quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O que realmente importa



“Você amarrou os sapatos de forma errada a vida toda e nem sabia”. “10 coisas que você precisa saber sobre o papel higiênico”. “Tudo o que você precisa saber sobre o Islã num vídeo de cinco minutos”. “ 100 livros que você precisa ler”. “ 5 peças que não podem faltar no seu guarda-roupas neste verão”. “ Faça o teste que revela como o mundo enxerga você”. “Assista ao vídeo da mulher traída armando barraco”. “ A bunda mais linda do Brasil”. “Que cor era o vestido azul de Napoleão? ” “Os carros dos super ricos”. “ Menina diagnosticada com doença rara tem três dias para viver”. “A dieta do homem das cavernas”. “O bolo da garrafa de Coca-Cola”. “Os melhores chefs do mundo”. “Homem perde 70 quilos e arruma namorada”. “Mulher pede ajuda para tratar anorexia”. “Coxinhas pelo impeachment”. “ Petralhas acusam o golpe”. “Trump trucida mulçumanos”. “Le Pen fatura na desgraça”. “Terror sacode a França”. “Britânicos bombardeiam a Síria”. “Refugiados morrem no mar e são torturados em terra”. “Terrorista entrou como refugiado”. “O bebezinho que canta rock e encanta todo mundo”. “ O gato que toca piano”. “ A resposta da mulher vítima de um troll”. “ O cidadão tem o direito de andar armado e se defender”. “Armas aumentam a violência”. “Cresce o número de assaltos seguidos de morte”. “O desastre ecológico do século”. “ O planeta esquenta e a seca aumenta”.  “Vai faltar água”.


Cansou?

Eu fiquei exausta.

Em 2011, os americanos consumiam cinco vezes mais informação do que em 1986, o equivalente a 175 jornais. Durante as horas de lazer (excluindo trabalho), processaram 32 gigabytes, 100 mil palavras por dia. Estes números foram extraídos do livro que é um dos best-sellers neste natal aqui na Ilha. Chama-se ‘The Organized Mind – thinking straight in the age of information overload’ (A mente organizada – pensando direito na era do excesso de informação), do neurocientista Daniel Levitin. Procurei o livro em português, mas não encontrei. A estatística acima se refere aos americanos, mas é cada vez mais óbvio que se aplica a muitos outros países.


O best-seller do momento


O ponto que o autor levanta no livro é que na chamada Era da Informação nossos cérebros estão cansados. Não é à toa que perdemos as chaves de casa, nos esquecemos de coisas banais o tempo inteiro. As más notícias não terminam por aí: esse estresse mental faz o corpo produzir cortisol. Em excesso, este hormônio faz engordar, diminui a libido, afeta a memória e dificulta o aprendizado. É um problema sem solução? Não, de acordo com o autor. No livro, ele sugere uma série de estratégias, como fazer uma pausa de quinze minutos a cada duas horas para ficar pensando em nada, ouvindo música, lendo um livro. A siesta vale ouro. Cochiladas de quinze minutos valem mais do que uma hora de sono durante a noite. Arte, experiências religiosas, meditação ou simplesmente deixar a mente livre são excelentes antídotos para o excesso de cortisol: fazem o corpo produzir serotonina e aumentam em até 10 pontos o QI.


O Dr Levitin afirma que nos últimos 20 anos foram produzidas mais informações científicas do que todos os anos anteriores combinados. O fato de estarmos trocando a literatura de ficção por artigos que lemos na internet também está nos tornando pessoas com menor capacidade de empatia. Achamos cada vez mais difícil nos colocarmos no lugar do outro. As redes sociais fazem nossos cérebros acreditarem que estamos cada vez mais perto uns dos outros, quando de fato, estamos mais distantes.


Talvez a geração de nossos filhos fará um uso melhor do que a Era da Informação tem a oferecer. Confesso que faço parte do time de iliteratos da internet. Não é que faltei a esta aula, ela não existia no meu tempo de escola. Para mim, como para muitas outras pessoas, é difícil separar o joio do trigo. Como saber se a fonte é boa?  De onde brota a informação que leio? Sou mesmo capaz de avaliar  riscos e fazer escolhas conscientes?



Durante anos, as cartinhas de natal da minha filha tinham o mesmo pedido: um cachorrinho de verdade. Três anos atrás, o natal foi de crise, porque o Papai Noel ouviu o pedido da melhor amiga dela, mas se esqueceu de trazer um filhotinho aqui para casa. Aos oito anos, ela escreveu uma carta respeitosa, embora firme (leia-se enfurecida), para o velhinho de barba branca e roupas vermelhas. Queria saber o que tinha feito de errado para não ter o pedido aceito. 

  

Acho que é bom desejar muito alguma coisa. Não acredito que as crianças devam ter todos os desejos satisfeitos. Mas, sabendo da paixão da minha filha pelos animais, ficava com pena de não atender o pedido. Os motivos eram muitos: a casa pequena, carpete, o que fazer com o bicho quando a gente sai de férias, a sujeira na casa, gasto com veterinário, gasto com ração...


