Da Gaveta*
Se tem uma coisa que as
inglesas não entendem é essa coisa de brasileiro ter empregada doméstica. Uma
amiga daqui diz que é um absurdo que alguém limpe a sujeira que ela faz. Diz
que é exploração. Toda vez que surge esse assunto, pergunto se é exploração
pagar para alguém varrer as ruas, ou comer a comida que outra pessoa preparou
num restaurante. Elas dizem que não e eu digo, qual é a diferença? É um
trabalho. Não?
Já participei de jantares em
que homens e mulheres comparavam notas sobre os melhores produtos de limpeza.
Maior resultado e menor esforço é o nome do jogo. Todo mundo que eu conheço
aqui lava, passa (muito raramente, diga-se de passagem) e cozinha. Se bem que
muitas casas não tem sequer um fogão. É comum ver famílias que vivem de comida
pronta, que elas esquentam no micro-ondas. Cada um que cuide de suas crianças,
apare a grama e pinte as paredes. Esta é a terra do DIY** (faça você mesmo).
Quem tem o luxo de ter uma arrumadeira por duas horinhas por semana, arruma a
casa antes de ela chegar, que é para não dar vexame.
Recentemente li o livro ‘
The Help’, de Kathryn Stockett (que no Brasil foi lançado com o título de ‘A
resposta’). A trama se passa no sul dos Estados Unidos na década de sessenta.
Conta o drama das empregadas domésticas negras e suas patroas brancas. Num dos
episódios narrados pela autora, as donas-de-casa organizam um movimento para construírem
banheiros para as empregadas, que não poderiam usar o mesmo vaso sanitário que
as patroas. Soa familiar? Pois é, morri de vergonha dos nossos elevadores de
serviço, onde são transportadas as domésticas, os cães e o lixo. O livro, as
conversas sobre empregadas e a falta que sinto delas me fazem pensar nas mulheres
que passaram pela minha casa e pela minha vida.
Quando morava em São Paulo, tive uma empregada
chamada Edivalda. Edivalda era alto-astral, cheia de energia, alegre e muito
competente no trabalho dela. Assim como milhares de outros nordestinos, ela migrou
para o sul ainda mocinha, levada por parentes. Chegou a São Paulo aos treze
anos, cheia de medos e sonhos. Tinha um emprego arranjado na casa de uma
família de libaneses, num bairro nobre da cidade. Ia ajudar a criar as crianças
da casa. Aos dezessete, ela ficou grávida de um português amigo dos patrões. Um
homem trinta e um anos mais velho do que ela. Assim que o menino nasceu, o
patrão, que era médico, arranjou para ela ligar as trompas. Anos mais tarde,
ainda trabalhando para os libaneses, ela se casou com outro homem. Até que um
dia resolveu mudar e sabe-se lá porque, foi parar lá em casa.
Edivalda era
esperta, dava conta do recado rapidinho, saía da minha casa e ainda ia fazer
faxina em outras casas. O filho Bruno, de onze anos, tinha aparelho nos dentes
e fazia um curso de inglês, que ela se esforçava para pagar. No fim do dia,
Edivalda pegava dois ônibus e ia para casa com o menino, lavar, passar e
cozinhar para a família, antes de ir para um curso supletivo. Ela queria
terminar o primeiro grau. “Já imaginou, o Bruno falando inglês e tudo e eu sem
saber nada? Ele vai ficar com vergonha de mim e vai acabar indo embora. Eu não
quero perder meu filho”, ela me contou um dia. Edivalda tinha suas prioridades
definidas direitinho. Nos fins-de-semana, ela trabalhava num mutirão para construir
o apartamento, que seria dela um dia. O marido, muito chique, não podia ir
misturar cimento e carregar tijolo porque, segundo ela, ele tinha diploma. O
plano era sair do aluguel e poder realizar o próximo sonho: juntar dinheiro para
reverter a laqueadura e ter outro filho.
Edivalda trabalhou para mim durante dois anos. Ela
tinha o hábito de me ligar bem na hora do fechamento do jornal, quando eu
estava correndo para terminar as matérias. Na pior hora possível, me perguntava
o que fazer para o almoço. Como ela continuava a se referir à ex-empregadora
como ‘minha patroa’, um dia eu disse para ela ligar para a patroa, ver o que ia
ter de almoço na casa dela e fazer o mesmo. Bad move***. Não passou muito tempo e ela pediu as contas. Resolveu voltar a trabalhar
para a patroa.
Saiu Edivalda e entrou sua antítese, Marialva. Pequenininha, franzina e arredia. Quase não falava, não fazia barulho e andava pela casa como se já não habitasse esse planeta. Quando eu disse que iria assinar a carteira dela, ela disse que não queria porque já estava aposentada. Aposentada? Como assim? “Pobremas da mente” ela disse. Para falar a verdade, não fiquei muito confortável tendo uma pessoa com problemas mentais dentro de casa, mas ela foi ficando. Em doses homeopáticas sua narrativa começava a se desenhar, sem pressa, como Marialva.
