domingo, 16 de novembro de 2014

Três Mulheres


Da Gaveta*

Se tem uma coisa que as inglesas não entendem é essa coisa de brasileiro ter empregada doméstica. Uma amiga daqui diz que é um absurdo que alguém limpe a sujeira que ela faz. Diz que é exploração. Toda vez que surge esse assunto, pergunto se é exploração pagar para alguém varrer as ruas, ou comer a comida que outra pessoa preparou num restaurante. Elas dizem que não e eu digo, qual é a diferença? É um trabalho. Não?

Já participei de jantares em que homens e mulheres comparavam notas sobre os melhores produtos de limpeza. Maior resultado e menor esforço é o nome do jogo. Todo mundo que eu conheço aqui lava, passa (muito raramente, diga-se de passagem) e cozinha. Se bem que muitas casas não tem sequer um fogão. É comum ver famílias que vivem de comida pronta, que elas esquentam no micro-ondas. Cada um que cuide de suas crianças, apare a grama e pinte as paredes. Esta é a terra do DIY** (faça você mesmo). Quem tem o luxo de ter uma arrumadeira por duas horinhas por semana, arruma a casa antes de ela chegar, que é para não dar vexame.

Recentemente li o livro ‘ The Help’, de Kathryn Stockett (que no Brasil foi lançado com o título de ‘A resposta’). A trama se passa no sul dos Estados Unidos na década de sessenta. Conta o drama das empregadas domésticas negras e suas patroas brancas. Num dos episódios narrados pela autora, as donas-de-casa  organizam um movimento para construírem banheiros para as empregadas, que não poderiam usar o mesmo vaso sanitário que as patroas. Soa familiar? Pois é, morri de vergonha dos nossos elevadores de serviço, onde são transportadas as domésticas, os cães e o lixo. O livro, as conversas sobre empregadas e a falta que sinto delas me fazem pensar nas mulheres que passaram pela minha casa e pela minha vida.
 
 

Quando morava em São Paulo, tive uma empregada chamada Edivalda. Edivalda era alto-astral, cheia de energia, alegre e muito competente no trabalho dela. Assim como milhares de outros nordestinos, ela migrou para o sul ainda mocinha, levada por parentes. Chegou a São Paulo aos treze anos, cheia de medos e sonhos. Tinha um emprego arranjado na casa de uma família de libaneses, num bairro nobre da cidade. Ia ajudar a criar as crianças da casa. Aos dezessete, ela ficou grávida de um português amigo dos patrões. Um homem trinta e um anos mais velho do que ela. Assim que o menino nasceu, o patrão, que era médico, arranjou para ela ligar as trompas. Anos mais tarde, ainda trabalhando para os libaneses, ela se casou com outro homem. Até que um dia resolveu mudar e sabe-se lá porque, foi parar lá em casa.

 Edivalda era esperta, dava conta do recado rapidinho, saía da minha casa e ainda ia fazer faxina em outras casas. O filho Bruno, de onze anos, tinha aparelho nos dentes e fazia um curso de inglês, que ela se esforçava para pagar. No fim do dia, Edivalda pegava dois ônibus e ia para casa com o menino, lavar, passar e cozinhar para a família, antes de ir para um curso supletivo. Ela queria terminar o primeiro grau. “Já imaginou, o Bruno falando inglês e tudo e eu sem saber nada? Ele vai ficar com vergonha de mim e vai acabar indo embora. Eu não quero perder  meu filho”, ela me contou um dia. Edivalda tinha suas prioridades definidas direitinho. Nos fins-de-semana, ela trabalhava num mutirão para construir o apartamento, que seria dela um dia. O marido, muito chique, não podia ir misturar cimento e carregar tijolo porque, segundo ela, ele tinha diploma. O plano era sair do aluguel e poder realizar o próximo sonho: juntar dinheiro para reverter a laqueadura e ter outro filho.

Edivalda trabalhou para mim durante dois anos. Ela tinha o hábito de me ligar bem na hora do fechamento do jornal, quando eu estava correndo para terminar as matérias. Na pior hora possível, me perguntava o que fazer para o almoço. Como ela continuava a se referir à ex-empregadora como ‘minha patroa’, um dia eu disse para ela ligar para a patroa, ver o que ia ter de almoço na casa dela e fazer o mesmo. Bad move***. Não passou muito tempo e ela pediu as contas. Resolveu voltar a trabalhar para a patroa.