Nós rendemos. Passei semanas na internet procurando um cachorro. Meus níveis de cortisol devem ter subido, cada vez que ligava para um dono e ouvia que a ninhada tinha sido vendida. Era para ser surpresa, mas minha filha descobriu. Fomos as duas buscar a filhotinha no outro lado de Londres. Um trânsito dos infernos. Ela tensa e ansiosa. Eu tinha dito que íamos ver se o cachorrinho estava bem, se não estivesse, teríamos que procurar outro. Ela concordou com um sim, quase inaudível. Foi falando sobre os nomes que queria para o bichinho de estimação.

 A cachorrinha era uma belezinha. A lista com os nomes foi para o lixo. Anna olhou para ela e disse: vai se chamar Honey May! Honey parece ter gostado, porque abanou o rabinho.

No carro, com a Honey May no colo, a Anna começou a chorar compulsivamente. Dizia sem parar: não acredito que tenho um cachorro. Não acredito, mãe.

                                                           Honey May chegando na casa nova

Honey está conosco há três semanas. Foi o maior berreiro na primeira noite. Anda roendo uns rodapés. Entrou escondida na sala e fez xixi no carpete. Saliva quando vê as minhas havaianas. A casa virou casa de neném, não fica nada ao alcance dos dentinhos afiados de Honey.

A casa também ficou mais alegre e mais cheia. As gargalhadas decoram o ambiente. As visitas querem conhecer o mais novo membro da família. É impossível resistir ao charme dela e nós todos brincamos juntos. O próximo passo vai ser começarmos a falar em cachorrês. Estamos quase lá.

Não adianta querermos brigar com a tecnologia. Nos tornarmos nostálgicos. Não tem volta e ainda bem. As possibilidades são maiores. Mas precisamos aprender a fazer um uso melhor da informação. Não nos tornarmos escravos dela e muito menos deixar que ela nos amedronte.  Sugue as nossas energias. As vezes, as escolhas que não parecem lá muito sensatas, ou inteligentes, são as que precisamos fazer.
Esse é o meu desejo para 2016. Que possamos viver no presente, ainda que imperfeito, sem perder de vista o que realmente importa para cada um de nós. Seja lá o que for.


Honey May

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Padecer no Paraíso

 

“Ser mãe é andar chorando num sorriso.

Ser mãe é ter o mundo e não ter nada.

 Ser mãe é padecer no paraíso”.

 
“Podemos escolher ficar grávidas aos 16 anos, mas não podemos rejeitar a maternidade aos 29. Parece que nossas decisões apenas são levadas a sério quando elas estão de acordo com a tradição." A frase é da britânica Holly Brockwell, uma mulher que ganhou notoriedade ao dizer em público que não quer ser mãe. Ela tem brigado com o NHS (o serviço público de saúde aqui da Ilha) para fazer uma laqueadura, uma cirurgia que a tornará estéril. Holly deu uma entrevista para o site da BBC . Virou a 'Geni' da hora, levou muita ‘pedrada’. Não foi a primeira. Esse assunto é como festa de natal. Todo ano tem.
 
Holly Brockwell
 
 
Recentemente foi anunciado que um bebê nasceu na Suécia, do primeiro transplante de útero. O procedimento é arriscado e caro. A mulher tem que tomar medicamentos para evitar que seu corpo rejeite o novo órgão e a chances de sucesso são baixíssimas. O bebê número um nasceu prematuro, porque a mãe desenvolveu pré-eclâmpsia.
 
Mulheres que arriscam alto pela maternidade e mulheres que não querem ser mães. Elas precisam mesmo estar no mesmo post? 
 
William (18 meses), Katherine (3 anos), Audrey (8 anos) três crianças da mesma família, que não viveram tempo suficiente para passar seus genes para frente. A breve passagem deles por aqui é relembrada em uma pedra fria de letras apagadas no cemitério do bairro. Dá para imaginar a dor dos pais dessas crianças?  Na era vitoriana, a taxa de mortalidade infantil era muito alta por aqui, praticamente a mesma de Sierra Leoa nos dias de hoje. Em 1840, uma em cada três crianças morria antes dos cinco anos de idade. Sem falar que os contraceptivos não eram confiáveis. Tinha-se muitos filhos, poucos chegavam a idade adulta.
 


Aprendi aqui uma máxima dos ingleses que valia até outro dia mesmo: “Crianças devem ser vistas e não ouvidas”. Em outras palavras, devem se comportar e não atrapalhar. Não têm direito a uma opinião. Depois da Segunda Guerra, este país viveu um Baby Boom; a taxa de natalidade disparou em um curto período de tempo. Na década dos sutiãs queimados, aconteceu a maior transformação no modo como encaramos a família. Graças ao antibiótico e à pílula, os casais passaram a ter menos filhos e eles começaram a viver mais. Os filhos se tornam o centro da vida familiar. A coisa mais importante. As crianças não mais gravitam ao redor dos adultos. Uma ideia que está tão entranhada, que a gente nem percebe que historicamente esse tipo de comportamento ainda está na primeira infância.
 
