sábado, 6 de dezembro de 2014

Sem Trincheiras


Duas moças conversavam na minha frente num trem em Paris. Elas deviam ter dezoito, vinte anos no máximo. Eram a personificação do charme parisiense em suas roupas de um domingo de verão.  Uma estava assentada bem na minha frente, a outra ao seu lado, do outro lado do corredor. Elas podiam ser as estrelas de um comercial de iogurte orgânico, feito com o mais puro leite de vacas alpinas. Invadida pelo espírito tiazinha piegas, olhava as duas e pensava em como a juventude é bonita. De repente, uma delas se calou e a expressão de seu rosto endureceu. Com os olhos, ela guiou o olhar da outra para o corredor. Imediatamente as duas empinaram o nariz, como cães de caça que farejam uma raposa. Virei o rosto e vi que uma mulçumana, pouco mais velha do que elas, vinha em nossa direção. A mulher tinha a cabeça coberta por um lenço e caminhava despretensiosamente, sem querer provocar ninguém. Só queria mudar de vagão. Um milímetro depois de ela cruzar o caminho das francesas, elas enfiaram os dedos nas respectivas gargantas, num gesto de nojo e repulsa. Um descaramento total. Começaram a falar mais alto do que antes e deitaram fora todo o racismo que ainda não havia sido revelado. Nunca tinha testemunhado a beleza se rachar tão brutal e rapidamente como naquele momento. O iogurte tinha azedado.

 Se você é daqueles que tem até um pincel especial para limpar o painel do carro, melhor se poupar e pular para o próximo parágrafo. Para quem ainda está por aqui, vou contar: meu carro é um modelo ‘vintage’-ecológico. É vintage para combinar com o toca-fitas, que funciona até hoje. Quando vem gente do Brasil, eu ouço: ah, se eu soubesse que você tinha isso! Joguei todas as minhas fitas cassete no lixo. Dá para notar um pouquinho de tristeza e nostalgia, quando eles dizem isso. Meu carro é ecológico, porque os retrovisores fornecem um ecossistema perfeito para as aranhas que vivem no canteiro na frente de casa. Atrás dos espelhos, elas fazem seus ninhos. De vez em quando tiro o algodão doce, feito das teias que elas produzem durante a noite. Também é ecológico, porque notei um tiquinho de musgo crescendo no porta-malas. 

Ontem, máxima de quatro graus e chuva. Gripada, fui ao supermercado. Pus as compras no carro, mas ele não quis ligar. Chamei o socorro. Socorro veio, deu um paliativo e prescreveu um mecânico. Saí do supermercado e fui direto ver o Rui, nosso mecânico português. Ele ouviu a história e deu seu diagnóstico. O caso, infelizmente, não era terminal. Parece que ainda vou guiar o ‘vintage’ por mais um tempinho. Deixei o carro aos cuidados de Rui, que me tranquilizou: é um carrinho muito bom, minha senhora. Recolhi as compras de geladeira e fui atrás de um 'cab'. O ‘cab’ está para o táxi, assim como o táxi comum está para o especial. 

O ‘cab’ encostou onde era proibido parar e entrei rapidamente. Desconforto instantâneo. Fazia uns trinta graus no carro. O banco da frente estava colado no de trás, eu mal podia mexer as pernas. O motorista era estranho. Um ser inversamente proporcional ao tamanho do carrão que dirigia. Assim que ele parou no primeiro sinal, pedi que arredasse o banco da frente. Ele me perguntou de onde eu era. 

- Ah, Brasil! Eu gosto do Brasil. Adoro o Romário, ele é tão discreto, não? Romário, o Sócrates também! Vocês são os melhores do mundo no futebol. Quer dizer, eram. Tomaram de sete para a Alemanha. 

Pronto! Não levou nem dois quarteirões e ele já estava cutucando ferida. Atchim!  Mudei de assunto e perguntei de onde ele era. Da Argélia, ele disse. Um país lindo. Vou para lá semana que vem e talvez não volte nunca mais, ele acrescentou. Perguntei há quantos anos ele vivia aqui e ele disse: vinte e cinco, nem tudo é perfeito. Contei que uma tia arquiteta tinha passado um tempo na Argélia nos anos 70, trabalhando para o arquiteto mais famoso do Brasil. A referência passou batida e ele seguiu falando dos nove irmãos que tinha vivendo lá. Perguntei se ele falava francês. Em francês ele respondeu que sim, infelizmente. Foi a deixa para ele começar a desfiar seu ódio contra os franceses.

- Eles têm coração de pedra. São seres humanos cruéis. Mataram centenas de argelinos. Lutamos contra eles durante sete anos, até ganharmos nossa independência. Eles não prestam.

O sinal fechou e ele disse com uma voz totalmente diferente e assustadoramente tranquila:

- Depois de deixá-la, vou direto para minha mesquita para rezar. Rezo dez vezes por dia. Nós temos uma relação muito especial com nosso Deus. Essa última frase ele falou como quem quer vender creme dental. 
- Atchim!
- Você é cristã?
- Yes.
- Católica, né? Os portugueses...
 
