Já houve um
tempo em que ter dentes podres era podre de chique. Os endinheirados desta
parte do mundo esfregavam açúcar nos dentes, para eles ficarem pretos. Ter
açúcar em casa era símbolo de status, um luxo que só os ricos podiam bancar. Na
lógica do esnobismo, dente preto era sinal de riqueza. Hoje em dia, açúcar é um
ingrediente de primeira necessidade, que não falta nem na casa mais pobre da
Inglaterra. E ter dente podre é podre mesmo.
Acabo de
chegar do supermercado. Na minha sacola estão vagens do Quênia, limões do Brasil,
tomates da Holanda e arroz da Índia. Não, não estou esnobando. Aliás, não tem nada
de extraordinário na minha geladeira. O fato é que esta Ilha depende
enormemente do resto do planeta para pôr a comida na mesa de seus habitantes.
Existem muitas campanhas para promover a produção local, orgânica e sazonal, a fim
de diminuir o impacto da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Quanto
menos transporte, menos óleo queimado. No verão nós vamos a uma fazenda, que
funciona como um enorme sacolão ao ar livre. A versão inglesa do ‘pesque e
pague’ aqui é o ‘colha e pague’. São campos de morangos, aspargos e espinafre.
O problema é que não tem absolutamente nada no inverno. O outono termina com as
festas da colheita: abóboras, daí a tradição do Halloween, nos Estados Unidos,
maçãs, batatas e couve de Bruxelas mais no fim da estação.
Meu pai
gosta de contar que quando apareceu a primeira geladeira na casa dos pais dele,
no ensolarado norte de Minas, a maior diversão da família era oferecer água
gelada para as visitas. Antes do advento da geladeira, os alimentos eram preservados
em sal, banha e açúcar. Nos países de inverno rigoroso, conservar os alimentos
para os dias de escassez era questão de sobrevivência. Hoje em dia, o que se vê
nas tradições natalinas da Inglaterra é quase que um retorno ao tempo em que
comprar vagem, tomate e limão no inverno era impensável.
Londres,
quem não sabe, é cosmopolita. Menos da metade de sua população nasceu neste
país. O número de imigrantes disparou nas últimas décadas e isso traz muitas
consequências. A melhor delas é que a cidade se abre para os sabores de outras
culturas. Aleluia! Os panettones italianos ganham mais espaço nas prateleiras
dos supermercados a cada ano, para minha alegria.
Meus vizinhos dos dois lados são aposentados.
O vizinho do lado esquerdo é um viúvo. Inglês típico: joga ‘bolws’, semelhante ao jogo
de bocha e tem um allotment. Allotment são pedaços de terra, geralmente do
tamanho de uma quadra de tênis, que o governo local arrenda aos moradores. Lá
eles cultivam frutas, legumes e verduras. No verão, o Wally abastece a nossa
casa com frutas vermelhas, couve-flor, abobrinhas, tomates e as batatas que
planta. Do outro lado, vive Kathy, também viúva. Quem não a conhece, acha que
ela é indiana. Ela parece indiana, mas nasceu ao lado do Brasil, na Guiana.
Todo dezembro nós convidamos os dois para um almoço de fim-de-ano. Eles chegam
cedo e vão embora tarde. Foi aqui em casa num desses almoços, que aos setenta e dois anos Wally provou um
panettone pela primeira vez. Achou exótico.
As grandes
redes de cafeteria lançam seus produtos sazonais, para atrair clientes. Investem
em chocolate quente de vários sabores, com creme e calda de frutas; chás de
maçã com canela e bolinhos de natal. Um apelo forte para os jovens, que estão mais
abertos a experimentar as novidades. Já a turma do Wally gosta mesmo é de
tradição e natal é a época em que dá para ser tradicional sem ter que pedir
desculpas. Uma das comidinhas tradicionais de natal começa a aparecer nas lojas
em novembro. São as ‘mince pies’, umas empadinhas doces recheadas de frutas
secas, especiarias e brandy,
o primo inglês do conhaque.
Mince pie tem pedigree. Sua história começa no
século XIII, com os cruzados, que retornaram da Terra Santa trazendo os
ingredientes. Segundo os historiadores,
a receita original levava, além das frutas secas, carne de cordeiro moída, noz
moscada, canela e cravo. Treze ingredientes, para representar os doze apóstolos
e Jesus. Originariamente elas eram retangulares e muito maiores do que a versão
atual. Mais para empadão do que empadinha. No século XVII, durante a guerra
civil inglesa, a iguaria caiu em desgraça. Foi considerada pelos puritanos um
símbolo da idolatria católica. Mas a mince pie triunfou até a era vitoriana,
quando ganhou uma repaginação: ficou menor, sem carne e mais doce. O recheio
pode ser preparado com meses de antecedência; as frutas são preservadas em
álcool e açúcar. Nas lojas é fácil encontrar a tortinha nesta época do ano.
