quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Um teto londrino


Esta semana alguns jornais publicaram uma ilustração que mostra o mapa do metrô de Londres de um jeito diferente. Ao lado de cada estação, o valor médio do aluguel mensal de um apartamento de UM quarto (em geral numa casa que foi subdividida). O mais baratinho fica em Hatton Cross, praticamente na pista do aeroporto de Heathrow, onde o constante tráfego de aviões não é uma das coisas mais agradáveis do mundo. Mesmo assim, quem quiser ter o privilégio terá que pagar £324 por mês (no câmbio de hoje R$ 1940,00). Para quem dinheiro não é problema, a pedida é o Hyde Park Corner, onde mora a realeza. O aluguel custa quase três mil libras. Coisa de dezoito mil reais por mês.
 
 


 
 

Existe uma demanda absurda por imóveis na capital e isso empurra o preço para as alturas, mas não é só isso. Os donos dos imóveis ficam mais seletivos, muitos deles não aceitam inquilinos com crianças por exemplo. Outros, apesar de ser ilegal, discriminam estrangeiros, gays e assim por diante.

 

by Shame Walsh - Unsplash





Logo que cheguei aqui, verde de tudo, tive que encarar um 'house-hunting' junto com meu marido (que na época era namorado); fomos a campo buscar um lugar para alugar. Já faz um tempão, mas ainda no começo deste milênio a falta de moradia já era um problema.


 
A história estava guardada na gaveta...
 

Imigrantes sem teto

 * Da Gaveta


Vamos combinar Londres é uma cidade grande. Vamos combinar que muito antes dos romanos chegarem aqui e batizarem esse pedaço de terra de Londinium, Londres já estava aqui. Vamos combinar que oito milhões e meio de pessoas vivem aqui, porque já nasceram londrinos, pelo sonho da fortuna ou por um acaso qualquer. Vamos combinar que até hoje não vi nenhuma estação de metrô que não tivesse na frente, ou nas redondezas, uma imobiliária com anúncios de compra e venda de imóveis estampados nas vitrines. Vamos combinar que toda semana entopem a caixa de correio com jornais e classificados de imóveis. Por que então ainda não encontramos um cantinho para chamar de nosso?







 

Dois meses e meio depois de desembarcar em solo britânico, não aguento mais falar, ouvir ou ler sobre o exorbitante preço dos imóveis em Londres. Este iê-iê-iê inglês (desafinado e insosso) é tão baixo astral quanto os pubs escuros, sujos, com um indefectível barman mal-humorado, servindo cerveja quente e vigiando a hora de tocar o sino e fechar o bar. Mas não tem jeito, todos os fins-de-semana saímos novamente na esperança de encontrar um lugar decente para morar.

Semana passada decidi ser mais independente e coordenar as buscas. Comprei o ‘Loot’ um jornal de classificados, selecionei os imóveis para o nosso bico. Afinei o inglês (sempre é mais difícil ao telefone) e deixei muitos recados em muitas secretárias eletrônicas até que uma voz atendeu ao meu chamado. Para o meu azar, o sujeito era tão ou mais gringo do que eu.

Ouvi a voz dizer do outro lado com um sotaque bem asiático (paquistanês, talvez?): “Very good price”. Tentei acertar a visita para o sábado de manhã. Depois de uns minutos tentando entender o nome do corretor, pedindo que ele soletrasse e repetisse, ele me disse que eu poderia ir até a imobiliária pegar a chave. Exausta, concordei.

No sábado de manhã, ligamos para a imobiliária e nosso amigo concordou que seria melhor nos encontrarmos na casa que estava para alugar, perto de onde moramos. A sala era decente. Tamanho honesto, se bem que tinha uma lareira falsa que era duro de encarar. O ‘focal point’, o lugar de destaque da sala como dizem os programas de decoração que infestam as tevês, era emoldurado por uma madeira entalhada e com um friso dourado de gosto duvidoso. Na base, uma imitação de mármore branco, que também não ornava muito. Decidi que dava para viver com aquele monstrinho na sala. Fazer concessões, aprendi rápido, era o nome do jogo. Entramos no quarto: um desafio à física. Sabe aquela lei de que diz que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço e no tempo? Esquece! Caber um casal, uma cama e um guarda-roupa naquele cubículo, só mesmo com muita boa vontade. Pronto, botão ejetor apertado mais uma vez.