Hoje em dia, 92% dos pais britânicos afirmam que os filhos participam das decisões da família: desde o que comer para o jantar, onde passar as férias até o que assistir na tevê. Ítens como aquecimento central nas casas deixaram de ser luxo e passaram a necessidade. O comércio se adaptou para conquistar quem tem influência na decisão de consumo dos pais. O apetite por lugares e experiências ‘child friendly’ (bons para crianças) só cresceu.
 
Será que o fato de estarmos tão focados em nossas crianças torna a vida mais difícil para as mulheres que escolhem não ter filhos? Ou quem sabe essa nunca foi uma opção para as mulheres?
 
 
 
 
Deixando o passado de lado e brincando de futurologia: um estudo do Institute for Public Policy Research (em tradução livre: Instituto de pesquisa para políticas públicas) prevê que nos anos de 2030, um em quatro habitantes com mais de 65 anos nesta Ilha não terá filhos. Uma amiga querida, que não teve filhos, uma vez me disse que era esse o medo que ela tinha: envelhecer sozinha sem ter quem cuidasse dela. Como se houvesse garantias de que os filhos viverão mais do que os pais, ou de que eles irão cuidar de seus velhos. O tema da solidão na velhice foi abordado no comercial de natal, que está bombando este ano. Não precisa saber inglês para compreender a mensagem:
 
 
 
 
Mas, é o medo da velhice solitária que faz com que as pessoas sejam tão agressivas com as mulheres que dizem que não são maternais e não querem ter filhos? Nos comentários que li na reportagem sobre Holly, muita gente disse que o NHS estava certo em adiar a cirurgia. Ela tem apenas 29 anos. E se ela mudar de ideia?
 
As estatísticas do Office for National Statistics (o IBGE daqui) mostram que entre 1990 e 2010 dobrou o número de mulheres acima dos 40 que tiveram filho. Aos vinte anos, tive algumas amigas que diziam que nunca iriam ter filhos. Aos trinta e tantos, os relógios biológicos delas se transformaram em despertadores histéricos. Entretanto, o universo das minhas amigas não é representativo de absolutamente nada. Não passa de um exemplo. Se a Holly, assim como as minhas amigas, mudar de ideia aos quarenta minutos do segundo tempo, paciência. “A decisão terá sido minha”, ela afirma.
 
Fui atrás de informação para este post e acabei descobrindo que, com exceção dos dados sobre a velhice no futuro, é muito difícil encontrar números confiáveis sobre mulheres que não querem ter filhos. Existem vários artigos de celebridades e anônimas que defendem a não maternidade. Os estudos que encontrei sobre família contém dados sobre filhos, como se o núcleo familiar só interessasse se houvesse descendentes.  
 

Então?  É preciso pôr no mesmo balaio as mulheres que fazem de tudo para se tornarem mães e as que não querem ter filhos? Não deveria ser necessário. Quando a mulher diz que não quer ter filho, porque não tem vocação para a maternidade, ela escuta: “bobagem, no começo todo mundo acha difícil, mas depois tudo se ajeita”. Esse pensamento é tão ofensivo para as mulheres que não querem ser mães, quanto para as que penam para realizar o sonho da maternidade. Iguala todo mundo e não escuta as diferenças. O instinto maternal vem mesmo acoplado ao útero? Será que não dá para ser mulher sem ter filhos?
 
“ Ser mãe é padecer no paraíso”. Nos anos dois mil, o romantismo do poeta Coelho Neto (1864- 1934) soa pomposo e antiquado. A linguagem pode ter mudado neste começo de século. As dinâmicas familiares também. Mas no que se refere ao direito de escolher ser ou não ser mãe, ao que parece, a visão da sociedade está mais romântica que nunca.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Rio Passado a Limpo


 

Londres fica onde Londres fica não por um acaso. Como em milhares de outras cidades, foi um rio que determinou seu nascimento. O Tâmisa, que nasce no vilarejo de Kemble em Cotswolds (uma das regiões mais bonitas desta Ilha) é o rio mais longo da Inglaterra. Na capital, serpenteia sua geografia desenhando história pelo caminho.




 

Nos mais de dois mil anos de existência de Londres, celtas, romanos e britânicos; gerações de mercadores e marinheiros se valeram da proximidade com o oceano para transportar riquezas pelo rio. O Tâmisa viveu uma mini era do gelo em 1607. Durante um inverno rigoroso suas águas congelaram, transformando o leito do rio em rinque de patinação. No século 18, o tráfego no rio era pesado, trazendo as riquezas do Império Britânico. No meio do século seguinte, o Tâmisa deu um sinal de estafa. Seu estresse tinha nome e sobrenome: poluição. 1858 entrou para história como o ano do “grande fedor”.  O mal cheiro era tamanho, que os políticos tiveram que abandonar a sede do parlamento em Westminster, à beira do Tâmisa.

 

Os britânicos são um povo orgulhoso. Têm orgulho de sua história de conquistas, da rainha e de suas tradições como a democracia. Esses são os óbvios. Morando aqui descobri mais alguns, como o orgulho pelas descobertas científicas e de engenharia. Já sabia da falta de modéstia quando o assunto são as estradas de ferro, mas tem outro que eles não deixam passar batido: são fascinados por sua rede de esgoto! Ainda bem que no século 19 os políticos daqui não pensavam que ‘obra enterrada não dá voto’.

 
Charge ironize o Grande Fedor

Para pôr a história no contexto, a cólera matava indiscriminadamente os londrinos, que viviam ao redor de um grande esgoto a céu aberto. Entre 1853 e 54, a doença matou mais de dez mil pessoas em Londres. Na época acreditava-se que a cólera fosse provocada pelos miasmas, em bom português: os gases que se originam da decomposição de matéria orgânica. A explicação era que a doença vinha do ar. Ao investir num sistema de coleta e tratamento de esgoto, atiraram no que achavam que viram e acertaram no que não viam.  

Os parlamentares votaram em tempo recorde um projeto para construir uma rede de esgotos na capital e, de quebra, produziram uma revolução na saúde pública, o que aumentou a expectativa de vida da população. Puseram um capitão da marinha, o engenheiro civil Joseph Bazzalgette encarregado de tocar o projeto. Ele era um homem com visão de futuro. O sistema que criou segue firme e forte.

Bazzalgette podia até ser um visionário, mas seus poderes não incluíam uma bola de cristal. Ele não tinha como imaginar que existiria um Hitler no caminho. Os bombardeios da terrível luftwaffe detonaram parte do sistema de esgoto de Londres e a sujeira voltou ao Tâmisa. No pós-guerra, tudo era prioridade, o Império Britânico se esfacelava e dinheiro não nascia não nascia de geração espontânea. A situação ficou tão feia, que em 1957 o Museu de História Natural de Londres declarou que o Tâmisa estava biologicamente morto na capital.

Foto Thames21

 

Na década seguinte, o problema do saneamento foi tratado. Tirar o esgoto do rio foi um passo importante, mas não dá para esquecer que aqui é o berço da Revolução Industrial. O Tâmisa continuou sendo castigado até que nas décadas de 70 e 80 leis e campanhas de conscientização regulamentaram o uso de pesticidas nas lavouras e detritos industriais. A poluição por metais pesados diminuiu e a vida começou a retornar ao rio. 

Leis e políticas públicas são fundamentais, não há o que discutir, mas o envolvimento da sociedade civil é fundamental. Existem inúmeros programas nas escolas para educar os cidadãos do futuro.


Foto Thames21

 

A Thames21 é uma instituição de caridade que trabalha para que os afluentes do maior rio inglês sigam desobstruídos. Segundo Alice Hall, uma das coordenadoras do projeto, a intenção é estimular as pessoas a se engajarem não só na limpeza dos rios, como também mudar comportamentos e assim prevenir que o lixo seja jogado na água e acabe poluindo o Tâmisa.  

O excesso de ruas asfaltadas e quintais pavimentados faz com que a água da chuva não seja absorvida no solo e termine na rede de esgotos, o que provoca pequenos transbordamentos de água misturada com sujeira no Tâmisa. Um dos trabalhos educativos do Thames21 estimula a coleta de água da chuva, como forma de atenuar o problema.  

O governo acaba de anunciar um megaprojeto que promete ter um impacto positivo no Tâmisa, o “Thames Tideway Tunnel”. Começa no ano que vem a construção de um super esgoto; um túnel de 25 quilômetros que vai custar 4.2 bilhões de libras (cerca de 23.5 bilhões de reais). A obra deve ficar pronta em 2023 e a ideia é minimizar os problemas gerados pelo aquecimento global, que se as previsões estiverem corretas, deve elevar o nível dos rios e oceanos.


O engenheiro da era vitoriana, voluntários que percebem a importância dos rios e um túnel bilionário. Ação e planejamento são duas palavras-chaves no sucesso da revitalização do Tâmisa. Em cinquenta e poucos anos, o rio que foi chamado de morto, hoje abriga mais de cento e vinte e cinco espécies de peixes. Se a gente não atrapalha, a vida floresce.
 
Foto: Thames21
 

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Mamãe, eu quero mamar


 
“ Meu filho já saiu da maternidade mamando na mamadeira. Acho mais justo. Assim, uma noite eu fico acordada e na outra é a vez do meu marido. Por que só eu tenho que perder o sono? Somos ambos os pais da criança: direitos e deveres iguais! ” Com poucas variações, já ouvi esta frase algumas vezes aqui na Ilha. A primeira vez foi uma ex-vizinha, que completava dizendo que por causa de sua decisão, ela nem teve que abrir mão do vinhozinho, que gosta de tomar para relaxar ao fim de um dia atribulado.
 



 

Kirstie Allsopp é uma figura carimbada na tevê britânica. Ela apresenta programas como o Location, location, location, atuando como uma espécie de corretora de imóveis, mostrando casas a compradores em potencial. No ano passado, ela acabou se envolvendo num bafafá, ao dizer que as mulheres (que quisessem ser mães) deviam ter filhos na casa dos vinte e não aos trinta e tantos anos e que, se o preço fosse esse, que adiassem suas carreiras. Para ela, as prioridades estão trocadas e tratamento de fertilidade não deveria ser planejamento familiar.

 

Feministas de norte a sul, leste e oeste subiram nas tamancas. Kirstie, que faz a linha sou franca, disse que a discussão não era política ou social e sim que não se pode mudar a natureza. Cada mulher é dona do próprio nariz, mas elas que não se enganem: depois dos trinta e cinco a fecundidade diminui, independentemente da mulher ser bem-sucedida profissionalmente ou não. A questão, sem dúvida, é complexa e tem muitas pontas. Mas não dá para negar que, apesar das descobertas científicas terem evoluído horrores nas últimas décadas, o tal do relógio biológico não para. Ainda temos deadline, um prazo de validade para nossa fertilidade. Esse prazo vale tanto para as mulheres nas tribos mais remotas do planeta, quanto para as presidentes de multinacionais.

 

Esta semana, Jess Philips, uma parlamentar do partido trabalhista, entrou com um requerimento, que ela mesma considera controvertido: quer que as mulheres tenham direito de amamentar seus bebês no plenário e nas reuniões do Parlamento Britânico. Em pelo menos uma coisa ela tinha razão: o assunto é polêmico.
 

A parlamentar Jess Philips

 

Um colega de Jess, o conservador John Burns, mordeu a isca e virou notícia. Ele disse que a amamentação no Parlamento só deveria ser liberada, quando as caixas de supermercado puderem trabalhar amamentando os bebês ao mesmo tempo. Para ele, existe hora e lugar para tudo, amamentar inclusive. Como sempre, fui ver o que os leitores estavam comentando. A maioria dizia que lugar de trabalho é para trabalhar e que um bebê iria incomodar. Outro, mais irônico, disse que era contra, porque se o bebê ficasse ouvindo desde cedo o que os políticos dizem, nunca saberia diferenciar o certo do errado.

 

Brincadeiras de lado, a parlamentar que propôs a mudança disse que o papel dos políticos é liderar pelo exemplo e que, se o povo pudesse ver seus representantes amamentando em público e conciliando a vida profissional com a maternidade, seria um exemplo e tanto.

 

A fotógrafa paulista Miriam Dias é totalmente a favor da amamentação em público. “Se a criança está com fome, por que não a alimentar", ela argumenta. Miriam vive na Inglaterra desde  2006 e participa de um grupo que promove “mamaços”. São mulheres que se conectam nas redes sociais. Quando se tem notícia de uma mãe que foi maltratada por alguém por amamentar em público, elas se organizam e vão unidas amamentar seus bebês no lugar onde aconteceu o mal-estar. Para Miriam, é importante conscientizar as mulheres sobre os benefícios do aleitamento materno. Ela acredita que muitas acabem trocando o peito pela mamadeira, porque não recebem o apoio que necessitam. Seja dos parceiros ou da sociedade.

 
Miriam amamentando a filha
 

Miriam não está sozinha. Várias campanhas, tanto do governo quanto da sociedade organizada, tentam incentivar o aleitamento materno. Essas iniciativas surtem algum resultado. Mais mulheres estão optando pela amamentação nesta parte do planeta (de 62% em 1990, para 81% em 2010), mas essa determinação toda não vai muito longe. Bico do peito rachado, dores, inflamações e o fato de que a mãe não pode sair sem o bebê acabam desestimulando muitas mulheres. O desafio é convencer as mães a persistirem, sem fingir que não existem problemas no caminho. É preciso uma discussão honesta sobre o tema e, como disse a Miriam, apoio.

 

Miriam conta que sua filha nasceu de cesariana e que no começo o aleitamento não foi fácil. Raquel perdeu muito peso nos primeiros dias, mais do que é considerado normal. Ela pediu ajuda às ‘health visitors’ (uma espécie de agente de saúde que visita em casa TODAS as mulheres que tiveram filho recentemente). No dia seguinte, recebeu a visita de uma consultora em aleitamento. Elas não se acertaram. Dois dias depois, veio outra, que a ajudou bastante. Raquel tem dois anos e onze meses e ainda mama no peito. Perguntei a Miriam quando ela vai parar e ela me respondeu: quando minha filha não quiser mais.

 

Se pelo menos mais mães fossem como Miriam, o NHS (o sistema de saúde pública) levantaria suas mãos para os céus. O Sistema de Saúde publicou os resultados de uma pesquisa da Universidade Brunel, financiada com recursos da UNICEF. O estudo sugere que apenas 7% das mulheres continuam amamentando depois do quarto mês. E vai além, se este número passasse para 45%, o sistema de saúde iria economizar 40 milhões de libras por ano.

 

Eles chegaram a essa cifra calculando o quanto gastam com o tratamento de gastroenterite, bronquite, otite (inflamação de ouvido) e uma doença muito mais grave que necrosa o intestino dos bebês. Estas doenças citadas acima são muito menos recorrentes em crianças que mamam no peito. Além do mais, o aleitamento reduz os riscos de câncer de mama, de ovário e diabetes. Em suma, segundo o estudo, amamentação não é apenas melhor para a mãe e o bebê, mas também para os cofres públicos.

 
Se amamentar meu bebê é desconfortável para você, me diga,
por que você não olha para o outro lado?
                                          

 

Mas o que fazer quando a mulher quer, mas não pode amamentar, porque tem que trabalhar? Aqui na Ilha a licença maternidade é de 26 semanas e pode em alguns casos ser estendida por mais 26 semanas. Seis meses de aleitamento está de bom tamanho, não? Há controvérsias. Existe o argumento de que, depois dos seis meses, os benefícios do aleitamento materno X mamadeira não são tão significativos.
 
A socióloga Cynthia Colen, da universidade de Ohio nos Estados Unidos, conduziu um estudo para investigar os benefícios do aleitamento longo (mais de seis meses). Ela partiu da premissa que crianças que recebem o aleitamento materno por um período mais longo apresentam ganhos não só em termos de saúde, mas também no desenvolvimento cognitivo.
 
 A Dra. Colen analisou informações colhidas num período de 25 anos, com mais de 8 mil crianças de 4 a 14 anos. Ela quase caiu para trás com os resultados que encontrou. A maioria dos estudos compara o aleitamento nas famílias de poder socioeconômico baixo com famílias que estão melhor de vida. Já se sabe que as mulheres com menos problemas financeiros e nível educacional mais alto são as que mais amamentam seus filhos, além de serem mais propensas a oferecer uma alimentação saudável e de entenderem melhor os benefícios da educação. Quando ela comparou grupos de crianças de famílias com o mesmo poder aquisitivo, ela concluiu que os benefícios do aleitamento longo simplesmente desapareceram. Ou seja, não apresentaram nenhum ganho significativo. No entanto, a pesquisadora diz que é inegável os benefícios do aleitamento, só que é preciso uma discussão mais balanceada sobre o assunto.
  

Talvez o equilíbrio aconteça quando o aleitamento materno deixar de ser motivo de guerra entre os sexos, disputas políticas ou batalhas de estatísticas. Quando mamar no peito for  simplesmente a expressão da natureza, sem complicações. Só a deliciosa intimidade entre mãe e filho.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Não se esqueçam do Cogumelo Atômico



“ Se todos os insetos desaparecerem do planeta de uma vez só, em cinquenta anos a humanidade será destruída. Se os humanos desaparecerem da Terra, em cinquenta anos todas as outras formas de vida florescerão”.


A frase é atribuída ao cientista Jonas Salk, que desenvolveu a primeira vacina eficaz contra a pólio. Esta é uma ideia poderosa, que nos faz pensar em como somos destrutivos. Circularam na internet há pouco tempo, reportagens que mostram a vida selvagem retornando com a corda toda nas zonas de exclusão do acidente nuclear de Chernobyl (1986), no que hoje é a Ucrânia.


Infelizmente, existe uma terceira possibilidade, que a hipótese de Salk não contemplou: a de que tanto insetos quanto humanos possam ser destruídos, juntamente com todas as outras formas de vida. O pior é que nem podemos pôr a culpa num asteroide fora de curso ou na ira de um Deus vingativo. A culpa é nossa mesmo. Graças à nossa raça, isso é possível. A mesma curiosidade científica, que cura e que previne doenças como a poliomielite, desenvolveu uma tecnologia capaz de transformar o planeta azul numa terra apocalíptica.
 
Essa história começa no fim do século 19, quando Marie Curie, uma cientista polonesa radicada na França, desenvolve estudos pioneiros sobre radioatividade. Anos mais tarde, após os nazistas invadirem a Polônia em 1939, um outro cientista, Albert Einstein, escreveu uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, alertando o governo sobre o risco de os alemães desenvolverem uma bomba atômica. Naquela altura do campeonato, físicos dos dois lados do Atlântico sabiam que era possível desenvolver uma arma capaz de produzir ‘tanto calor quanto o miolo do sol e destruir a vida numa área considerável’.

o 'cogumelo' atômico

Aqui na Ilha, governo e cientistas se empenhavam para desenvolver a bomba atômica, mas os britânicos não estavam exatamente com dinheiro sobrando no meio da Segunda Guerra. Em 1942, os americanos criaram o Manhattan Project, na corrida para bater os alemães e desenvolver a arma de destruição em massa. No ano seguinte, Roosevelt e Chruchill assinaram o acordo de Quebec - um empreendimento de duas nações de espírito bélico, com a participação do Canadá, para tocar o projeto que iniciaria um novo ciclo da nossa permanência neste planeta: a era atômica.


Quase no fim da Segunda Guerra, os americanos lançaram as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Cientistas do Projeto Manhattan celebraram. O esforço de suas inteligências havia dado resultado. Demorou um tiquinho, mas a ficha caiu para alguns deles. Cerca de duzentas mil pessoas perderam a vida em apenas dois ataques. Oppenheimer, o cientista que liderou o Projeto Manhattan, teria pensado em voz alta: “ me pergunto se os sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki irão invejar os mortos”- tamanho foi o estrago produzido. Essa história é contada num texto que a educadora Jennifer Allen Simons, uma canadense empenhada na campanha pelo desarmamento nuclear, escreveu para uma conferência em Praga.

 
A pacifista Jeniffer Allen Simons


Ela narra o drama moral de outro cientista envolvido no projeto, o professor Sir Josef Rotblat, um judeu polonês com cidadania britânica. Quando os alemães invadiram a Polônia, Rotblat estava trabalhando aqui na Ilha. Durante anos ele tentou, mas não conseguiu, tirar a esposa de seu país. Ela acabou morrendo num campo de concentração. Em 1944, ficou claro que os alemães não estavam nem perto de fabricar a bomba atômica e tinham desistido do projeto. Rotblat abandonou o Projeto Manhattan, ao saber que a intenção era fabricar a bomba, que seria detonada no Japão e,de quebra, funcionaria como uma demonstração de poder para os soviéticos. Ele foi acusado de ser um espião russo e comunista. Durante anos foi proibido de voltar aos Estados Unidos. De volta à Inglaterra, desenvolveu projetos nucleares com aplicação na medicina. Rotblat morreu em 2005, aos 96 anos de idade. Foi o único cientista a abandonar o Projeto Manhattan por questões de consciência.


Rotblat, o cientista que se tornou pacifista

Uma questão de consciência também incomodava “Tim” (mudei o nome), um padre da igreja Anglicana, na semana do 'Dia de Relembrar' do ano passado.  http://mariaeduardajohnston.blogspot.co.uk/2014/11/relembrar-relembrar.html
Todo ano, no dia 11 de novembro, às onze horas da manhã este país faz um minuto em silêncio por aqueles que morreram na guerra.  Crianças de várias escolas, escoteiros e bandeirantes participavam de uma cerimônia local. Elas deixaram coroas de papoulas aos pés de um memorial e depois foram convidadas a assistir a uma missa.





Coroas de papopulas para relembrar os mortos na guerra
 
 
 
Era uma manhã fria, mas ensolarada. A igreja estava lotada. Preferi esperar do lado de fora, assentada num banco de praça no cemitério centenário ao redor da igreja. A mulher do padre também não tinha entrado. Ela tomava conta da filhinha do casal. Nos conhecíamos de vista, temos uma amiga em comum.  
Esther (nome fictício) é uma mulher interessante, fala pouco, observa bastante. Naquele dia, estava pra conversa. Ouvimos a congregação cantar ‘God save the Queen’. Ela falou, sem tirar os olhos da filha que ameaçava escalar a placa de um dos túmulos, que era a terceira vez que ouvia o hino naquela manhã. Depois contou que “Tim” estava tenso com a história do sermão do dia. “Ele é um pacifista. Tem que tomar cuidado. Há muitas famílias de militares nesta área”.Fiquei contente que ela não tivesse feito um comentário inofensivo a respeito do tempo. Parecia que iríamos ter de fato uma conversa.  

Não sei se porque ela já tem um pé na igreja, mas acabei fazendo uma confissão: disse que também tinha minhas dúvidas sobre o 'Dia de Relembrar'. Que o culto à guerra me incomodava, mas que de certa forma eu era fascinada pelo fato de que eles preservam o passado e celebram sua identidade. Ela respondeu com um lacônico “humm, interessante”, antes de correr para tirar a filha de cima da estátua de um anjo rechonchudo. Nossa conversa estava encerrada.


Cruzes para relembrar os combatentes que tombaram na guerra
 



George Wald, um cientista que ganhou o Nobel de medicina por seu trabalho sobre a pigmentação da retina, também era um pacifista e opositor da corrida armamentista. Para ele, o único uso de uma bomba atômica é evitar que o outro use a bomba contra você. Mais de duas mil bombas atômicas já foram detonadas em nosso planeta em vários testes. Cada uma delas tem um custo ambiental. Atualmente, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Rússia, China, Índia, Paquistão e Coréia do Norte têm bombas atômicas em seus arsenais. Um jogo muito arriscado. 


Um ano depois do encontro com a mulher do padre, a conversa que tivemos, rodeadas pelos mortos, ganha outro sentido para mim. Na semana do 11/11, os britânicos, que tanto gostam de relembrar seus heróis e mártires, talvez devessem incluir nesta lista o horror gerado pelas bombas que ajudaram a criar e a detonar. Assim, quem sabe, o passado poderia ensinar outra lição para não esquecer nunca mais. 


Repetir, repetir, repetir. Esta é uma das armas mais poderosas da educação. Quem valoriza o passado sabe muito bem disso.
 




quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Noite da Fogueira


Nesta Ilha que adora uma tradição, cinco de novembro é o dia de acender fogueira e soltar alguns fogos de artifício. Neste dia, os ingleses comemoram a derrota de Guy Fawkes, um vilão que faz parte do repertório nacional. Talvez você já tenha ouvido o nome dele, graças ao filme ‘V de Vingança’ (lançado em 2005). As máscaras de Guy Fawkes, uma peça-chave do enredo do filme, são usadas no mundo inteiro por manifestantes, que protestam contra o que eles consideram governos autoritários. O ‘Da Ilha’ de hoje traz um texto Da Gaveta, da minha primeira Bonfire Night.


