Pouco depois de uma da tarde, começa o zum-zum-zum no
setor de alimentação da loja de departamentos Selfridges. A quituteira Dadá
veio direto da Bahia ensinar como preparar xinxim de galinha e caruru. Aos
poucos os curiosos vão chegando e ela não tem pressa. Conversa com um e com
outro num ritmo próprio e sorridente. Aparece uma inglesa e pergunta quando a
aula vai começar. A intérprete passa a pergunta para Dadá, que responde com um
‘agorinha mesmo’. A inglesa quer mais exatidão na resposta e pergunta se
agorinha é daqui a cinco, dez ou quinze minutos. Recebe outra resposta vaga e
decide dar uma volta pela loja.
Quando Dadá acha que finalmente está na hora de começar,
um senhor inglês garante seu espaço, bem no gargarejo, de frente para o fogão.
Dadá vai falando, sorrindo ao mesmo tempo, gesticulando com graça e agradecendo
à Selfridges, à Bahia de todos os santos e aos poucos o grupo vai engrossando.
Primeiro ela apresenta os ingredientes. Aparece uma
galinha branca, empacotada e plastificada, parecendo vagamente com o que um dia
deve ter sido um frango. Ela bate os braços, como se fossem asas, solta um
cocoricó, no caso de alguém ter alguma dúvida de que aquilo era mesmo uma
galinha. Ri da própria piada e diz que o inglês dela está melhorando... Depois
vêm os temperos: a cebola roxa ‘que não pode faltar na culinária baiana’, o
coentro, ‘que é o Viagra do pobre’ e por aí vai até chegar à descrição dos usos
da salsinha no Candomblé. Ela se abana com o maço de folhinhas verdes e se
benze. A intérprete olha atônita, se maldizendo por ter aceitado o trabalho.
Diz sem graça que salsinha é bom para tomar banho. Os alunos, pasmos, olham
tudo sem entender muita coisa.
Quando o ‘ensopado de galinha’, como dizem os ingleses,
já está borbulhando na panela, a inglesa, que minutos antes queria saber quando
a aula iria começar, volta e fica visivelmente decepcionada. Reclama que é a
segunda vez que ela perde a demonstração. Parece que não foi desta vez que ela
aprendeu sobre o ‘timing’ baiano. Anyway, ela diz dando os ombros, amanhã tentarei novamente.
Dadá começa a receita do caruru explicando que as mães de
gêmeos devem preparar a iguaria no dia vinte e sete de setembro e distribuir
aos pobres, em homenagem a São Cosme e Damião. Depois ela ensina como escolher
os quiabos, usando, mais uma vez, métodos de difícil compreensão para essa
gente tão distante do Brasil. Ela diz que a cozinheira deve catar os quiabos de
sete em sete, os mais bonitos, aqueles que terão mais energia e trarão mais
coisas boas. Ensina como picar o quiabo e, enquanto o tempero é batido no
liquidificador, ela interrompe a aula para me explicar que na verdade ela
acredita mesmo é em Allan Kardec, que depois da aula vai fazer um pouco de
yoga, meditar um pouquinho, mas que ela não pode deixar de falar do candomblé. Afinal, ‘ com um céu tão bonito e tantas
coisas boas, a gente não pode negar essas coisas’. Foi a demonstração mais
explícita do sincretismo religioso brasileiro que eu já ouvi. Pena que meus
colegas de curso perderam.
Dadá vai misturando a comida nas panelas e o público
acostumado com fast food começa a ficar ansioso. Os alunos querem saber quanto
tempo vai levar. Ela solta um ’cinco minutinhos’. Dez minutos depois, solta
outro, até que diz que vai levar ‘umas meia hora’. Ela conta casos, dança e
canta, enquanto a intérprete, pálida, exausta e vencida, joga a tolha e desiste
de traduzir.
Alguém tinha pisado no fio e o fogão elétrico estava
desligado. Dadá descobre então porque estava demorando tanto para cozinhar o
caruru. Não se intimida e nem perde a pose. Liga o fogão e retoma as histórias
de um lugar colorido chamado Bahia. Nesta altura, o senhor do gargarejo está
mais do que impaciente. Fica repetindo para ela servir logo, senão a comida vai
esfriar. Inglês tem pânico de comida fria. Eles colocam os pratos no forno,
antes de servir o prato feito. Levar as travessas de comida e deixar cada
um se servir, não rola por aqui. Ela sorri e diz que vai dar tudo certo.
‘Sempre dá’.
Quando finalmente chega a hora de provar a comida, o
senhor inglês estende os braços e recebe um pratinho com arroz, caruru e xinxim
de galinha. Ele sai da fila e vai para um cantinho. Põe a primeira colherada na
boca e é a primeira vez que o vejo sorrir. Satisfeito, ele me dá uma discreta piscadela.
Valeu a pena esperar.
(maio/ 2004)
* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens
digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de
notícias. O Da Ilha também tem suas
histórias ‘da gaveta’. São impressões de quando eu ainda era novata no Reino da
Rainha.
Muiiito bom!!! A Dadá é o máximo!
ResponderExcluirE vc também! <3
ResponderExcluirObrigada, Clarafiesta.
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