Disse que sim. Demorou um pouco para eu entender o porquê da pergunta. Ele queria ter certeza de que eu não era judia, porque dali em diante o que se seguiu foi um aniquilamento dos judeus. Ele ia ficando mais animado, o ponteiro do velocímetro subia e ele rogava pragas e mais pragas aos filhos de Israel, enquanto eu me arrependia de não ter tomado o trem de volta para casa. Mesmo gripada e com as sacolas de supermercado  teria sido melhor. Ele passou a toda por um desses radares de velocidade e eu torci para ver o flash da câmera piscar. O dia ia de mal a pior, queria chegar em casa logo. Sugeri que ele virasse à esquerda, para cortar caminho. Ele virou e começou a reclamar.  

- Não sei por que você me fez vir por aqui.  É muito mais longe, estou dando voltas. Vou ter que cobrar mais.
 
O preço havia sido combinado antes da corrida, o caminho era mais curto e o homem um mala sem alça. Ele estava cada vez mais irritado e eu incomodada. Só pensava que a única coisa que me lembrava sobre a temporada argelina de minha tia, era ela contando como eles tratavam mal as mulheres. Cheguei em casa, paguei, não dei gorjeta e fui tomar um banho para tirar a inhaca do dia.



O interessante das associações de ideias é que uma coisa leva a outra, sem nos darmos conta. O taxista raivoso e vingativo me fez lembrar das francesas racistas no trem. As duas histórias me remeteram a um anúncio de natal, que divide a opinião dos ingleses nesta temporada festiva.

 

 

 
A propaganda mostra soldados ingleses e alemães entrincheirados durante a Primeira Guerra. Miseráveis, morrendo de frio e de saudade de casa, eles começam a cantar ‘Noite Feliz’ em inglês e alemão. Um soldado inglês sai da trincheira, seguido por outro alemão. Quando menos se espera, inimigos começam a jogar bola, numa trégua natalina. A história da partida de futebol é real e aconteceu no primeiro ano da guerra, antes da coisa ficar feia demais.

O comercial foi criticado por explorar um assunto tão delicado para os ingleses, especialmente no ano do centenário da Pimeira Guerra. Para que? Para vender mais peru e biscoito no natal, delataram os críticos. Pessoalmente achei as  críticas mal-humoradas. É uma peça publicitária lindíssima e me fez pensar em outras trincheiras que se abriram em 2014. 

Um amigo querido se queixou que as brigas saíram do plano virtual e incineraram amizades reais e antigas no Brasil. Acompanhei um monte de gente postando frases sobre a importância de se respeitar as opiniões alheias, sem perder o amigo. Já que é natal, vou continuar no tema bíblico. A impressão que tive de 2014 foi a de que o mar se abriu ao meio nas relações pessoais aí no Brasil, com familiares que não se falam mais e amigos que romperam laços de infância e juventude. 
  



 
Fim de ano é tempo de fechar para balanço e também de fazer planos para o ano novo. O balanço de 2014 é longo e interessante. Talvez seja preciso mais de um natal para fechar essa conta. Minhas resoluções para o ano que vem ficam aqui comigo. O que gostaria de compartilhar são meus desejos de ano novo. 



Que em 2015 a gente consiga sair das trincheiras que cavamos aqui e ali; antes que as diferenças se tornem irreconciliáveis. Que reconheçamos que a gente gosta do outro ‘apesar de’. Apesar de o outro ser chato de vez em quando. Apesar de o outro não ter o bom gosto de torcer pelo mesmo time que eu. Apesar dele não ter o meu bom senso político. É um exercício de convivência porque só assim, quem sabe, o outro vá gostar da gente também. Apesar de todos os nossos vícios, sucessos, perfeições, escolhas erradas e pieguices em geral. Que 2015 seja um ano de mais tolerância,  jogo de cintura e amor nas relações. Sejam elas quais forem. 
 


                                     Paz e felicidade para 2015!

 

 

8 comentários:

  1. Você tem razão, temos de nos lembrar que ninguém é perfeito -- e nós mesmos, menos ainda. Mas as sementes da intolerância vêm de cima, na base do "dividir para conquistar", e isso é ainda mais difícil de "desarraigar". De qualquer forma, espero que o meu pessimismo seja derrotado. Amém.

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  2. Muito bom como sempre, Duda! Feliz Natal e um ótimo ano!

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  3. Amei sua crônica: leve, bem escrita e faz a gente pensar! Vou copiar seu último parágrafo... um feliz 2015 pra vc!

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  4. Adorei seu carro ecológico! Na minha próxima ida levarei minhas fitas k-7. :o)) E xô iogurte azedo! Brilhou Dudinha, as always!
    Sua fã de carteirinha. Bjus.

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  5. Varda, venha me ver. Prometo que te levo para dar uma volta de vintage. Bjs.

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