma do Wally gosta mesmo é de tradição e natal é a época em que dá para ser tradicional sem ter que pedir desculpas. Uma das comidinhas tradicionais de natal começa a aparecer nas lojas em novembro. São as ‘mince pies’, umas empadinhas doces recheadas de frutas secas, especiarias e brandy, o primo inglês do conhaque. 


 Mince pie tem pedigree. Sua história começa no século XIII, com os cruzados, que retornaram da Terra Santa trazendo os ingredientes.  Segundo os historiadores, a receita original levava, além das frutas secas, carne de cordeiro moída, noz moscada, canela e cravo. Treze ingredientes, para representar os doze apóstolos e Jesus. Originariamente elas eram retangulares e muito maiores do que a versão atual. Mais para empadão do que empadinha. No século XVII, durante a guerra civil inglesa, a iguaria caiu em desgraça. Foi considerada pelos puritanos um símbolo da idolatria católica. Mas a mince pie triunfou até a era vitoriana, quando ganhou uma repaginação: ficou menor, sem carne e mais doce. O recheio pode ser preparado com meses de antecedência; as frutas são preservadas em álcool e açúcar. Nas lojas é fácil encontrar a tortinha nesta época do ano. Algumas são melhores que outras. Apesar dos doces ingleses serem bem menos doces que os brasileiros, acho a mince pie um pouco doce demais para o meu gosto. É massuda também. Nunca consegui comer mais de uma por dia. Não é à toa que os ingleses dizem: ‘a moment on the lips, forever on the hips’, um instante na boca, para sempre nas cadeiras. As tortinhas são servidas aquecidas e para ajudar a descer melhor, um mulled wine: vinho quente para nós.

 

 


 

 

 

O vinho quente com especiarias chegou aqui trazido pelos romanos, no século II. Lembra a receita que minha mãe preparava aos litros para a festa junina do bairro. Leva açúcar, cravo, canela e raspas de casca de laranja. É feito com vinho tinto e mesmo os apreciadores mais exigentes de vinho bebem o mulled wine no natal sem reclamar. É comum receber os amigos em dezembro para comer as empadinhas com vinho quente.
 
Aqui não tem ceia de natal no dia vinte e quatro. Essa é uma tradição católica. Os anglicanos comemoram o nascimento de Cristo com um grande almoço no dia vinte e cinco. Antigamente serviam ganso. Agora servem peru recheado de castanha portuguesa, linguiça e frutas secas e cristalizadas, acompanhado de legumes assados. A batata, que é o nosso arroz, cenoura e couve de Bruxelas, lembra o começo do texto? Servem de entrada ‘pigs in blankets’ (carne de porco no cobertor, em tradução livre). São umas linguicinhas dentro de massa folhada ou enroladas no bacon e depois assadas. Se a festa é mais chique e com menos aposentados, salmão defumado com creme fraiche e dill, servidos em blinis. Um toque cosmopolita. 
 
Os Christmas Crackers também fazem parte do almoço de natal. Não são biscoitos de natal. O crackers são uns tubos de papelão, amarrados nas duas pontas, como se fossem bombons. A pessoa assentada ao seu lado na mesa puxa uma ponta e você puxa a outra, até o embrulho se despedaçar, soltando um estalinho. Lá dentro estão uma coroa de papel de seda, uns brinquedinhos, umas piadinhas e charadas.
 
 
 
 
 
 
Adultos e crianças põem as coroas na cabeça e leem as piadinhas infames, coisa do tipo, o que um ovo disse para o outro ovo*? Geralmente têm um tema natalino e fazem jogos de palavras. Os ingleses têm mania de jogos e de se fantasiarem. Eles têm um lado lúdico, que a gente demora um pouco a pegar e que eles escondem debaixo da formalidade. A palavra excêntrico parece que foi criada para descrever este traço da personalidade britânica.
 
Depois do almoço a sobremesa tem ... adivinhe o quê? Frutas secas! É o Christmas Pudding. Pudding em geral é sinônimo de sobremesa, mas pode ser um monte de coisa, até chouriço, o black pudding. O Christmas Pudding, ou pudim de natal, é uma tradição que surgiu na Idade Média. Não é pudim e sim um bolo de frutas, que leva sebo moído  (uma gordura que envolve os rins de bois e cordeiros) e farinha de rosca na receita. Não vai ao forno. Depois de colocada numa tigela e selada com um pano ou papel alumínio, a massa é cozida no vapor. Lá dentro ia uma moedinha de prata, um presente para o sortudo que ganhasse a fatia com o tesouro dentro. O bolo de natal é preparado cinco semanas antes do grande dia e vai aos poucos curtindo no brandy. Ao ser servido, mais um tanto da bebida é derramada sobre o doce, que é flambado e acompanhado de creme misturado com mais brandy.  Meu paladar mudou muito desde que cheguei aqui. Hoje em dia como coisas que detestava no começo. Quanto ao Christmas Pudding, vou ser bem inglesa e dizer que é um gosto adquirido. Um que infelizmente ainda não adquiri. Aí vai em inglês, uma receita moderninha do Jamie Oliver de Christmas Pudding.
 
 
 
  
 
Quanto mais velha fico, mais eu gosto das tradições. Redundância, eu sei. Pouco antes do natal vem o solstício de inverno e o dia mais curto do ano. Falta luz solar. Transborda saudade do Brasil. Sinto falta dos natais com a minha família, da casa cheia de parentes e a mesa farta de referências da nossa herança portuguesa. Nem que eu viva cem anos por aqui, vou preferir o menu inglês ao brasileiro. Mas quer saber? Adoro as tradições natalinas desta ilha. Este sim, um gosto adquirido. Com muito prazer.
 
 

*Estou chocado!
 
 

sábado, 6 de dezembro de 2014

Sem Trincheiras


Duas moças conversavam na minha frente num trem em Paris. Elas deviam ter dezoito, vinte anos no máximo. Eram a personificação do charme parisiense em suas roupas de um domingo de verão.  Uma estava assentada bem na minha frente, a outra ao seu lado, do outro lado do corredor. Elas podiam ser as estrelas de um comercial de iogurte orgânico, feito com o mais puro leite de vacas alpinas. Invadida pelo espírito tiazinha piegas, olhava as duas e pensava em como a juventude é bonita. De repente, uma delas se calou e a expressão de seu rosto endureceu. Com os olhos, ela guiou o olhar da outra para o corredor. Imediatamente as duas empinaram o nariz, como cães de caça que farejam uma raposa. Virei o rosto e vi que uma mulçumana, pouco mais velha do que elas, vinha em nossa direção. A mulher tinha a cabeça coberta por um lenço e caminhava despretensiosamente, sem querer provocar ninguém. Só queria mudar de vagão. Um milímetro depois de ela cruzar o caminho das francesas, elas enfiaram os dedos nas respectivas gargantas, num gesto de nojo e repulsa. Um descaramento total. Começaram a falar mais alto do que antes e deitaram fora todo o racismo que ainda não havia sido revelado. Nunca tinha testemunhado a beleza se rachar tão brutal e rapidamente como naquele momento. O iogurte tinha azedado.

 Se você é daqueles que tem até um pincel especial para limpar o painel do carro, melhor se poupar e pular para o próximo parágrafo. Para quem ainda está por aqui, vou contar: meu carro é um modelo ‘vintage’-ecológico. É vintage para combinar com o toca-fitas, que funciona até hoje. Quando vem gente do Brasil, eu ouço: ah, se eu soubesse que você tinha isso! Joguei todas as minhas fitas cassete no lixo. Dá para notar um pouquinho de tristeza e nostalgia, quando eles dizem isso. Meu carro é ecológico, porque os retrovisores fornecem um ecossistema perfeito para as aranhas que vivem no canteiro na frente de casa. Atrás dos espelhos, elas fazem seus ninhos. De vez em quando tiro o algodão doce, feito das teias que elas produzem durante a noite. Também é ecológico, porque notei um tiquinho de musgo crescendo no porta-malas. 

Ontem, máxima de quatro graus e chuva. Gripada, fui ao supermercado. Pus as compras no carro, mas ele não quis ligar. Chamei o socorro. Socorro veio, deu um paliativo e prescreveu um mecânico. Saí do supermercado e fui direto ver o Rui, nosso mecânico português. Ele ouviu a história e deu seu diagnóstico. O caso, infelizmente, não era terminal. Parece que ainda vou guiar o ‘vintage’ por mais um tempinho. Deixei o carro aos cuidados de Rui, que me tranquilizou: é um carrinho muito bom, minha senhora. Recolhi as compras de geladeira e fui atrás de um 'cab'. O ‘cab’ está para o táxi, assim como o táxi comum está para o especial. 

O ‘cab’ encostou onde era proibido parar e entrei rapidamente. Desconforto instantâneo. Fazia uns trinta graus no carro. O banco da frente estava colado no de trás, eu mal podia mexer as pernas. O motorista era estranho. Um ser inversamente proporcional ao tamanho do carrão que dirigia. Assim que ele parou no primeiro sinal, pedi que arredasse o banco da frente. Ele me perguntou de onde eu era. 

- Ah, Brasil! Eu gosto do Brasil. Adoro o Romário, ele é tão discreto, não? Romário, o Sócrates também! Vocês são os melhores do mundo no futebol. Quer dizer, eram. Tomaram de sete para a Alemanha. 

Pronto! Não levou nem dois quarteirões e ele já estava cutucando ferida. Atchim!  Mudei de assunto e perguntei de onde ele era. Da Argélia, ele disse. Um país lindo. Vou para lá semana que vem e talvez não volte nunca mais, ele acrescentou. Perguntei há quantos anos ele vivia aqui e ele disse: vinte e cinco, nem tudo é perfeito. Contei que uma tia arquiteta tinha passado um tempo na Argélia nos anos 70, trabalhando para o arquiteto mais famoso do Brasil. A referência passou batida e ele seguiu falando dos nove irmãos que tinha vivendo lá. Perguntei se ele falava francês. Em francês ele respondeu que sim, infelizmente. Foi a deixa para ele começar a desfiar seu ódio contra os franceses.

- Eles têm coração de pedra. São seres humanos cruéis. Mataram centenas de argelinos. Lutamos contra eles durante sete anos, até ganharmos nossa independência. Eles não prestam.

O sinal fechou e ele disse com uma voz totalmente diferente e assustadoramente tranquila:

- Depois de deixá-la, vou direto para minha mesquita para rezar. Rezo dez vezes por dia. Nós temos uma relação muito especial com nosso Deus. Essa última frase ele falou como quem quer vender creme dental. 
- Atchim!
- Você é cristã?
- Yes.
- Católica, né? Os portugueses...
 
Disse que sim. Demorou um pouco para eu entender o porquê da pergunta. Ele queria ter certeza de que eu não era judia, porque dali em diante o que se seguiu foi um aniquilamento dos judeus. Ele ia ficando mais animado, o ponteiro do velocímetro subia e ele rogava pragas e mais pragas aos filhos de Israel, enquanto eu me arrependia de não ter tomado o trem de volta para casa. Mesmo gripada e com as sacolas de supermercado  teria sido melhor. Ele passou a toda por um desses radares de velocidade e eu torci para ver o flash da câmera piscar. O dia ia de mal a pior, queria chegar em casa logo. Sugeri que ele virasse à esquerda, para cortar caminho. Ele virou e começou a reclamar.  

- Não sei por que você me fez vir por aqui.  É muito mais longe, estou dando voltas. Vou ter que cobrar mais.
 
O preço havia sido combinado antes da corrida, o caminho era mais curto e o homem um mala sem alça. Ele estava cada vez mais irritado e eu incomodada. Só pensava que a única coisa que me lembrava sobre a temporada argelina de minha tia, era ela contando como eles tratavam mal as mulheres. Cheguei em casa, paguei, não dei gorjeta e fui tomar um banho para tirar a inhaca do dia.



O interessante das associações de ideias é que uma coisa leva a outra, sem nos darmos conta. O taxista raivoso e vingativo me fez lembrar das francesas racistas no trem. As duas histórias me remeteram a um anúncio de natal, que divide a opinião dos ingleses nesta temporada festiva.

 

 

 
A propaganda mostra soldados ingleses e alemães entrincheirados durante a Primeira Guerra. Miseráveis, morrendo de frio e de saudade de casa, eles começam a cantar ‘Noite Feliz’ em inglês e alemão. Um soldado inglês sai da trincheira, seguido por outro alemão. Quando menos se espera, inimigos começam a jogar bola, numa trégua natalina. A história da partida de futebol é real e aconteceu no primeiro ano da guerra, antes da coisa ficar feia demais.

O comercial foi criticado por explorar um assunto tão delicado para os ingleses, especialmente no ano do centenário da Pimeira Guerra. Para que? Para vender mais peru e biscoito no natal, delataram os críticos. Pessoalmente achei as  críticas mal-humoradas. É uma peça publicitária lindíssima e me fez pensar em outras trincheiras que se abriram em 2014. 

Um amigo querido se queixou que as brigas saíram do plano virtual e incineraram amizades reais e antigas no Brasil. Acompanhei um monte de gente postando frases sobre a importância de se respeitar as opiniões alheias, sem perder o amigo. Já que é natal, vou continuar no tema bíblico. A impressão que tive de 2014 foi a de que o mar se abriu ao meio nas relações pessoais aí no Brasil, com familiares que não se falam mais e amigos que romperam laços de infância e juventude. 
  



 
Fim de ano é tempo de fechar para balanço e também de fazer planos para o ano novo. O balanço de 2014 é longo e interessante. Talvez seja preciso mais de um natal para fechar essa conta. Minhas resoluções para o ano que vem ficam aqui comigo. O que gostaria de compartilhar são meus desejos de ano novo. 



Que em 2015 a gente consiga sair das trincheiras que cavamos aqui e ali; antes que as diferenças se tornem irreconciliáveis. Que reconheçamos que a gente gosta do outro ‘apesar de’. Apesar de o outro ser chato de vez em quando. Apesar de o outro não ter o bom gosto de torcer pelo mesmo time que eu. Apesar dele não ter o meu bom senso político. É um exercício de convivência porque só assim, quem sabe, o outro vá gostar da gente também. Apesar de todos os nossos vícios, sucessos, perfeições, escolhas erradas e pieguices em geral. Que 2015 seja um ano de mais tolerância,  jogo de cintura e amor nas relações. Sejam elas quais forem. 
 


                                     Paz e felicidade para 2015!

 

 

sábado, 29 de novembro de 2014

Estado Babá X Estado Madrasta



Experimenta procurar uma tomada num banheiro inglês. Vai perder seu tempo. Tirando uma de formato especial para carregar o barbeador elétrico, não existem tomadas em banheiros por aqui. É ilegal. O dono da casa não ganha o habite-se e nem vende a propriedade, se tiver a tomada. Se algum acidente acontecer e ficar provado que tinha a ver com a tomada ilegal, o proprietário responde a um processo criminal. Por quê? Porque o Estado quer prevenir acidentes. O cidadão desavisado pode querer secar o cabelo e tomar um banho ao mesmo tempo e acabar virando torrada. 

Os pubs, como são chamados os bares ingleses, precisam de uma licença para vender bebida. A licença limita o horário de funcionamento do pub e determina a hora em que o estabelecimento deve fechar. O dono do pub toca um sino, dez, vinte minutos antes de encerrar a venda de álcool. Aí, meu amigo, é o estouro da boiada. Pavlov, se pudesse ver a cena, salivaria de prazer. Os frequentadores de pub reagem condicionadíssimos ao sinal. Correm para o balcão e compram tantos copos de cerveja, quantos eles conseguem carregar. Aqui não tem copo lagoinha para beber cerveja. Ela é servida em pints, um copão de mais de meio litro. 568,26 ml para ser exata. Os fregueses não se importam que a bebida não esteja gelada. Aliás, o conceito de bebida gelada é uma coisa que eles ainda não alcançaram. Tenho esperança de que um dia eles ainda cheguem lá. Enquanto isso, bebem e servem refrigerantes, sucos, água e cerveja em temperatura ambiente. Cheers!  

Além do desespero para comprar o último trago, a decisão de marcar hora para fechar os pubs provoca outro fenômeno tipicamente inglês: a hora do rush dos bebuns. Claro, né? Saem todos alegrinhos e altinhos na mesma hora. Por que não se pode ficar bebendo no pub à noite, em dia da semana, até a hora em que o freguês ou o dono do bar quiser? Porque o Estado quer combater o alcoolismo e os chamados comportamentos antissociais agressivos. 

Sabe qual é a última? A discussão de um projeto de lei que proíbe que se fume dentro de carros, que transportem crianças. Se a lei passar, o motorista não vai poder fumar dentro do próprio carro, se tiver uma criança presente. Fumar é proibido em lugares públicos fechados. Por quê? Porque o Estado quer proteger o pulmão do cidadão. *

Tomadas em banheiro, horário dos pubs e fumantes são apenas três itens de uma lista interminável de proibições e regulações que renderam ao Estado Britânico o apelido de ‘Nanny State’. O Estado babá. Cada um dos pontos listados acima é passível de debate. Não é nem preciso se esforçar muito para entender a motivação por trás deles. Mas é o papel do Estado? Até que ponto o Estado deve, ou pode se intrometer na vida do cidadão? Quem é que demarca esses limites? É excesso de controle público sobre o privado? O cidadão não seria capaz de fazer suas próprias escolhas? Que fim levou o bom senso? 

A filhinha de uma amiga estava balançando a cadeira para trás, perdeu o equilíbrio, caiu de costas e bateu a cabeça. Chorou, ganhou colo da mãe e passou o dia bem. À noite, começou a vomitar. Assustada, a mãe pensou que talvez fosse por causa da queda e a levou para o pronto socorro. Já era tarde, o plantão estava movimentado. Elas tiveram que esperar mais de duas horas para serem atendidas. A menina vomitando. Quando finalmente foram recebidas por um médico, ele perguntou o que tinha acontecido. Ouviu em silêncio e perguntou ao final da história:
- Que horas ela caiu? Você viu a queda?  

Minha amiga disse que havia sido pela manhã e que não tinha visto, porque a menina brincava no quintal, enquanto ela tinha ido à cozinha buscar qualquer coisa. Antes de examinar a criança, o médico disse que teria que acionar o serviço social. Por quê? Porque o acidente havia acontecido de manhã e a mãe só tinha levado a criança ao hospital à noite. Além disso, ela não tinha presenciado a queda. Você negou socorro a uma criança que ainda por cima estava desacompanhada!  Ele deu seu veredito à mãe atônita. Desnecessário dizer o estresse que a família passou. Quanto à menina, ela tinha sofrido uma indisposição estomacal. Mais nada. 

A cunhada de uma vizinha teve um bebê. Marinheira de primeira viagem. Feliz da vida. Quando o menino tinha poucas semanas de vida, ela notou um roxinho no rosto dele. Levou-o ao hospital. Eles fizeram uma tomografia de cabeça e encontraram uma pequena fratura. A criança foi imediatamente tirada da mãe. Um trauma enorme, ela ainda estava amamentando. Os pais recorreram e só puderam levar o bebê para casa, dois meses depois, porque a avó da criança se comprometeu a viver com a família e ser a guardiã do menino. A mãe não podia sequer carregar o bebê sem a presença da sogra. A família pediu uma revisão do processo. Negado. Os pais então contrataram um advogado, que pediu um parecer de outro médico. No fim das contas, o bebê não tinha fratura nenhuma na cabeça. O que aconteceu foi que, na hora do exame, ele se mexeu . O que parecia uma fratura, na verdade era um tremido na imagem. Apesar do erro, esta família está ‘fichada’ para sempre. A mãe vive apavorada que tomem seu filho novamente.

 
"Baby P"


Esse anjinho de olhos azuis escuros como a noite, morreu em 2007 aos 17 meses. Peter Connelly era o saco de pancadas da mãe, do namorado dela e do irmão do namorado. A autópsia revelou que o bebê tinha mais de 50 ferimentos pelo corpo. Durante a curta vida dessa criança, ela foi atendida inúmeras vezes por médicos e assistentes sociais. A mãe era uma mulher extremamente manipuladora, que se passava por uma pessoa amorosa. Quando o caso veio à tona, vários assistentes sociais, médicos e políticos foram desgraçados, escorraçados pela mídia e opinião pública. O caso Baby P, como ficou conhecido, mudou a cultura da assistência social neste país. 

No Reino Unido existe o ‘Children Act’ um conjunto de leis que visa salvaguardar a integridade das crianças. Se o Estado considerar que a criança está em risco, ela poderá ser colocada para adoção, mesmo sem o consentimento dos pais. São as chamadas adoções forçadas. Este tipo de adoção aumentou 20% entre 2013 e 2014. Em média cinco crianças são adotadas por este sistema todos os dias. 

Este modelo de intervenção radical é bancado por uma instituição de caridade chamada Barnardo’s, cuja missão é proteger crianças vítimas de violência doméstica. A Barnardo’s é a maior instituição de caridade de crianças, em termos do volume de capital que movimenta - cerca de 770 milhões de reais por ano.  


A instituição existe desde 1866. Foi criada por um irlandês chamado Thomas Barnardo. Seu trabalho começou dando abrigo e educação aos órfãos de um surto de cólera, numa área de Londres onde hoje em dia ficam os teatros de musicais. No ano de sua morte, 1905, a Barnardo’s cuidava de 8.500 crianças em 96 localidades. Suas boas ações, contudo, eram cercadas de polêmica. O irlandês foi acusado mais de uma vez de raptar as crianças. Ou seja, tirava-as à força das famílias, que ele achava inadequadas. Ele teria chegado ao extremo de ‘fabricar’ fotos destas crianças. Em estilo antes e depois. Ele fazia as crianças parecerem piores e mais sujas, nas fotos do ‘antes’. As fotos do ‘depois’ de sua intervenção eram bem melhores. Ele admitiu a farsa  e o uso de métodos agressivos, mas justificou: eram “abduções filantrópicas”. O jeitinho pedante de dizer que os fins justificam os meios.
 

Quase um século e meio depois, a Barnardo’s continua a defender o que eles chamam de intervenção drástica. A ideologia baseia-se em casos extremos como o de Peter Connelly. O argumento é que essas crianças têm que ser protegidas a qualquer custo e quanto antes elas forem separadas de suas famílias violentas ou negligentes, melhor para elas. Menor é o estrago. 

Esta ideologia é compartilhada por vários ‘Councils’ na Inglaterra. O Council é uma espécie de prefeitura. É responsável pelo serviço de assistência social às famílias e crianças. A questão é que a ‘construção’ dos casos que justificam as adoções forçadas fica a cargo dos assistentes sociais. Os critérios são subjetivos. Famílias, que lutam na Justiça para terem os filhos de volta, argumentam que muitas vezes os fatos são reais, mas são manipulados e retratados de uma maneira extremamente desfavorável.
O Children Act e a adoção forçada criam um cenário kafkaniano. Fornecem a justificativa legal para que crianças que ainda nem nasceram sejam postas para adoção, mesmo contra a vontade dos pais! Isso mesmo. Na prática, os pais são punidos por um crime que sequer cometeram. É o caso de um casal de adolescentes que fugiu da Inglaterra, para evitar que a criança fosse tirada deles depois do parto. A mãe da criança foi colocada em uma casa de acolhida, porque o Estado julgou que seus pais não tinham condições de criá-la. Aos dezenove anos, ela engravidou de um colega de sala. Os dois tiveram uma discussão quente. A polícia foi chamada. Como a moça já era figura conhecida do sistema, as luzes de alerta se acenderam e ela perdeu a guarda da criança, que carregava em seu ventre**. É bom deixar claro que esta é a versão apresentada pela moça e que não tive acesso ao processo, que determina a adoção forçada. Ou seja, só estou contando um lado da história.


O governo defende suas ações. Diz que nenhuma criança é afastada dos pais, sem que haja evidências claras e sólidas para que isso aconteça. É difícil comentar os casos, sem saber os detalhes. É fácil tirar conclusões apressadas e inflamadas. Se o trabalho tivesse sido bem feito no caso de Baby P, talvez o menino estivesse vivo. Ser assistente social nesta ilha é um trabalho arriscado. Os profissionais estão sofrendo uma pressão enorme do público e da mídia. Dados divulgados essa semana revelam que o número de crianças, que estão aos cuidados do Estado, é  o maior dos últimos vinte e cinco anos.  Fica a sensação de que algumas decisões são tomadas sem levar em conta o que é melhor para a criança e sim o que é mais seguro para as instituições.


A linha que separa o ‘Nanny State’, o Estado babá, de o que eu chamo de ‘Stepmother State’, o Estado madrasta, é  tênue demais para o meu gosto.




* A lei foi aprovada 

 ** Aqui vai o link de um especial sobre o tema, feito pela Rádio BBC 4: http://www.bbc.co.uk/programmes/b03pjf3z

 


  

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Para sempre e Para todos

 

‘Se é verdade que os esquimós têm dezenas de palavras para a cor branca, os brasileiros devem ter centenas de palavras para a cor verde’. A frase inspirada é de um amigo; um escocês maravilhado pelo Parque Nacional do Iguaçu. Tive uma lua-de-mel no mínimo atípica. Eu, o marido e outros nove gringos de brinde. Incluindo sogra e sogro. Todos ficaram de queixo caído com a exuberância da natureza no Brasil. 

Outro amigo, desta vez um brasileiro em Londres, também se surpreendeu com a natureza. Ao chegar ao Wimbledon Common, ele disse abismado: ‘Tá de brincadeira? É isso? Tem gente que vem passar o dia aqui e fazer piquenique? Só tem mato!’ Wimbledon Common é uma área de reserva natural de 460 hectares, que se espalha por três bairros ao sul de Londres. Um deles é o elegante Wimbledon, o mesmo do torneio de tênis. A parte do parque, que fica próxima à vilinha de Wimbledon, é coberta de ‘meadow’. Prado em português. No dia em que meu amigo se assombrou, a vegetação estava particularmente seca, capim tostado. 

Li uma vez que no hemisfério norte, quanto mais ao norte, mais as pessoas são contemplativas. A julgar pelos programas de jardinagem e de natureza que a BBC faz como ninguém, deve ser verdade. Onde a gente vê capim seco, eles veem folhagens de diferentes formatos, tamanhos e tonalidades; o movimento provocado pelo vento e até pequenos insetos. O pai de outro amigo brasileiro veio passear por aqui. Aos oitenta e alguns anos, ele ficou besta com os ingleses, que constroem em seus jardins ‘hotéis' para insetos. ‘ No Brasil a gente peleja para se livrar deles’.

Nymans - National Trust


Talvez essa tendência dos ingleses à contemplação seja um dos ingredientes do sucesso do National Trust, uma organização conservacionista, que existe na Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte. O National Trust é o maior proprietário privado de terras nesses três países. São 2550 quilômetros quadrados de parques, jardins, fazendas, costa marinha, mansões, castelos, áreas industriais, urbanas e florestas. Paisagens de encher os olhos. O filme ‘ O mundo encantado de Beatrix Potter’ (2006) mostra alguns destes cenários. A autora e ilustradora do consagrado Peter Rabbit, um clássico da literatura infantil inglesa, doou 14 fazendas ao Trust. Graças a ela, um quarto da área do Lake District está preservada para as futuras gerações. A região dos lagos, quase na fronteira com a Escócia, atrai milhares de turistas pela beleza natural.
 

Peter Rabbit


Lake District
 
 

O National Trust é quase que um Estado dentro do Estado. Seus números são impressionantes: é a maior organização de caridade da Inglaterra, possui quatro milhões de membros, recebe duzentos milhões de visitantes por ano. O mais incrível, se sustenta sozinha, sem subsídios ou qualquer forma de ajuda financeira ou interferência do governo.  

O Trust foi fundado em 1895. No começo de sua história visava preservar as mansões e os castelos dos aristocratas e endinheirados em geral. Mas foi entre as Primeira e Segunda guerras que viveu seu período de maior expansão. Endividadas e sem condições de manter suas propriedades, muitas famílias doaram imóveis ao National Trust. Além disso, por causa do espírito conservacionista dos ingleses, o Trust recebeu, e ainda recebe, doações consideráveis de heranças.  

A brincadeira na minha família é dizer que as propriedades do National Trust são as nossas casas de fim-de-semana. Se o tempo não está de todo ruim, visitamos uma destas casas. A anuidade do National Trust custa cerca de trezentos reais para um casal com uma criança. Vale cada centavo. O Trust administra quinhentos locais de interesse. Mesmo sendo uma frequentadora assídua, não consegui visitar nem um terço destes lugares.
 
 
 

 

O National Trust está mais popular do que nunca. Principalmente porque não deixa a peteca cair. Seus projetos de conservação e restauração são primorosos. Eles sabem envolver a comunidade local e criar eventos sazonais. Celebram as colheitas, as festividades. São caminhadas na primavera, noites assombradas no outono, teatro ao ar livre no verão e cantigas de natal no inverno. Demonstrações de falcoaria, de culinária, de jardinagem, de lutas medievais e artesanato tradicional. Tem sempre um atrativo para o visitante.
 
 



O tempo nesta ilha é voluntarioso. Chove um bocado, o céu vive cinza e no inverno às quatro da tarde já é noite. Mesmo assim, os ingleses têm paixão pelos ‘great outdoors’, ficar ao ar livre. Quem sabe essa preferência seja exatamente por causa do clima instável. O fato é que o visitante de hoje do National Trust está mais interessado em passar  mais tempo nos jardins e campos do que nas casas e mansões. O problema é que se essa tendência se confirmar, as novas gerações podem não querer investir na preservação das construções históricas, algumas delas com mais de 500 anos de existência. Para evitar que esse trem se descarrilhe, o National Trust está mudando sua estratégia. Está se modernizando para sobreviver.
 

 

 
Arranjo do Jubileu da Rainha

 
 

Há quase dez anos, quando comecei a frequentar o National Trust, várias áreas das casas abertas ao público tinham acesso restrito, muitas vezes com cordas, para evitar que o visitante tocasse nos objetos ou estragasse o piso. Hoje em dia isso mudou um pouco. Eles claramente tentam criar uma nova geração de amantes da preservação. As atividades para  crianças estão cada vez mais comuns. São caça tesouros escondidos nas salas e outros desafios, que são premiados com pequenas recompensas. Mas não é só isso. O National Trust comprou a casa onde o Beatle Lennon passou sua infância, por causa de sua relevância cultural. Sabe aquele ‘faz de conta que a casa é sua’? Pois é, em outro projeto ambicioso toda a mobília original de uma casa histórica foi  substituída por móveis modernos. O visitante pode assentar, ler e desfrutar da casa, como se fosse realmente dele. 
 

De tempos em tempos, o National Trust manda boletins informativos para seus membros. Informam sobre projetos e a programação local. Uma vez por ano chega uma revista.Os anúncios da revista são direcionados para um público muito mais velho.  São aparelhos de surdez, excursões sob medida para aposentados e cobertores. Os anúncios dão uma pista sobre seu alvo. Sem falar que o  National Trust não quer desprezar os aposentados. Eles têm tempo e dinheiro e são potencialmente doadores de heranças. Na outra ponta, é notável o investimento nas futuras gerações com novos playgrounds e o ‘geocaching’, a caça ao tesouro mais bacana que existe.  

