Esta semana alguns jornais publicaram uma ilustração
que mostra o mapa do metrô de Londres de um jeito diferente. Ao lado de cada
estação, o valor médio do aluguel mensal de um apartamento de UM quarto (em geral
numa casa que foi subdividida). O mais baratinho fica em Hatton Cross, praticamente na pista do aeroporto de Heathrow, onde o constante tráfego de aviões não é
uma das coisas mais agradáveis do mundo. Mesmo assim, quem quiser ter o
privilégio terá que pagar £324 por mês (no câmbio de hoje R$ 1940,00). Para
quem dinheiro não é problema, a pedida é o Hyde Park Corner, onde mora a
realeza. O aluguel custa quase três mil libras. Coisa de dezoito mil
reais por mês.
Existe uma demanda absurda por imóveis na
capital e isso empurra o preço para as alturas, mas não é só isso. Os donos dos
imóveis ficam mais seletivos, muitos deles não aceitam inquilinos com crianças
por exemplo. Outros, apesar de ser ilegal, discriminam estrangeiros, gays e
assim por diante.
by Shame Walsh - Unsplash |
Logo que cheguei aqui, verde de tudo, tive que encarar um 'house-hunting' junto com meu marido (que na época era namorado); fomos a campo buscar um lugar para alugar. Já faz um tempão, mas ainda no começo deste milênio a falta de moradia já era um problema.
Imigrantes sem teto
* Da Gaveta
Vamos combinar Londres é uma cidade grande.
Vamos combinar que muito antes dos romanos chegarem aqui e batizarem esse
pedaço de terra de Londinium, Londres já estava aqui. Vamos combinar que oito
milhões e meio de pessoas vivem aqui, porque já nasceram londrinos, pelo sonho da
fortuna ou por um acaso qualquer. Vamos combinar que até hoje não vi nenhuma
estação de metrô que não tivesse na frente, ou nas redondezas, uma imobiliária com
anúncios de compra e venda de imóveis estampados nas vitrines. Vamos combinar
que toda semana entopem a caixa de correio com jornais e classificados de
imóveis. Por que então ainda não encontramos um cantinho para chamar de nosso?
Dois meses e meio depois de desembarcar em solo
britânico, não aguento mais falar, ouvir ou ler sobre o exorbitante preço dos
imóveis em Londres. Este iê-iê-iê inglês (desafinado e insosso) é tão baixo
astral quanto os pubs escuros, sujos, com um indefectível barman mal-humorado,
servindo cerveja quente e vigiando a hora de tocar o sino e fechar o bar. Mas
não tem jeito, todos os fins-de-semana saímos novamente na esperança de
encontrar um lugar decente para morar.
Semana passada decidi ser mais independente e
coordenar as buscas. Comprei o ‘Loot’ um jornal de classificados, selecionei os
imóveis para o nosso bico. Afinei o inglês (sempre é mais difícil ao telefone)
e deixei muitos recados em muitas secretárias eletrônicas até que uma voz atendeu ao meu chamado. Para o meu azar, o sujeito era tão ou
mais gringo do que eu.
Ouvi a voz dizer do outro lado com um sotaque
bem asiático (paquistanês, talvez?): “Very good price”. Tentei acertar a visita
para o sábado de manhã. Depois de uns minutos tentando entender o nome do
corretor, pedindo que ele soletrasse e repetisse, ele me disse que eu poderia
ir até a imobiliária pegar a chave. Exausta, concordei.
No sábado de manhã, ligamos para a imobiliária
e nosso amigo concordou que seria melhor nos encontrarmos na casa que estava
para alugar, perto de onde moramos. A sala era decente. Tamanho honesto, se bem
que tinha uma lareira falsa que era duro de encarar. O ‘focal point’, o lugar
de destaque da sala como dizem os programas de decoração que infestam as tevês,
era emoldurado por uma madeira entalhada e com um friso dourado de gosto
duvidoso. Na base, uma imitação de mármore branco, que também não ornava muito.
Decidi que dava para viver com aquele monstrinho na sala. Fazer concessões,
aprendi rápido, era o nome do jogo. Entramos no quarto: um desafio à física.
Sabe aquela lei de que diz que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço e
no tempo? Esquece! Caber um casal, uma cama e um guarda-roupa naquele cubículo,
só mesmo com muita boa vontade. Pronto, botão ejetor apertado mais uma vez.
Voltamos para casa a tempo de vermos o jogo do
Brasil contra a China. Foi um alívio perceber que nem tudo é difícil nesta
vida. Nunca fui fã de futebol. Mas é Copa do Mundo e estou fora de casa.... Meu
dia estava melhorando consideravelmente. Recebemos o retorno de um dos recados,
que eu havia deixado na véspera. Combinamos de ver a casa no dia seguinte.
by Rob Bye- Unsplash |
Domingo amanheceu chuvoso. Se tivesse que
escrever sobre os fins-de-semana ingleses, provavelmente poderia começar com
“domingo amanheceu muito chuvoso”, ‘very often’. Fomos até Portobello procurar
um português que vende guaraná e coxinha. Não me imaginava fazendo uma coisa
dessas tão cedo, mas estava chovendo, o Brasil tinha vencido o jogo, não
tínhamos muito que fazer, além de matar o tempo até a hora de visitar mais um
imóvel. Notting Hill é um passeio que todo turista faz em Londres. É
recomendado por qualquer guia da cidade e com razão. A coxinha não valeu a
viagem, mas não tinha importância. Fizemos hora num café e fomos ver a casa,
que estava para alugar.
Chegamos ao número onze da Kennelworth Avenue.
Estávamos quinze minutos adiantados (aqui é coisa que se menciona). Batemos a
campainha e um cara nervoso veio atender. Era um casão. O homem, John, entrou
agitado. Vi zebras de relance nas fotos que cobriam uma das paredes. Estávamos
olhando ao redor, mas John tinha pressa. Praticamente nos empurrou para dentro
da biblioteca. Uau! Que biblioteca. Era forrada de livros do chão ao teto. Mal
entramos no cômodo e ele ordenou apressado: Feche a porta, feche a porta. Yes,
Sir. Obedeci prontamente.
Muito agitado e tentando parecer muito
eficiente, ele sacou uma folha de papel com muitos nomes números. Nos informou
que dezessete pessoas já tinham ido lá ver a casa, que estava para alugar,
segundo ele, por um preço realmente muito bom. Ele perguntou o que o Ian fazia
da vida.Ele tentou puxar conversa e disse que tinha visto as belas fotos de viagem
na parede e perguntou se o John gostava de viajar. Ele disse que as fotos eram
do pai ‘ que não está mais entre nós’. Sujeitinho macabro aquele.
Ele era todo arrumadinho. Arrumadinho demais
naquela biblioteca caótica. Tinha uma profunda cicatriz no antebraço
direito. Estava intrigada com o que via ali, tentando decifrar o que havia de
errado, quando ele disparou sua metralhadora giratória em minha direção.
Perguntou o que eu fazia. Nestas horas adoro brincar de ‘mim não fala inglês’.
Ian me socorreu e enquanto os dois papeavam, desliguei meu ‘translator’ para me
concentrar no que estava ao meu redor.
Não sei em que ponto da conversa, John decidiu
que ia nos mostrar a parte da casa que estava para alugar. Saímos da biblioteca
e começávamos a descer uma escadinha, quando ele ordenou: “Feche a porta!”.
Ops, fechei a porta de novo.
Foi tudo muito rápido, mas quando dei por mim,
estávamos num porão com uma cama baixa e um armário com portas espelhadas, que
cobria a parede de fora a fora. O chão era gelado. Não tinha janelas. Parecia
mais um cativeiro do que um quarto. Quando entramos no banheiro decadente, com
torneiras enferrujadas e teto baixo, John calou a boca. Pensou um pouco e disse
num tom estranhíssimo, teatral mesmo: Paz. ((...)) “Escutem, vocês estão
ouvindo alguma coisa?” Nós, cordeirinhos, balançamos as nossas cabeças
negativamente. “É isso, ele disse. Este lugar tem que ser assim, pacífico”.
Senti um calafrio subindo pela espinha.
Subimos um pequeno lance de escada e chegamos à
sala. De um lado, prateleiras de fórmica branca caindo aos pedaços com frisos
de metalon arrematando as beiradas. Um jogo de mesas e cadeiras, que eu tenho
certeza, foi prêmio do Baú da Felicidade na década de setenta. E finalmente um
arremedo de sofá com um colchão encardido enrolado em cima. O lustre era
pavoroso. Uma coisa indescritível que talvez, talvez, tenha sido ok na década
de cinquenta. Senti uma onda de pena pelo tal John-tenta-manter-as-aparências.
Foi aí que ele se traiu. Até então ele batia na tecla de que era um negócio da
China e que muita gente, mas muita gente mesmo, estava interessada em alugar o
porão. Foi então que ele disse que duas pessoas haviam pagado o depósito e
desistido de morar lá. Tive que desviar o meu olhar do Ian. Tive medo de cair
na gargalhada.
Nosso tour guiado ainda não havia acabado.
Chegamos até a cozinha. John disse para não repararmos na bagunça. Tudo ia ser
arrumado em tempo. A antiga moradora havia se mudado horas antes. Imaginei que
só sendo muito nem aí para a Hora do Brasil que alguém conseguiria morar
naquele lugar. Quero dizer, o tamanho era joia, a rua bacana, mas aquele
buraco? Tive que segurar a minha boca, para não perguntar o que tinha levado a
antiga moradora a se mudar. Consegui conter essa pergunta, mas outra escapuliu,
antes que eu me desse conta: O que você faz da vida, John? Ele respondeu que lia muito, por isso
precisava de paz.
Ele ia nos mostrar o quintal, mato grande, tudo
verde escuro-Inglaterra, quando decidi que já era o bastante. Eu heim? Sou
mineira! E se tropeçasse no esqueleto do
pai-dele-que-já-não-está-mais-aqui-mas-que-
trabalhou-um-bocado-para-deixar-aquela-casa-para-o-John-faz-porcaria-nehuma-da-vida?
Fomos embora rapidinho daquele manicômio,
prometendo ligar depois. Na rua, caímos na risada, mais de nervoso do que
qualquer outra coisa. O Ian confessou que ficou preocupado, pensando que eu
tinha gostado da casa. Eu fiquei fantasiando que se quisesse escrever um livro,
alugava aquela casa e ficava de olho no John. Só não sei se ia dar num thriller
ou policial. Voltamos para casa com o passo apertado. Olhando por cima
dos ombros, só para ter certeza de que ninguém estava nos seguindo.
(Junho 2002)
* Da Gaveta:Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de quando eu ainda era novata na terra da Rainha.
* Da Gaveta:Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de quando eu ainda era novata na terra da Rainha.