Máscara de Guy Fawkes
 

Bonfire Night
* Da Gaveta
 
 

Conta a história que uma querela entre protestantes e católicos, no tempo em que Shakespeare já era uma pena afiada por essas bandas, terminou muito mal para um tal Guy Fawkes. O sujeito, primeiro rascunho de Unabomber, queria explodir o Parlamento e instalar o catolicismo na Inglaterra. O plano mal traçado, que não contava com a pólvora umedecendo nos porões de Westminster e nem com a mudança dos parlamentares, com medo da peste, acabou nas mãos do rei Jaime I. É que ao contrário do sucessor americano, o conspirador inglês (na era pré-binladiana era conspiração. Hoje seria terrorismo e com certeza com conexões com a Al-Qaeda) deu com a língua nos dentes e foi pego no pulo. O castigo? Bom, primeiro ele foi enforcado. Quando estava quase morrendo, tiraram a corda e abriram uma cruz no peito do infeliz. Em seguida, num requinte de sadismo, tiveram a ideia de remover as vísceras e finalmente esquartejaram o coitado. No dia cinco de novembro de 1605, ele foi pego guardando a pólvora nos porões do parlamento e até hoje ninguém esqueceu.



Guy Fawkes

 

Todo cinco de novembro acontece no Reino Unido uma versão local de festa junina, com fogueira e fogos de artifício: é a ‘bonfire night’. Eles não queimam o Judas e sim o Guy Fawkes. O foguetório rola em vários parques e escolas da Inglaterra. Fomos ao Wimbledon Park, no sul de Londres, perto de onde se disputa um dos torneios de tênis mais famosos do mundo.
 
 O outono em Londres já é bem friozinho, mas até que a temperatura não estava de arrepiar. Vai ver que é por isso que uma multidão também teve a mesma ideia. A rua de acesso ao parque parecia mais uma rave que uma festa junina. Muitos “mudernos” e ambulantes vendendo aqueles acessórios que brilham no escuro.
 

Chegamos ao coração da festa pouco antes da segunda fogueira ser acesa. Uma pilha de metros e metros de madeira, com um boneco numa forca, começou a arder sem muito estardalhaço. Bonito, aquele fogaréu deixou o povo muito animado. Mas nada de música, quentão, canjica e chapéu de palha. Tinha lá umas barraquinhas. Tradicional e indefectível fish n’chips (peixe frito com batata frita, tudo afogado no vinagre). Tinha também a barraca dos mais gordurentos ainda: linguiça com pão murcho, bacon e hambúrguer- sola-de-sapato. E uma última, mais divertida, mas não menos junk, de puxa-puxa e marshmallow.
 

 Apesar do fogo, estava escuro à beça, a grama empapada por dias intermináveis de chuva e o povo se acotovelando para ficar perto da cerca e ver os fogos . “Ei turma, para que o stress? Os fogos a gente vê é lá no céu. ” A frase saiu da boca de uma menina de uns sete anos, que ao final soltou um sorrisinho triunfante. Ri para ela, como quem diz: é isso aí, não dá mole não. 

Se a fogueira foi acesa sem pompa, o mesmo não se pode dizer dos fogos de artifício. Uma caixa de som gigantesca soltou uns acordes medonhos e graves e a primeira bomba explodiu no céu. A acústica era uma tristeza, mas consegui ouvir “live and let die” no meio da música. Fiquei esperando Bond, James Bond, mas ele não apareceu. Nem como espião da rainha caçando conspiradores. Olhei para o lado e meu amigo Guy Fawkes ardia na fogueira, completamente largado. 

Fogos de artifício até quando são feios, são bonitos. Só queria que fossem menos barulhentos. Eles não estavam lá muito bem coordenados com a trilha sonora, quando saiu do aparelho de som o tema de Superman. Agora sim. Vimos fogos pipocando no céu branco de pólvora também ao som de Batman e Star Wars.
 

No momento sossego da mamãe, eles me saíram com o arco-íris de ‘O mágico de OZ’. Nesta altura, uma garoa irritante, parecendo umas agulhinhas congeladas de acupuntura, furava os nossos narizes apontados pra cima. Aí veio uma sucessão de corações, cor-de-rosa, vermelho, verde… desenhados com fogo. E já estava adivinhando a música encerramento da festa, o gran-finale: “God Save The Queen”.

 

 Ainda bem que não apostei. Teria quebrado a cara. Só depois fiquei sabendo que o hino só toca em jogo de futebol, em solenidades ou quando sua majestade em pessoa dá o ar da graça.

A rainha não deu as caras na festa e o show pirotécnico tinha acabado. Queria ir ver de perto aqueles brinquedos de parque de cidade do interior. Aquelas cadeirinhas que giram presas em correntes, carrossel e carrinho bate-bate. Mas fomos aos poucos levados pela massa para o portão de saída. 
 

 Não tive nem tempo de decantar as imagens que tinha acabado de ver. Nem pude andar devagar pela rua, observando as casas e me sentido feliz por poder passear no escuro, de noite, sem medo de ladrão ou sequestro relâmpago. Passava das nove da noite de uma terça-feira-dia-de-trabalho. Era preciso chegar rápido em casa. Toda aquela massa anglicana e devidamente vingada tem pressa e sabe muito bem aonde quer chegar.
(Novembro/ 2002)





* Da Gaveta:Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de quando eu ainda era novata na terra da Rainha.