 
 
GPS com coordenadas


 
O National Trust empresta aos visitantes um GPS e um mapa com as coordenadas. Escondidas dentro de troncos de árvores e debaixo de pedras, estão caixinhas com ‘tesouros’ e um pedaço de papel para o explorador escrever seu nome, tipo um ‘fulano passou por aqui’. As regras são simples: o aventureiro só pode recolher o tesouro, se deixar outro no lugar para o próximo explorador. Pode ser uma bala, um balão de festa, um brinquedinho de plástico. Vale qualquer coisa, só não vale tirar um tesouro e não deixar nada em troca. Espalhamos algumas moedinhas de reais por aqui. A outra regra é que as caixinhas devem ser colocadas no mesmo lugar em que foram encontradas. Fizemos uma dessas caças ao tesouro com uma italiana. Ela custou a acreditar que as pessoas realmente cumpriam as regras.
 

Caça ao tesouro
 

O National Trust é um exemplo clássico de uma das coisas que mais aprecio no British Way of Life*. É uma das maiores organizações de caridade do mundo. Sobrevive e funciona tão bem porque existe investimento do cidadão. Conta com setenta mil voluntários, cujo trabalho soma 3.77 milhões de horas, num valor estimado em cerca de 100 milhões de reais por ano. É a sociedade civil organizada para preservar os valores que considera importantes. Não é à toa que o lema do National Trust seja ‘ for ever, for everyone’. Para sempre, para  todos.
 
 
Trilha na floresta
 
 
 
 * Estilo de vida dos britânicos

 

domingo, 16 de novembro de 2014

Três Mulheres


Da Gaveta*

Se tem uma coisa que as inglesas não entendem é essa coisa de brasileiro ter empregada doméstica. Uma amiga daqui diz que é um absurdo que alguém limpe a sujeira que ela faz. Diz que é exploração. Toda vez que surge esse assunto, pergunto se é exploração pagar para alguém varrer as ruas, ou comer a comida que outra pessoa preparou num restaurante. Elas dizem que não e eu digo, qual é a diferença? É um trabalho. Não?

Já participei de jantares em que homens e mulheres comparavam notas sobre os melhores produtos de limpeza. Maior resultado e menor esforço é o nome do jogo. Todo mundo que eu conheço aqui lava, passa (muito raramente, diga-se de passagem) e cozinha. Se bem que muitas casas não tem sequer um fogão. É comum ver famílias que vivem de comida pronta, que elas esquentam no micro-ondas. Cada um que cuide de suas crianças, apare a grama e pinte as paredes. Esta é a terra do DIY** (faça você mesmo). Quem tem o luxo de ter uma arrumadeira por duas horinhas por semana, arruma a casa antes de ela chegar, que é para não dar vexame.

Recentemente li o livro ‘ The Help’, de Kathryn Stockett (que no Brasil foi lançado com o título de ‘A resposta’). A trama se passa no sul dos Estados Unidos na década de sessenta. Conta o drama das empregadas domésticas negras e suas patroas brancas. Num dos episódios narrados pela autora, as donas-de-casa  organizam um movimento para construírem banheiros para as empregadas, que não poderiam usar o mesmo vaso sanitário que as patroas. Soa familiar? Pois é, morri de vergonha dos nossos elevadores de serviço, onde são transportadas as domésticas, os cães e o lixo. O livro, as conversas sobre empregadas e a falta que sinto delas me fazem pensar nas mulheres que passaram pela minha casa e pela minha vida.
 
 

Quando morava em São Paulo, tive uma empregada chamada Edivalda. Edivalda era alto-astral, cheia de energia, alegre e muito competente no trabalho dela. Assim como milhares de outros nordestinos, ela migrou para o sul ainda mocinha, levada por parentes. Chegou a São Paulo aos treze anos, cheia de medos e sonhos. Tinha um emprego arranjado na casa de uma família de libaneses, num bairro nobre da cidade. Ia ajudar a criar as crianças da casa. Aos dezessete, ela ficou grávida de um português amigo dos patrões. Um homem trinta e um anos mais velho do que ela. Assim que o menino nasceu, o patrão, que era médico, arranjou para ela ligar as trompas. Anos mais tarde, ainda trabalhando para os libaneses, ela se casou com outro homem. Até que um dia resolveu mudar e sabe-se lá porque, foi parar lá em casa.

 Edivalda era esperta, dava conta do recado rapidinho, saía da minha casa e ainda ia fazer faxina em outras casas. O filho Bruno, de onze anos, tinha aparelho nos dentes e fazia um curso de inglês, que ela se esforçava para pagar. No fim do dia, Edivalda pegava dois ônibus e ia para casa com o menino, lavar, passar e cozinhar para a família, antes de ir para um curso supletivo. Ela queria terminar o primeiro grau. “Já imaginou, o Bruno falando inglês e tudo e eu sem saber nada? Ele vai ficar com vergonha de mim e vai acabar indo embora. Eu não quero perder  meu filho”, ela me contou um dia. Edivalda tinha suas prioridades definidas direitinho. Nos fins-de-semana, ela trabalhava num mutirão para construir o apartamento, que seria dela um dia. O marido, muito chique, não podia ir misturar cimento e carregar tijolo porque, segundo ela, ele tinha diploma. O plano era sair do aluguel e poder realizar o próximo sonho: juntar dinheiro para reverter a laqueadura e ter outro filho.