Saiu Edivalda e entrou sua antítese, Marialva. Pequenininha, franzina e arredia. Quase não falava, não fazia barulho e andava pela casa como se já não habitasse esse planeta. Quando eu disse que iria assinar a carteira dela, ela disse que não queria porque já estava aposentada. Aposentada? Como assim? “Pobremas da mente” ela disse. Para falar a verdade, não fiquei muito confortável tendo uma pessoa com problemas mentais dentro de casa, mas ela foi ficando. Em doses homeopáticas sua narrativa começava a se desenhar, sem pressa, como Marialva.
Marialva também havia saído do Nordeste. Chegou a
São Paulo acompanhada do primo Joaci, da mesma idade dela. Os dois se conheciam
desde sempre e estavam noivos. O começo foi difícil. Passaram frio e fome. O
dinheiro nunca dava, mas eles foram se arranjando. Ela ficou grávida, o bebê
nasceu morto. Depois teve outro, que morreu com poucas semanas de vida. Ela
queria muito ser mãe. Vieram dois meninos e duas meninas. Eles conseguiram
comprar um apartamento em Carapicuíba e a vida parecia ajeitada. Foi então que
o filho mais velho, de dez anos, começou a reclamar de dores na perna. Ela o
levou ao posto de saúde várias vezes para sempre ouvir a mesma resposta: ‘É dor
de crescimento, minha senhora’. A tal dor de crescimento foi só piorando e ele
teve que ser internado. Tinha câncer nos ossos. Viveu só três meses. Foi quando
Marialva teve o “pobrema da mente”.
Apesar de caladinha, Marialva era uma dessas mães
do mundo, que achou que tinha que cuidar de mim. Quando me mudei de casa e fui
passar o carnaval fora, ela foi até a minha casa nova com o marido e juntos
consertaram tudo o que precisava de reparos no apartamento. Na volta do
feriado, encontrei a casa um brinco e fiquei muito comovida com a generosidade
deles.
Depois de um
tempo, Marialva avisou que ia embora com a família. Eles iam para Minas, porque
o segundo filho estava escapando pelos dedos. Andava em más companhias. Ele já
não era o mesmo desde a morte do irmão e eles tinham medo de que ele fosse
preso ou assassinado. Anos depois fiquei sabendo que o rapaz havia sido preso
em Minas, por tráfico de drogas. Na prisão, ele teria ficado doido. Quando foi
solto, os pais se mudaram de novo, para cuidar melhor do filho. Longe das más
companhias.
Marialva foi embora e deixou em seu lugar a Dulce. Dulce já era avó. Ela era uma senhora negra alta e extremamente elegante. Nunca teve educação formal, mas era dona de uma sabedoria admirável. Cada movimento seu gritava “eu tenho orgulho de ser quem sou”. Ela também era muito competente no trabalho e como as outras me deixou muito mal acostumada.
Marialva foi embora e deixou em seu lugar a Dulce. Dulce já era avó. Ela era uma senhora negra alta e extremamente elegante. Nunca teve educação formal, mas era dona de uma sabedoria admirável. Cada movimento seu gritava “eu tenho orgulho de ser quem sou”. Ela também era muito competente no trabalho e como as outras me deixou muito mal acostumada.
A vida de Dulce começou longe da capital paulista. Ela nunca entrou em detalhes, mas deu para perceber que ela tinha o dom de se relacionar com trastes, bêbados. Homens que abusavam dela. Homens que sumiam. Ela contou que quando estava esperando a filha nascer, o pai da criança desapareceu. Ela se desesperou, sem ter como cuidar de dois filhos pequenos e grávida de outra criança. O desamparo foi tão grande, que um dia ela pegou os filhos e foi com eles para a estação de trem. Ia se jogar debaixo do trem e levar os filhos com ela. Chegando à estação, teve um ataque de nervos e ficou histérica. Foi levada com a família para um hospital. Dulce havia chegado à profundeza do abandono. Ela não sabia ainda, mas tinha molas nos pés. Assim que bateu no fundo do poço, começou a subir. No hospital, ela resolveu que nunca mais iria passar fome. Começou a frequentar as feiras livres e recolher as frutas e os legumes que os feirantes jogavam fora. Nunca levou os filhos junto com ela, que era ‘para eles não aprenderem a mendigar’. Dulce aprendeu a costurar e conseguiu vários empregos como empregada doméstica. Os três filhos concluíram o segundo grau e, para o orgulho dela, dividiam um carro zero quilômetro.
Ando pensando muito nestas mulheres sofridas e batalhadoras. Três mulheres tão diferentes e tão semelhantes ao mesmo tempo. Três mães empenhadas em suavizar o caminho dos filhos. Três mulheres a quem sou muito grata pela dedicação e generosidade.
(Novembro
2011)
*
Da Gaveta:
Toda
redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’.
Reportagens, digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos
de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias ‘da gaveta’. São impressões de
quando eu ainda era novata no Reino da Rainha.
** DIY – Do it yourself
*** Me
dei mal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário