Duas moças
conversavam na minha frente num trem em Paris. Elas deviam ter dezoito, vinte
anos no máximo. Eram a personificação do charme parisiense em suas roupas de
um domingo de verão. Uma estava assentada
bem na minha frente, a outra ao seu lado, do outro lado do corredor. Elas
podiam ser as estrelas de um comercial de iogurte orgânico, feito com o mais
puro leite de vacas alpinas. Invadida pelo espírito tiazinha piegas, olhava
as duas e pensava em como a juventude é bonita. De repente, uma delas se calou
e a expressão de seu rosto endureceu. Com os olhos, ela guiou o olhar da outra
para o corredor. Imediatamente as duas empinaram o nariz, como cães de caça
que farejam uma raposa. Virei o rosto e vi que uma mulçumana, pouco mais velha
do que elas, vinha em nossa direção. A mulher tinha
a cabeça coberta por um lenço e caminhava despretensiosamente, sem querer
provocar ninguém. Só queria mudar de vagão. Um milímetro depois de ela cruzar o
caminho das francesas, elas enfiaram os dedos nas respectivas gargantas, num gesto de
nojo e repulsa. Um descaramento total. Começaram a falar mais alto do que antes
e deitaram fora todo o racismo que ainda não havia sido revelado. Nunca tinha
testemunhado a beleza se rachar tão brutal e rapidamente como naquele momento. O
iogurte tinha azedado.
Se você é daqueles que tem até um pincel especial para limpar o painel do carro,
melhor se poupar e pular para o próximo parágrafo. Para quem ainda está por
aqui, vou contar: meu carro é um modelo ‘vintage’-ecológico. É vintage para
combinar com o toca-fitas, que funciona até hoje. Quando vem gente do Brasil,
eu ouço: ah, se eu soubesse que você tinha isso! Joguei todas as minhas fitas
cassete no lixo. Dá para notar um pouquinho de tristeza e nostalgia, quando
eles dizem isso. Meu carro é ecológico, porque os retrovisores fornecem
um ecossistema perfeito para as aranhas que vivem no canteiro na frente de casa.
Atrás dos espelhos, elas fazem seus ninhos. De vez em quando tiro o algodão
doce, feito das teias que elas produzem durante a noite. Também é ecológico,
porque notei um tiquinho de musgo crescendo no porta-malas.
Ontem, máxima
de quatro graus e chuva. Gripada, fui ao supermercado. Pus as compras no carro,
mas ele não quis ligar. Chamei o socorro. Socorro veio, deu um paliativo e
prescreveu um mecânico. Saí do supermercado e fui direto ver o Rui, nosso
mecânico português. Ele ouviu a história e deu seu diagnóstico. O caso,
infelizmente, não era terminal. Parece que ainda vou guiar o ‘vintage’ por mais
um tempinho. Deixei o carro aos cuidados de Rui, que me tranquilizou: é um
carrinho muito bom, minha senhora. Recolhi as compras de geladeira e fui atrás
de um 'cab'. O ‘cab’ está para o táxi, assim como o táxi comum está para o
especial.
O ‘cab’
encostou onde era proibido parar e entrei rapidamente. Desconforto instantâneo. Fazia uns trinta graus no carro. O banco da frente
estava colado no de trás, eu mal podia mexer as pernas. O motorista era
estranho. Um ser inversamente proporcional ao tamanho do carrão que dirigia.
Assim que ele parou no primeiro sinal, pedi que arredasse o banco da frente.
Ele me perguntou de onde eu era.
- Ah,
Brasil! Eu gosto do Brasil. Adoro o Romário, ele é tão discreto, não? Romário,
o Sócrates também! Vocês são os melhores do mundo no futebol. Quer dizer, eram.
Tomaram de sete para a Alemanha.
Pronto! Não
levou nem dois quarteirões e ele já estava cutucando ferida. Atchim! Mudei de assunto e perguntei de onde ele era.
Da Argélia, ele disse. Um país lindo. Vou para lá semana que vem e talvez não
volte nunca mais, ele acrescentou. Perguntei há quantos anos ele vivia aqui e
ele disse: vinte e cinco, nem tudo é perfeito. Contei que uma tia arquiteta tinha
passado um tempo na Argélia nos anos 70, trabalhando para o arquiteto mais
famoso do Brasil. A referência passou batida e ele seguiu falando dos nove
irmãos que tinha vivendo lá. Perguntei se ele falava francês. Em francês ele
respondeu que sim, infelizmente. Foi a deixa para ele começar a desfiar seu
ódio contra os franceses.
- Eles têm coração
de pedra. São seres humanos cruéis. Mataram centenas de argelinos. Lutamos
contra eles durante sete anos, até ganharmos nossa independência. Eles não prestam.
O sinal
fechou e ele disse com uma voz totalmente diferente e assustadoramente tranquila:
- Depois de deixá-la, vou direto para minha mesquita para rezar. Rezo dez vezes por dia. Nós temos uma relação muito especial com nosso Deus. Essa última frase ele falou como quem quer vender creme dental.
- Atchim!
- Você é cristã?
- Yes.
- Católica,
né? Os portugueses...
Disse que
sim. Demorou um pouco para eu entender o porquê da pergunta. Ele queria ter
certeza de que eu não era judia, porque dali em diante o que se seguiu foi um
aniquilamento dos judeus. Ele ia ficando mais animado, o ponteiro do velocímetro
subia e ele rogava pragas e mais pragas aos filhos de Israel, enquanto eu me arrependia de
não ter tomado o trem de volta para casa. Mesmo gripada e com as sacolas de
supermercado teria sido melhor. Ele passou a toda por um desses radares de
velocidade e eu torci para ver o flash da câmera piscar. O dia ia de mal a
pior, queria chegar em casa logo. Sugeri que ele virasse à esquerda, para
cortar caminho. Ele virou e começou a reclamar.
- Não sei por
que você me fez vir por aqui. É muito
mais longe, estou dando voltas. Vou ter que cobrar mais.
O preço
havia sido combinado antes da corrida, o caminho era mais curto e o homem um
mala sem alça. Ele estava cada vez mais irritado e eu incomodada. Só pensava
que a única coisa que me lembrava sobre a temporada argelina de minha tia, era
ela contando como eles tratavam mal as mulheres. Cheguei em casa, paguei, não
dei gorjeta e fui tomar um banho para tirar a inhaca do dia.
O interessante das associações de ideias é que uma coisa leva a outra, sem nos darmos conta. O taxista raivoso e vingativo me fez lembrar das francesas racistas no trem. As duas histórias me remeteram a um anúncio de natal, que divide a opinião dos ingleses nesta temporada festiva.
A propaganda
mostra soldados ingleses e alemães entrincheirados durante a Primeira Guerra.
Miseráveis, morrendo de frio e de saudade de casa, eles começam a cantar ‘Noite
Feliz’ em inglês e alemão. Um soldado inglês sai da trincheira, seguido por
outro alemão. Quando menos se espera, inimigos começam a jogar bola, numa
trégua natalina. A história da partida de futebol é real e aconteceu no
primeiro ano da guerra, antes da coisa ficar feia demais.
O comercial
foi criticado por explorar um assunto tão delicado para os ingleses,
especialmente no ano do centenário da Pimeira Guerra. Para que? Para vender
mais peru e biscoito no natal, delataram os críticos. Pessoalmente achei as
críticas mal-humoradas. É uma peça publicitária lindíssima e me fez pensar em
outras trincheiras que se abriram em 2014.
Um amigo
querido se queixou que as brigas saíram do plano virtual e incineraram amizades reais e
antigas no Brasil. Acompanhei um monte de gente postando frases sobre a importância de
se respeitar as opiniões alheias, sem perder o amigo. Já que é natal, vou
continuar no tema bíblico. A impressão que tive de 2014 foi a de que o mar se
abriu ao meio nas relações pessoais aí no Brasil, com familiares que não se
falam mais e amigos que romperam laços de infância e juventude.
Fim de ano é
tempo de fechar para balanço e também de fazer planos para o ano novo. O
balanço de 2014 é longo e interessante. Talvez seja preciso mais de um natal
para fechar essa conta. Minhas resoluções para o ano que vem ficam aqui comigo.
O que gostaria de compartilhar são meus desejos de ano novo.
Que em 2015 a gente consiga sair das trincheiras que cavamos aqui e ali; antes que as diferenças se tornem irreconciliáveis. Que reconheçamos que a gente gosta do outro ‘apesar de’. Apesar de o outro ser chato de vez em quando. Apesar de o outro não ter o bom gosto de torcer pelo mesmo time que eu. Apesar dele não ter o meu bom senso político. É um exercício de convivência, porque só assim, quem sabe, o outro vá gostar da gente também. Apesar de todos os nossos vícios, sucessos, perfeições, escolhas erradas e pieguices em geral. Que 2015 seja um ano de mais tolerância, jogo de cintura e amor nas relações. Sejam elas quais forem.
Que em 2015 a gente consiga sair das trincheiras que cavamos aqui e ali; antes que as diferenças se tornem irreconciliáveis. Que reconheçamos que a gente gosta do outro ‘apesar de’. Apesar de o outro ser chato de vez em quando. Apesar de o outro não ter o bom gosto de torcer pelo mesmo time que eu. Apesar dele não ter o meu bom senso político. É um exercício de convivência, porque só assim, quem sabe, o outro vá gostar da gente também. Apesar de todos os nossos vícios, sucessos, perfeições, escolhas erradas e pieguices em geral. Que 2015 seja um ano de mais tolerância, jogo de cintura e amor nas relações. Sejam elas quais forem.
Paz e
felicidade para 2015!
Você tem razão, temos de nos lembrar que ninguém é perfeito -- e nós mesmos, menos ainda. Mas as sementes da intolerância vêm de cima, na base do "dividir para conquistar", e isso é ainda mais difícil de "desarraigar". De qualquer forma, espero que o meu pessimismo seja derrotado. Amém.
ResponderExcluirQue seu ano novo seja muito feliz, Vicente.
ExcluirMuito bom como sempre, Duda! Feliz Natal e um ótimo ano!
ResponderExcluirObrigada, Andre. Que 2015 seja bom demais da conta.
ExcluirAmei sua crônica: leve, bem escrita e faz a gente pensar! Vou copiar seu último parágrafo... um feliz 2015 pra vc!
ResponderExcluirObrigada, Luciana.
ExcluirAdorei seu carro ecológico! Na minha próxima ida levarei minhas fitas k-7. :o)) E xô iogurte azedo! Brilhou Dudinha, as always!
ResponderExcluirSua fã de carteirinha. Bjus.
Varda, venha me ver. Prometo que te levo para dar uma volta de vintage. Bjs.
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