Voltamos para casa a tempo de vermos o jogo do Brasil contra a China. Foi um alívio perceber que nem tudo é difícil nesta vida. Nunca fui fã de futebol. Mas é Copa do Mundo e estou fora de casa.... Meu dia estava melhorando consideravelmente. Recebemos o retorno de um dos recados, que eu havia deixado na véspera. Combinamos de ver a casa no dia seguinte.




by Rob Bye- Unsplash
 

 

Domingo amanheceu chuvoso. Se tivesse que escrever sobre os fins-de-semana ingleses, provavelmente poderia começar com “domingo amanheceu muito chuvoso”, ‘very often’. Fomos até Portobello procurar um português que vende guaraná e coxinha. Não me imaginava fazendo uma coisa dessas tão cedo, mas estava chovendo, o Brasil tinha vencido o jogo, não tínhamos muito que fazer, além de matar o tempo até a hora de visitar mais um imóvel. Notting Hill é um passeio que todo turista faz em Londres. É recomendado por qualquer guia da cidade e com razão. A coxinha não valeu a viagem, mas não tinha importância. Fizemos hora num café e fomos ver a casa, que estava para alugar.

Chegamos ao número onze da Kennelworth Avenue. Estávamos quinze minutos adiantados (aqui é coisa que se menciona). Batemos a campainha e um cara nervoso veio atender. Era um casão. O homem, John, entrou agitado. Vi zebras de relance nas fotos que cobriam uma das paredes. Estávamos olhando ao redor, mas John tinha pressa. Praticamente nos empurrou para dentro da biblioteca. Uau! Que biblioteca. Era forrada de livros do chão ao teto. Mal entramos no cômodo e ele ordenou apressado: Feche a porta, feche a porta. Yes, Sir. Obedeci prontamente.

Muito agitado e tentando parecer muito eficiente, ele sacou uma folha de papel com muitos nomes números. Nos informou que dezessete pessoas já tinham ido lá ver a casa, que estava para alugar, segundo ele, por um preço realmente muito bom. Ele perguntou o que o Ian fazia da vida.Ele tentou puxar conversa e disse que tinha visto as belas fotos de viagem na parede e perguntou se o John gostava de viajar. Ele disse que as fotos eram do pai ‘ que não está mais entre nós’. Sujeitinho macabro aquele.

Ele era todo arrumadinho. Arrumadinho demais naquela biblioteca caótica. Tinha uma profunda cicatriz no antebraço direito. Estava intrigada com o que via ali, tentando decifrar o que havia de errado, quando ele disparou sua metralhadora giratória em minha direção. Perguntou o que eu fazia. Nestas horas adoro brincar de ‘mim não fala inglês’. Ian me socorreu e enquanto os dois papeavam, desliguei meu ‘translator’ para me concentrar no que estava ao meu redor.

Não sei em que ponto da conversa, John decidiu que ia nos mostrar a parte da casa que estava para alugar. Saímos da biblioteca e começávamos a descer uma escadinha, quando ele ordenou: “Feche a porta!”. Ops, fechei a porta de novo.

Foi tudo muito rápido, mas quando dei por mim, estávamos num porão com uma cama baixa e um armário com portas espelhadas, que cobria a parede de fora a fora. O chão era gelado. Não tinha janelas. Parecia mais um cativeiro do que um quarto. Quando entramos no banheiro decadente, com torneiras enferrujadas e teto baixo, John calou a boca. Pensou um pouco e disse num tom estranhíssimo, teatral mesmo: Paz. ((...)) “Escutem, vocês estão ouvindo alguma coisa?” Nós, cordeirinhos, balançamos as nossas cabeças negativamente. “É isso, ele disse. Este lugar tem que ser assim, pacífico”. Senti um calafrio subindo pela espinha.

Subimos um pequeno lance de escada e chegamos à sala. De um lado, prateleiras de fórmica branca caindo aos pedaços com frisos de metalon arrematando as beiradas. Um jogo de mesas e cadeiras, que eu tenho certeza, foi prêmio do Baú da Felicidade na década de setenta. E finalmente um arremedo de sofá com um colchão encardido enrolado em cima. O lustre era pavoroso. Uma coisa indescritível que talvez, talvez, tenha sido ok na década de cinquenta. Senti uma onda de pena pelo tal John-tenta-manter-as-aparências. Foi aí que ele se traiu. Até então ele batia na tecla de que era um negócio da China e que muita gente, mas muita gente mesmo, estava interessada em alugar o porão. Foi então que ele disse que duas pessoas haviam pagado o depósito e desistido de morar lá. Tive que desviar o meu olhar do Ian. Tive medo de cair na gargalhada.

Nosso tour guiado ainda não havia acabado. Chegamos até a cozinha. John disse para não repararmos na bagunça. Tudo ia ser arrumado em tempo. A antiga moradora havia se mudado horas antes. Imaginei que só sendo muito nem aí para a Hora do Brasil que alguém conseguiria morar naquele lugar. Quero dizer, o tamanho era joia, a rua bacana, mas aquele buraco? Tive que segurar a minha boca, para não perguntar o que tinha levado a antiga moradora a se mudar. Consegui conter essa pergunta, mas outra escapuliu, antes que eu me desse conta: O que você faz da vida, John?  Ele respondeu que lia muito, por isso precisava de paz.

Ele ia nos mostrar o quintal, mato grande, tudo verde escuro-Inglaterra, quando decidi que já era o bastante. Eu heim? Sou mineira! E se tropeçasse no esqueleto do pai-dele-que-já-não-está-mais-aqui-mas-que- trabalhou-um-bocado-para-deixar-aquela-casa-para-o-John-faz-porcaria-nehuma-da-vida?

Fomos embora rapidinho daquele manicômio, prometendo ligar depois. Na rua, caímos na risada, mais de nervoso do que qualquer outra coisa. O Ian confessou que ficou preocupado, pensando que eu tinha gostado da casa. Eu fiquei fantasiando que se quisesse escrever um livro, alugava aquela casa e ficava de olho no John. Só não sei se ia dar num thriller ou policial. Voltamos para casa com o passo apertado. Olhando por cima dos ombros, só para ter certeza de que ninguém estava nos seguindo.

 

(Junho 2002)


* Da Gaveta:Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de quando eu ainda era novata na terra da Rainha.

 

sábado, 26 de setembro de 2015

Precisamos falar sobre imigração

  

 

Está chovendo na horta dos professores aqui da Ilha. O que não falta é emprego. Normalmente no fim de julho e durante o mês de agosto, as escolas aproveitam que as crianças estão de férias e realizam pequenas reformas em suas instalações. Mas é só prestar atenção para descobrir que as obras estão ocorrendo não só nas férias de verão. Quase toda escola tem um ‘puxadinho’ para acomodar mais alunos. Vejo muitos pais reclamarem que as áreas verdes das instituições de ensino estão cada vez menores.

 


Essa demanda por mais vagas se explica em parte pelo aumento populacional, num curto espaço de tempo. A taxa de natalidade na Inglaterra e País de Gales subiu 18% na última década. De acordo com o ONS (Office for National Statistics) - o IBGE deles, mais de uma em cada quatro crianças nascidas nesses dois países é filha de estrangeira. O aumento no número de nascimentos se deve às melhorias no tratamento de infertilidade (as mulheres estão tendo o primeiro filho cada vez mais tarde), mas também ao fato de que a segunda geração de mulheres não nascidas neste país terem mais filhos. A taxa de natalidade por aqui é de 1.85 filhos por mulher. Entre as imigrantes da Líbia, o número é bem maior: 5.58 filhos. As polonesas são imigrantes que têm mais filhos.


 
 
Falar em escolas superlotadas e menos grama para as crianças correrem soa como draminha de classe média. Na escala da tragédia humana escancarada nas fronteiras europeias, não devia nem contar. Quando a gente vê o desespero de milhares de pessoas tentando chegar à Europa, criancinhas mortas na praia, cercas de arame farpado brotando do chão mais rápido do que erva daninha, o debate sobre imigração fica pequeno demais, certo?
 
Sim e não. Apesar de não existir um consenso que defina qual seria o número ideal de imigrantes nesta Ilha, não dá para negar que a metade dos habitantes locais acredita que existam imigrantes demais neste país. De acordo com o Migration Observatory da Universidade de Oxford, embora as pessoas por aqui sintam que já deu, os números mostram que a proporção de imigrantes na população desta Ilha é comparável com os de quinze outros países membros da Comunidade Europeia. Em termos de número de imigrantes, o Reino Unido está mais ou menos par e passo com a Alemanha. Seis países, entre eles Áustria, Irlanda e Suécia, têm ainda mais imigrantes, enquanto Itália, Portugal e Finlândia têm proporcionalmente menos.
 
 

 

Mocinhos & Bandidos

 

Imigração aqui é um daqueles assuntos Fla-Flu, que fazem o tom de voz subir e o nível cair. É duro ter um debate honesto sobre o tema, porque ele é extremamente politizado. As pessoas tendem a se concentrar nos argumentos que sustentam seus pontos de vista, sem considerar que existem bônus e ônus na equação.
 

Mais ou menos um ano atrás, Alice Gross, uma adolescente de Londres, desapareceu quando saiu para dar uma volta. Dias depois seu corpo foi encontrado. O assassino era um imigrante da Letônia, que havia sido condenado em seu próprio país por ter esfaqueado a esposa. O crime horrendo saiu como pólvora da boca dos que querem proteger seu precioso modo de vida do perigo que vem de fora. A família de Alice tem toda a minha solidariedade. E, embora eu acredite que o sistema de imigração, pelo menos num mundo ideal, pudesse ser melhor se evitasse que criminosos se mudassem para este país, usar o assassinato como argumento para ser contra a entrada de estrangeiros é de uma miopia que beira a cegueira. No entanto, muitos jornais e políticos vivem de vender histórias e versões, que reforçam esta linha de pensamento.
 
 
 
 
 
 
 
O número de imigrantes varia absurdamente nas diversas regiões do país. Londres ocupa a liderança, onde 36,2 em cada cem habitantes são imigrantes (dados de 2013). Na lanterninha está o Nordeste do Reino Unido com 1,8%. Outro dia ouvi uma senhora de idade dizer que está cada dia mais difícil fazer compras. As atendentes falam um inglês que ela não reconhece. Volta e meia vem alguém (nativos e estrangeiros) reclamar comigo dos imigrantes. Santa ironia. Mas, voltando à velhinha. Ela se queixou de que a Inglaterra que ela conhecia não existe mais. Talvez seja parte do processo de envelhecer, se ficamos agarrados ao passado, o presente parece mesmo uma terra estrangeira, onde não há muito o que se reconhece como familiar. Mas há mais do que nostalgia no comentário que ouvi e quem mora em Londres sabe disso.
 
 
 

 A imigração e o  bolso

 
 
Um dos jeitos de pensar sobre imigração é avaliar seu impacto na economia. Em média, nos últimos cinco anos, chegaram trezentos mil novos imigrantes a cada ano (a população da Grã-Bretanha está beirando os 65 milhões, com pouco mais de oito milhões de estrangeiros). Com o aumento da população, cresce a demanda por infraestrutura:  serviços sociais, escolas, hospitais, habitação e transporte. Em algumas regiões a pressão é maior. As administrações regionais estão tendo que rebolar para manter os serviços (ainda mais com o governo mandando cortar custos sem dó nem piedade). Entretanto, o curioso é observar que, contrariando a premissa de  que a imigração está estrangulando este país, a economia tem crescido. Uma marretada naqueles que afirmam que os imigrantes só querem vir para cá para mamar nas tetas do governo.
 

Do ponto de vista da economia, existem imigrantes e imigrantes. O que quer dizer que alguns têm qualificações profissionais que interessam muito a este país. Segundo o diretor executivo da multinacional Siemens, Juergen Maier, esta Ilha vai precisar de um milhão e oitocentos mil engenheiros nos próximos dez anos. Um número que este país não vai conseguir produzir. Para ele, os imigrantes são fundamentais para manter o crescimento econômico do Reino Unido. Ele acrescenta que durante anos este país ignorou a questão do aumento da população e não fez seu dever de casa. Quando a gente vê as escolas correndo para arrumar mais salas de aula, o que ele diz faz sentido. O desafio é saber planejar e ter uma estratégia que integre os novos e antigos moradores desta Ilha.
 
Mas nem entre os empresários o tema é consenso. Alguns enxergam a questão de uma forma diferente. Se este país está sempre olhando para fora para atender à demanda imediata de profissionais qualificados, ele acaba negligenciando a formação e o investimento em outros MADE IN UK, feitos em casa. É preciso investir mais na prata da casa, eles afirmam.
 
 

 A imigração e o trabalho

 
 
Do outro lado da moeda estão os profissionais com poucas qualificações, os carrega-piano mesmo. Pessoas que topam empregos sazonais na agricultura por exemplo. Estes com certeza devem estar tirando o emprego dos locais...
 

Não é o que pensam muitos fazendeiros, que dependem da mão-de-obra estrangeira. Eles argumentam que os britânicos mais dispostos ao trabalho não querem saber deste tipo de ocupação temporária e os que estão desempregados preferem continuar recebendo ajuda do governo a fazer trabalho braçal pesado.
 
Mas também quem vai querer trabalhar por tão pouco dinheiro? Os imigrantes aceitam qualquer coisa e o salário é cada vez mais baixo. Este é um dos argumentos que mais se repete na mídia. Entretanto, embora seja essa a percepção de muita gente, nenhum estudo até hoje conseguiu provar que exista um achatamento real dos salários por causa da imigração. Na ponta do lápis, existem algumas variações, mas nada que justifique o estardalhaço. A lógica que prevalece é a mesma com ou sem imigrantes: quanto mais qualificado e essencial é o trabalhador, maior é seu poder de negociação salarial. O inverso também é verdadeiro
 
 
 
 
 
 
Outro dia ouvi um brasileiro dizer: você dá emprego para um polonês e leva Varsóvia inteira. Os argumentos contrários à imigração são repetidos pelos próprios imigrantes, como se algumas pessoas se sentissem menos imigrantes do que outras, na medida em que se adaptam ao novo país . Puxei papo com a garçonete que servia minha mesa numa pizzaria. Ela contou que era russa e que o restaurante onde ela trabalhava era como uma sede das Nações Unidas, tinha gente do mundo inteiro. Mas o trabalho antigo dela era muito ruim. Só dava eslovacos e assim como disse o brasileiro sobre os poloneses, eles falavam uma língua que só  eles entendiam e não deixavam mais ninguém entrar. Soa familiar?
 