Algumas são melhores que outras. Apesar dos doces ingleses serem bem menos
doces que os brasileiros, acho a mince pie um pouco doce demais para o meu
gosto. É massuda também. Nunca consegui comer mais de uma por dia. Não é à toa
que os ingleses dizem: ‘a moment on the lips, forever on the hips’, um instante
na boca, para sempre nas cadeiras. As tortinhas são servidas aquecidas e para
ajudar a descer melhor, um mulled wine: vinho quente para nós.
O vinho
quente com especiarias chegou aqui trazido pelos romanos, no século II. Lembra
a receita que minha mãe preparava aos litros para a festa junina do
bairro. Leva açúcar, cravo, canela e raspas de casca de laranja. É feito com
vinho tinto e mesmo os apreciadores mais exigentes de vinho bebem o mulled wine
no natal sem reclamar. É comum receber os amigos em dezembro para comer as
empadinhas com vinho quente.
Aqui não tem
ceia de natal no dia vinte e quatro. Essa é uma tradição católica. Os
anglicanos comemoram o nascimento de Cristo com um grande almoço no dia vinte e
cinco. Antigamente serviam ganso. Agora servem peru recheado de castanha
portuguesa, linguiça e frutas secas e cristalizadas, acompanhado de legumes
assados. A batata, que é o nosso arroz, cenoura e couve de Bruxelas, lembra o
começo do texto? Servem de entrada ‘pigs in blankets’ (carne de porco no
cobertor, em tradução livre). São umas linguicinhas dentro de massa folhada ou
enroladas no bacon e depois assadas. Se a festa é mais chique e com menos
aposentados, salmão defumado com creme fraiche e dill, servidos em blinis. Um toque cosmopolita.
Os Christmas
Crackers também fazem parte do almoço de natal. Não são biscoitos de natal. O
crackers são uns tubos de papelão, amarrados nas duas pontas, como se fossem
bombons. A pessoa assentada ao seu lado na mesa puxa uma ponta e você puxa a
outra, até o embrulho se despedaçar, soltando um estalinho. Lá dentro estão uma
coroa de papel de seda, uns brinquedinhos, umas piadinhas e charadas.
Adultos e
crianças põem as coroas na cabeça e leem as piadinhas infames, coisa do tipo, o
que um ovo disse para o outro ovo*? Geralmente têm um tema natalino e fazem jogos
de palavras. Os ingleses têm mania de jogos e de se fantasiarem. Eles têm um
lado lúdico, que a gente demora um pouco a pegar e que eles escondem debaixo da
formalidade. A palavra excêntrico parece que foi criada para descrever este traço
da personalidade britânica.
Depois do
almoço a sobremesa tem ... adivinhe o quê? Frutas secas! É o Christmas Pudding.
Pudding em geral é sinônimo de sobremesa, mas pode ser um monte de coisa, até
chouriço, o black pudding. O Christmas Pudding, ou pudim de natal, é uma
tradição que surgiu na Idade Média. Não é pudim e sim um bolo de frutas, que
leva sebo moído (uma gordura que envolve os rins de bois e cordeiros) e farinha de rosca na receita. Não vai ao forno. Depois de
colocada numa tigela e selada com um pano ou papel alumínio, a massa é cozida
no vapor. Lá dentro ia uma moedinha de prata, um presente para o sortudo que
ganhasse a fatia com o tesouro dentro. O bolo de natal é preparado cinco
semanas antes do grande dia e vai aos poucos curtindo
no brandy. Ao ser servido, mais um tanto da bebida é
derramada sobre o doce, que é flambado e acompanhado de creme misturado com
mais brandy. Meu paladar mudou muito
desde que cheguei aqui. Hoje em dia como coisas que detestava no começo. Quanto
ao Christmas Pudding, vou ser bem inglesa e dizer que é um gosto adquirido. Um que infelizmente ainda não adquiri. Aí vai em inglês, uma receita
moderninha do Jamie Oliver de Christmas Pudding.
Quanto mais
velha fico, mais eu gosto das tradições. Redundância, eu sei. Pouco antes do natal
vem o solstício de inverno e o dia mais curto do ano. Falta luz solar. Transborda
saudade do Brasil. Sinto falta dos natais com a minha família, da casa cheia de
parentes e a mesa farta de referências da nossa herança portuguesa. Nem que eu
viva cem anos por aqui, vou preferir o menu inglês ao brasileiro. Mas quer
saber? Adoro as tradições natalinas desta ilha. Este sim, um gosto adquirido. Com muito prazer.
*Estou chocado!