Edivalda trabalhou para mim durante dois anos. Ela tinha o hábito de me ligar bem na hora do fechamento do jornal, quando eu estava correndo para terminar as matérias. Na pior hora possível, me perguntava o que fazer para o almoço. Como ela continuava a se referir à ex-empregadora como ‘minha patroa’, um dia eu disse para ela ligar para a patroa, ver o que ia ter de almoço na casa dela e fazer o mesmo. Bad move***. Não passou muito tempo e ela pediu as contas. Resolveu voltar a trabalhar para a patroa.

Saiu Edivalda e entrou sua antítese, Marialva. Pequenininha, franzina e arredia. Quase não falava, não fazia barulho e andava pela casa como se já não habitasse esse planeta.  Quando eu disse que iria assinar a carteira dela, ela disse que não queria porque já estava aposentada. Aposentada? Como assim? “Pobremas da mente” ela disse. Para falar a verdade, não fiquei muito confortável tendo uma pessoa com problemas mentais dentro de casa, mas ela foi ficando. Em doses homeopáticas sua narrativa começava a se desenhar, sem pressa, como Marialva. 
 

Marialva também havia saído do Nordeste. Chegou a São Paulo acompanhada do primo Joaci, da mesma idade dela. Os dois se conheciam desde sempre e estavam noivos. O começo foi difícil. Passaram frio e fome. O dinheiro nunca dava, mas eles foram se arranjando. Ela ficou grávida, o bebê nasceu morto. Depois teve outro, que morreu com poucas semanas de vida. Ela queria muito ser mãe. Vieram dois meninos e duas meninas. Eles conseguiram comprar um apartamento em Carapicuíba e a vida parecia ajeitada. Foi então que o filho mais velho, de dez anos, começou a reclamar de dores na perna. Ela o levou ao posto de saúde várias vezes para sempre ouvir a mesma resposta: ‘É dor de crescimento, minha senhora’. A tal dor de crescimento foi só piorando e ele teve que ser internado. Tinha câncer nos ossos. Viveu só três meses. Foi quando Marialva teve o “pobrema da mente”.  

Apesar de caladinha, Marialva era uma dessas mães do mundo, que achou que tinha que cuidar de mim. Quando me mudei de casa e fui passar o carnaval fora, ela foi até a minha casa nova com o marido e juntos consertaram tudo o que precisava de reparos no apartamento. Na volta do feriado, encontrei a casa um brinco e fiquei muito comovida com a generosidade deles. 

 Depois de um tempo, Marialva avisou que ia embora com a família. Eles iam para Minas, porque o segundo filho estava escapando pelos dedos. Andava em más companhias. Ele já não era o mesmo desde a morte do irmão e eles tinham medo de que ele fosse preso ou assassinado. Anos depois fiquei sabendo que o rapaz havia sido preso em Minas, por tráfico de drogas. Na prisão, ele teria ficado doido. Quando foi solto, os pais se mudaram de novo, para cuidar melhor do filho. Longe das más companhias.


Marialva foi embora e deixou em seu lugar a Dulce. Dulce já era avó. Ela era uma senhora negra alta e extremamente elegante. Nunca teve educação formal, mas era dona de uma sabedoria admirável. Cada movimento seu gritava “eu tenho orgulho de ser quem sou”. Ela também era muito competente no trabalho e como as outras me deixou muito mal acostumada.


A vida de Dulce começou longe da capital paulista. Ela nunca entrou em detalhes, mas deu para perceber que ela tinha o dom de se relacionar com trastes, bêbados. Homens que abusavam dela. Homens que sumiam. Ela  contou que quando estava esperando a filha nascer, o pai da criança desapareceu. Ela se desesperou, sem ter como cuidar de dois filhos pequenos e grávida de outra criança. O desamparo foi tão grande, que um dia ela pegou os filhos e foi com eles para a estação de trem. Ia se jogar debaixo do trem e levar os filhos com ela. Chegando à estação, teve um ataque de nervos e ficou histérica. Foi levada com a família para um hospital. Dulce havia chegado à profundeza do abandono. Ela não sabia ainda, mas tinha molas nos pés. Assim que bateu no fundo do poço, começou a subir. No hospital, ela resolveu que nunca mais iria passar fome. Começou a frequentar as feiras livres e recolher as frutas e os legumes que os feirantes jogavam fora. Nunca levou os filhos junto com ela, que era ‘para eles não aprenderem a mendigar’. Dulce aprendeu a costurar e conseguiu vários empregos como empregada doméstica. Os três filhos concluíram o segundo grau e, para o orgulho dela, dividiam um carro zero quilômetro.

Ando pensando muito nestas mulheres sofridas e batalhadoras. Três mulheres tão diferentes e tão semelhantes ao mesmo tempo. Três mães empenhadas em suavizar o caminho dos filhos. Três mulheres a quem sou muito grata pela dedicação e generosidade.
 

(Novembro 2011)   

* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias ‘da gaveta’. São impressões de quando eu ainda era novata no Reino da Rainha.

** DIY – Do it yourself

***  Me dei mal.