 
 

 
 
 
 

Para melhor ou para pior?

 

 

Em sua campanha para reeleição, o primeiro-ministro David Cameron disse que o problema da imigração era insustentável e que os números teriam que ser reduzidos drasticamente. Até agora não cumpriu o que andou ameaçando, mas esse assunto vai ficar para outro post. O ponto é que os números e estatísticas são importantes, mas não retratam as nuances desta história. Se o país vai ficar mais rico ou mais pobre como consequência da imigração é um conceito difícil de assimilar no dia-a-dia. Muito mais fácil são os efeitos sociais e como as pessoas percebem a questão. A fila no hospital lotado é muito mais palpável e menos abstrata.
 
O movimento mais importante e mais difícil deste jogo em constante transformação chama-se integração. Como aceitar o outro sem anular o que o define como único? Como manter a cultura e os valores de um povo, respeitando os de tantos outros? Não é bolinho, não. Afinal, como Caetano Veloso disse muito bem: é que Narciso acha feio o que não é espelho. Os Narcisos nativos e os importados também.
 
 

 

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Ciência e Fé




A primeira gravidez de Aline terminou em choro. A segunda também. Quando perdeu o terceiro bebê, ela achou que ia ficar louca. Tinha pesadelos horrorosos. Se torturava pensando se havia feito alguma coisa errada, se havia desejado o que não devia. O monstro do pensamento mágico e alienado crescia acelerado. A maternidade era então um sonho doloroso e cada vez mais distante.
Os abortos espontâneos são muito mais comuns do que se pensa. A maioria acontece sem que a mulher sequer soubesse que estava grávida. Estima-se que uma em cada seis gestações não vinguem. Entre dez e vinte por cento das mulheres que, assim como Aline, sabiam que estavam grávidas, perdem os bebês.
 Poucos abortos são investigados. São considerados como o curso normal da natureza. No caso de Aline, que vive aqui na Ilha, os médicos descobriram que os embriões não conseguiam se fixar em seu útero. Mas suspeita-se que entre cinco e sete de cada dez abortos aconteçam porque o embrião tinha alguma abnormalidade cromossômica. Ou seja, no momento da concepção e quando as primeiras células começaram a se dividir, alguma coisa deu muito errado.
Como diz uma amiga cientista: o dia mais importante da sua vida não é dia em que você nasce, mas o momento em que você começa a existir. Essa semana a BBC mostrou mais um documentário primoroso. Em inglês chama-se “Countdown to Life: the extraordinary making of you”. O programa começa como uma cena de cair o queixo da Cidade Maravilhosa, mas show mesmo são as animações gráficas que mostram como cada um de nós começa a ser quem somos.




Assistir do sofá a contagem regressiva da vida é um privilégio. A ciência avançou um bocado desde o ano 2000, quando foi anunciado o genoma humano. Mas quando a gente acha que sabe bastante, aparecem mais dúvidas. Por que tantos embriões são abortados? Como acontecem as abnormalidades genéticas?  E mais crucial, será possível evitá-las?























 

Hoje, nas capas dos jornais The Guardian e The Independent, uma história em comum; esta Ilha pode estar bem perto de começar a realizar modificações genéticas em embriões humanos. Cientistas britânicos pediram ao órgão governamental, que regulamenta as questões de fertilização humana, uma licença para alterar geneticamente embriões, doados por casais que recorrem às clínicas de fertilização artificial.


Se tiverem o pedido concedido, os britânicos vão estar em pé de igualdade com os chineses, os únicos a utilizarem a tecnologia no momento. A intenção não é produzir bebês geneticamente modificados e sim estudar os embriões, na esperança de compreender melhor por que tantas gestações terminam em choro.


A técnica ‘Crispr/Cas9’ de edição genética é polêmica. Os cientistas britânicos reafirmam suas intenções: dizem que não vão produzir um bebê geneticamente modificado. Seria ilegal, extremamente difícil e arriscado, eles argumentam.


Mas os Estados Unidos acham que os chineses foram longe demais. Declararam uma moratória para o uso da tecnologia nos laboratórios do país. Não sai um centavo de dólar do governo federal para bancar  pesquisas deste tipo. Eles querem mais tempo para pensar no assunto.


Os cientistas daqui da Ilha afirmam que as pesquisas são tão regulamentadas, que seria impossível avançar o sinal e produzir bebês geneticamente modificados para atender à vaidade dos pais, por exemplo. O que eles querem é compreender melhor os primeiros estágios do desenvolvimento de uma nova vida humana e, quem sabe, até reduzir o número de abortos em tratamentos de fertilização em vitro. Eles garantem que os embriões serão destruídos depois de quatorze dias de vida.


Quando penso neste assunto me lembro do livro ‘ O físico’ de Noah Gordon (um erro besta de tradução que transformou o título em inglês ‘The physician’ – o médico, em o físico). Batatinhas à parte, a ficção se passa na Idade Média e mostra a saga de um inglês na Pérsia, que vivia a idade de ouro da civilização árabe e judaica. No mundo do século onze, eles ainda batiam um bolão nas ciências, astronomia, matemática e a medicina era muito mais avançada do que o herói do livro conhecia na Inglaterra. Li o livro faz bem mais de uma década. Mas se a memória não me falha, numa das passagens o herói quase se dá mal, quando vai desenhar um osso quebrado. Qualquer representação do corpo humano era considerada heresia.



Já li em mais de um lugar a teoria de que o fundamentalismo de alguns teólogos islâmicos (por volta de 1055 a 1111) mudou o foco do estudo científico para o religioso, menos questionador: as coisas que não compreendemos completamente são desígnios de Deus. Deus sabe o que faz. Essa mudança coincide com o declínio da supremacia árabe no mundo das ciências.


 Quem já teve o privilégio de passear por Cambridge ou Oxford, se encanta com o fato de que tantas descobertas científicas foram feitas em um espaço relativamente pequeno. Lei da gravidade. Fibra ótica, DNA e tantas outras. É a curiosidade que move a ciência. Ela não acerta todas. Tá certo que os erros não são de todo maus, já que podem indicar outros caminhos. Entretanto, em nome da ciência, a humanidade cometeu muita barbaridade. O pulo do gato é encontrar o equilíbrio sem perder a curiosidade e o pensamento crítico.





Alguns dirão que foi o desejo de Deus, outros que só porque a ciência ainda não sabe explicar, não significa que tenha sido milagre. Mas, contrariando todas as expectativas, fico contente em revelar: Aline é hoje uma mãe orgulhosa de três meninas encantadoras, que foram concebidas à moda antiga.



quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A Rainha da Constância



Elizabeth Alexandra Mary, está beirando os noventa anos e com uma forma invejável. Interrompeu ontem suas férias para inaugurar uma nova linha de trem na Escócia, onde passa os verões. Segundo consta, preferia não ter ido, mas foi cumprir mais um de seus deveres reais. Seus assessores insistiam numa aparição pública no dia em que ela se tornaria a pessoa que ocupou o trono britânico por mais tempo nos mais de mil anos da monarquia desta Ilha.






Coroação da Rainha Elizabeth II



Vinte e três mil, duzentos e vinte e seis dias se passaram desde que a rainha Elizabeth II foi coroada. No Brasil, Getúlio Vargas era o presidente. Nos Estados Unidos, Truman e aqui o primeiro-ministro Winston Churchill governava um país, que ainda tentava ficar de pé depois da Segunda Guerra Mundial.


Os ingleses, eternos amantes da estatística, puderam se esbaldar ontem: Elizabeth sobreviveu a sete papas, doze primeiros-ministros, viu seu Império se desmantelar enquanto a população desta ilha passava de 50 milhões, em 1952, para os 64.6 milhões de hoje. Quando subiu ao trono, assassinos ainda eram enforcados neste país e os homossexuais mandados para prisão.

'Boy meets Girl' - BBC




“Leo, tenho uma coisa para te contar. Pode ser agora, pode ser mais tarde, mas prefiro que seja agora: nasci com um pênis”. De acordo com a BBC, o diálogo acima é uma das aberturas mais originais da história da tevê. Foi ao ar na semana passada na série ‘Boy meets girl’ (menino (rapaz) encontra menina (moça)). ‘Boy meets girl’ nasceu de um concurso para escritores e conta a história de amor de Judy, uma transexual e Leo. O mérito da BBC foi ter escalado para o papel principal Rebecca Root, uma atriz transexual. A crítica tem descido a lenha. Diz que o tema não deveria ser tratado como comédia e que ‘Boy meets girl’ tem clichês demais. Vi e gostei do primeiro episódio, mas sou suspeita, porque gosto do humor inglês, que tem um tom autodepreciativo.


Rainha Elizabeth II aos 89 anos





O dia de ontem no rádio, tevê, impressos e internet nesta Ilha foi como se a mídia tivesse pedido ‘altas’ para deixar o drama dos refugiados em segundo plano. A exaustão psicológica de assistir e refletir sobre afogados e retirantes foi substituída pelos assuntos da realeza. Como pouco se cria e muito se copia, ouvi e li em muitos lugares a mesma reflexão: a Rainha Elizabeth Segunda é uma constante num mundo em transformação.



Elizabeth viu muros caírem, mapas se redesenharem, pessoas apavoradas com um cataclismo nuclear que viria durante a guerra fria, pessoas ameaçadas pelo terrorismo. Gente morrendo de fome na África e gente morrendo de obesidade em seu quintal. Viu seu Império minguar e seu povo se enriquecer. Elizabeth também presenciou uma era de profundas mudanças sociais, como as que a nova série da BBC exibe na televisão. Mas o que ela representa para este povo não mudou em mais de seis décadas de reinado.



Todo ano, a Rainha participa da abertura do Parlamento http://mariaeduardajohnston.blogspot.co.uk/2015/03/pamonhices.html. Ela usa a mesma carruagem de sua tataravó, a Rainha Vitória, de quem acaba de roubar o recorde de longevidade no trono. Ao seu redor, prédios centenários convivem com os espigões de vidro, que brotam do chão. Como um país sobrevive em paz com mudanças sociais tão marcantes ao mesmo tempo em que reverencia sua Majestade?


Confesso que encarava a monarquia britânica com outros olhos antes de me mudar para este lado do mundo. Talvez meu modo de ver essa realidade esteja ficando menos cínico. Ou que sabe, mais anglicizado. Podem argumentar sobre o custo de manter a monarquia, quando tantos passam fome pelo mundo. Mas aprendi a entender de outro jeito: é possível andar para frente, evoluir, sem ter que destruir o passado. Tradição e modernidade podem sim ocupar o mesmo lugar no tempo e no espaço e ainda imprimir identidade a um povo.


Hoje ouvi no rádio um anúncio do novo livro de Saatchi - o ex-marido agressivo da cozinheira Nigella Lawson e que além de milionário, tem uma das melhores coleções particulares de arte moderna. O livro chama-se 'Dead', Morto, e, segundo a propaganda, traz reflexões sobre a mortalidade. Uma das frases do livro diz que: ‘tem gente que passa e deixa uma marca, tem gente que deixa uma mancha”.


Elizabeth Segunda vai deixar uma marca: a Rainha da constância.

 

domingo, 6 de setembro de 2015

A História do Andarilho Peladão



De perto,  toda família tem seu folclore particular. Uns mais ricos, mais coloridos do que outros, mas se procurar com cuidado, vai ver que está lá. Em algum galho perdido no alto de minha árvore genealógica paterna, viveu um homem muito turrão, daqueles que levam a vida acreditando que voltar atrás é sinal de fraqueza de caráter.  Pois bem, um dia esse sujeito estava brincando com um garfo. Devia estar fazendo hora para comer, sei lá. Alguém ordenou que ele largasse o talher. Ao ouvir o comando, ele teria respondido: Se quiser, não largo nunca mais. E não largou! Nasceu pele ao redor do garfo e seus dedos se atrofiaram. O esqueleto dele deve estar no caixão segurando o talher por toda eternidade. O fato da história ter sobrevivido, geração após geração, deve ter algum significado...






Semana passada, Stephen Cough voltou às páginas dos jornais por aqui. Ele havia saído da prisão. De novo. Foi preso mais de quarenta vezes. Ao todo, entre idas e vindas, Stephen passou cerca de dez anos encarcerado. A maior parte do tempo, confinado na solitária. Custou ao contribuinte cerca de 400 mil libras (o que dá mais ou menos  2.24 milhões de reais) só para mantê-lo confinado, ainda tem os custos legais que não entram nesta conta. Aqui vai a lista dos crimes que ele não cometeu:


Assassinato (X), roubo (X), furto (X), sequestro (X), estupro (x), pedofilia (x), produzir, distribuir ou consumir pornografia infantil (X), mostrar a genitália para criancinhas no parque (X), atos terroristas (X)... Podia seguir com essa lista por todo o código criminal, mas acho que neste ponto já ficou claro que ele não é criminoso perigoso. Então por que passou tanto tempo atrás das grades?


Porque não arredou o pé do que considera seu direito como ser humano: o de andar nu quando e onde bem entender! Melhor contar a história do começo.


Stephen Cough nasceu aqui na Ilha em 1959. Serviu na Marinha Real, foi motorista de caminhão e flertou com os Moonies - a Igreja da Reunificação do reverendo Moon, que cresceu nos Estados Unidos no auge da era hippie dos anos 70. Sua teologia ortodoxa e a crença de que Moon fosse o segundo Cristo ainda gera muita polêmica. Mas a causa de Stephen não é religiosa. Apesar de ele ser evangélico na defesa de seu ponto de vista.


Quando seus filhos eram pequenos, ele teve seu momento eureca, sua epifania. Acendeu uma luzinha no cérebro dele: por que eu tenho que usar roupas se elas me fazem suar? Por que tenho que ir contra a natureza e contra o que o meu corpo pede?


Até entendo o momento em que ele teve esta ideia. Quando minha filha tinha dois, três anos, travávamos inúmeras batalhas para que ela saísse de casaco na neve. Ela fazia birra, porque queria sair de camiseta e short. Imagino que um dos filhos de Stephen também tenha questionado o uso de roupas. O que ele argumenta hoje é que, se vestir para se proteger do frio é certo, por que então se despir quando está quente é errado? Gostaria de encontrá-lo para perguntar onde ele encontra tanto calor aqui na Ilha. Gostaria de ir lá dar um upgrade na minha vitamina ‘D’.


Land's End ao sul da Inglaterra


Entre 2003 e 2004, Stephen começou a ficar famoso. Sem nem uma peça de roupa, usando apenas botas, meias e uma mochila, ele cruzou o país de Land’s End (extremo sul) a John o’ Groats no topo da Escócia (o Oiapoque ao Chuí daqui, que tem mais ou menos a mesma distância de Brasília a Salvador). Começava ali a cruzada legal do homem que este país conhece como o ‘Andarilho Nu’.



Logo depois que resolveu que iria dedicar sua vida a andar sem roupa, Stephen foi detido inúmeras vezes por ‘Minor Public Order Offences’; pequenos delitos que não dão cadeia, mas rendem multa ao infrator que tem um comportamento considerado ameaçador, abusivo ou que causa assédio, alarme ou angústia a outra pessoa. As multas não fizeram Stephen mudar de ideia. Então, ele começou a ser preso pelo o que os britânicos chamam de ASBO (anti-social behaviour order), que foi introduzido pelo primeiro-ministro Tony Blair para criminalizar pequenos delitos e lidar principalmente com o problema de delinquentes jovens.


Da última vez em que foi julgado, o Andarilho Nu foi condenado a 30 meses de prisão. Demitiu seu advogado e resolveu que ia ser o seu representante legal. Quis aparecer no tribunal, adivinhe só, pelado. Não teve o desejo concedido e foi julgado à revelia. Mas entrou para história,quando em junho apareceu nu na corte, através de uma transmissão de vídeo, para apelar contra sua sentença. Ele também apelou à Corte Europeia de Direitos Humanos, com base na premissa de que seu encarceramento o estava privando da liberdade de expressão e do convívio com sua família.


Andarilho Nu






A teimosia de Stephen, ou a firmeza de suas convicções, é uma enorme dor de cabeça para a Justiça Britânica. De acordo com o ex-diretor da procuradoria pública, Lorde Macdonald, Stephen é um excêntrico que não faz mal a ninguém. O fato de ele ter passado tanto tempo na prisão (a maior parte na solitária porque se recusava usar o uniforme dos prisioneiros) é uma resposta draconiana, inapropriada e desproporcional ao seu comportamento. O lorde também acha um absurdo gastar tanto dinheiro público com o caso.
  
 

Na penúltima vez em que Stephen foi solto, ele deu apenas alguns passos fora da prisão. Ele estava nu mais uma vez e foi detido imediatamente por dois policiais que o esperavam do lado de cá do muro. Semana passada saiu vestido e no momento está a caminho de casa (a pé é claro) para rever os filhos adolescentes, que não teve a chance de ver crescer. Deu uma entrevista a um repórter da BBC enquanto andava. Disse que não sabe o que vai fazer no futuro. Queria apenas rever os filhos. Mas deu uma pista do que ia em sua cabeça quando deixou a entender que, se desistisse agora, nada teria valido a pena.
Também na semana passada, foi notícia uma escrivã americana, que foi presa porque se recusou a registrar o casamento entre dois homens nos Estados Unidos. Ela argumentou que era contra seus princípios. Será que é forçar muito a barra juntar a americana religiosa e o andarilho nu no mesmo balaio? Tenho muito mais simpatia por um do que pelo outro, devo dizer. Um deles me parece muito mais inofensivo. Mas até que consiga mudar a lei e tornar legal andar sem roupa por aí, o Andarilho Nu vai continuar tendo problemas com a Justiça.

 

Imagino que os filhos de Stephen gostariam que ele largasse o garfo. Se ele fosse meu pai, este seria meu desejo. Como não é , não consigo resolver se prefiro ver este talher na mesa ou na mão.