Saiu Edivalda e entrou sua antítese, Marialva. Pequenininha, franzina e arredia. Quase não falava, não fazia barulho e andava pela casa como se já não habitasse esse planeta.  Quando eu disse que iria assinar a carteira dela, ela disse que não queria porque já estava aposentada. Aposentada? Como assim? “Pobremas da mente” ela disse. Para falar a verdade, não fiquei muito confortável tendo uma pessoa com problemas mentais dentro de casa, mas ela foi ficando. Em doses homeopáticas sua narrativa começava a se desenhar, sem pressa, como Marialva. 
 

Marialva também havia saído do Nordeste. Chegou a São Paulo acompanhada do primo Joaci, da mesma idade dela. Os dois se conheciam desde sempre e estavam noivos. O começo foi difícil. Passaram frio e fome. O dinheiro nunca dava, mas eles foram se arranjando. Ela ficou grávida, o bebê nasceu morto. Depois teve outro, que morreu com poucas semanas de vida. Ela queria muito ser mãe. Vieram dois meninos e duas meninas. Eles conseguiram comprar um apartamento em Carapicuíba e a vida parecia ajeitada. Foi então que o filho mais velho, de dez anos, começou a reclamar de dores na perna. Ela o levou ao posto de saúde várias vezes para sempre ouvir a mesma resposta: ‘É dor de crescimento, minha senhora’. A tal dor de crescimento foi só piorando e ele teve que ser internado. Tinha câncer nos ossos. Viveu só três meses. Foi quando Marialva teve o “pobrema da mente”.  

Apesar de caladinha, Marialva era uma dessas mães do mundo, que achou que tinha que cuidar de mim. Quando me mudei de casa e fui passar o carnaval fora, ela foi até a minha casa nova com o marido e juntos consertaram tudo o que precisava de reparos no apartamento. Na volta do feriado, encontrei a casa um brinco e fiquei muito comovida com a generosidade deles. 

 Depois de um tempo, Marialva avisou que ia embora com a família. Eles iam para Minas, porque o segundo filho estava escapando pelos dedos. Andava em más companhias. Ele já não era o mesmo desde a morte do irmão e eles tinham medo de que ele fosse preso ou assassinado. Anos depois fiquei sabendo que o rapaz havia sido preso em Minas, por tráfico de drogas. Na prisão, ele teria ficado doido. Quando foi solto, os pais se mudaram de novo, para cuidar melhor do filho. Longe das más companhias.


Marialva foi embora e deixou em seu lugar a Dulce. Dulce já era avó. Ela era uma senhora negra alta e extremamente elegante. Nunca teve educação formal, mas era dona de uma sabedoria admirável. Cada movimento seu gritava “eu tenho orgulho de ser quem sou”. Ela também era muito competente no trabalho e como as outras me deixou muito mal acostumada.


A vida de Dulce começou longe da capital paulista. Ela nunca entrou em detalhes, mas deu para perceber que ela tinha o dom de se relacionar com trastes, bêbados. Homens que abusavam dela. Homens que sumiam. Ela  contou que quando estava esperando a filha nascer, o pai da criança desapareceu. Ela se desesperou, sem ter como cuidar de dois filhos pequenos e grávida de outra criança. O desamparo foi tão grande, que um dia ela pegou os filhos e foi com eles para a estação de trem. Ia se jogar debaixo do trem e levar os filhos com ela. Chegando à estação, teve um ataque de nervos e ficou histérica. Foi levada com a família para um hospital. Dulce havia chegado à profundeza do abandono. Ela não sabia ainda, mas tinha molas nos pés. Assim que bateu no fundo do poço, começou a subir. No hospital, ela resolveu que nunca mais iria passar fome. Começou a frequentar as feiras livres e recolher as frutas e os legumes que os feirantes jogavam fora. Nunca levou os filhos junto com ela, que era ‘para eles não aprenderem a mendigar’. Dulce aprendeu a costurar e conseguiu vários empregos como empregada doméstica. Os três filhos concluíram o segundo grau e, para o orgulho dela, dividiam um carro zero quilômetro.

Ando pensando muito nestas mulheres sofridas e batalhadoras. Três mulheres tão diferentes e tão semelhantes ao mesmo tempo. Três mães empenhadas em suavizar o caminho dos filhos. Três mulheres a quem sou muito grata pela dedicação e generosidade.
 

(Novembro 2011)   

* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias ‘da gaveta’. São impressões de quando eu ainda era novata no Reino da Rainha.

** DIY – Do it yourself

***  Me dei mal.

 

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