quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Para sempre e Para todos

 

‘Se é verdade que os esquimós têm dezenas de palavras para a cor branca, os brasileiros devem ter centenas de palavras para a cor verde’. A frase inspirada é de um amigo; um escocês maravilhado pelo Parque Nacional do Iguaçu. Tive uma lua-de-mel no mínimo atípica. Eu, o marido e outros nove gringos de brinde. Incluindo sogra e sogro. Todos ficaram de queixo caído com a exuberância da natureza no Brasil. 

Outro amigo, desta vez um brasileiro em Londres, também se surpreendeu com a natureza. Ao chegar ao Wimbledon Common, ele disse abismado: ‘Tá de brincadeira? É isso? Tem gente que vem passar o dia aqui e fazer piquenique? Só tem mato!’ Wimbledon Common é uma área de reserva natural de 460 hectares, que se espalha por três bairros ao sul de Londres. Um deles é o elegante Wimbledon, o mesmo do torneio de tênis. A parte do parque, que fica próxima à vilinha de Wimbledon, é coberta de ‘meadow’. Prado em português. No dia em que meu amigo se assombrou, a vegetação estava particularmente seca, capim tostado. 

Li uma vez que no hemisfério norte, quanto mais ao norte, mais as pessoas são contemplativas. A julgar pelos programas de jardinagem e de natureza que a BBC faz como ninguém, deve ser verdade. Onde a gente vê capim seco, eles veem folhagens de diferentes formatos, tamanhos e tonalidades; o movimento provocado pelo vento e até pequenos insetos. O pai de outro amigo brasileiro veio passear por aqui. Aos oitenta e alguns anos, ele ficou besta com os ingleses, que constroem em seus jardins ‘hotéis' para insetos. ‘ No Brasil a gente peleja para se livrar deles’.

Nymans - National Trust


Talvez essa tendência dos ingleses à contemplação seja um dos ingredientes do sucesso do National Trust, uma organização conservacionista, que existe na Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte. O National Trust é o maior proprietário privado de terras nesses três países. São 2550 quilômetros quadrados de parques, jardins, fazendas, costa marinha, mansões, castelos, áreas industriais, urbanas e florestas. Paisagens de encher os olhos. O filme ‘ O mundo encantado de Beatrix Potter’ (2006) mostra alguns destes cenários. A autora e ilustradora do consagrado Peter Rabbit, um clássico da literatura infantil inglesa, doou 14 fazendas ao Trust. Graças a ela, um quarto da área do Lake District está preservada para as futuras gerações. A região dos lagos, quase na fronteira com a Escócia, atrai milhares de turistas pela beleza natural.
 

Peter Rabbit


Lake District
 
 

O National Trust é quase que um Estado dentro do Estado. Seus números são impressionantes: é a maior organização de caridade da Inglaterra, possui quatro milhões de membros, recebe duzentos milhões de visitantes por ano. O mais incrível, se sustenta sozinha, sem subsídios ou qualquer forma de ajuda financeira ou interferência do governo.  

O Trust foi fundado em 1895. No começo de sua história visava preservar as mansões e os castelos dos aristocratas e endinheirados em geral. Mas foi entre as Primeira e Segunda guerras que viveu seu período de maior expansão. Endividadas e sem condições de manter suas propriedades, muitas famílias doaram imóveis ao National Trust. Além disso, por causa do espírito conservacionista dos ingleses, o Trust recebeu, e ainda recebe, doações consideráveis de heranças.  

A brincadeira na minha família é dizer que as propriedades do National Trust são as nossas casas de fim-de-semana. Se o tempo não está de todo ruim, visitamos uma destas casas. A anuidade do National Trust custa cerca de trezentos reais para um casal com uma criança. Vale cada centavo. O Trust administra quinhentos locais de interesse. Mesmo sendo uma frequentadora assídua, não consegui visitar nem um terço destes lugares.
 
 
 

 

O National Trust está mais popular do que nunca. Principalmente porque não deixa a peteca cair. Seus projetos de conservação e restauração são primorosos. Eles sabem envolver a comunidade local e criar eventos sazonais. Celebram as colheitas, as festividades. São caminhadas na primavera, noites assombradas no outono, teatro ao ar livre no verão e cantigas de natal no inverno. Demonstrações de falcoaria, de culinária, de jardinagem, de lutas medievais e artesanato tradicional. Tem sempre um atrativo para o visitante.
 
 



O tempo nesta ilha é voluntarioso. Chove um bocado, o céu vive cinza e no inverno às quatro da tarde já é noite. Mesmo assim, os ingleses têm paixão pelos ‘great outdoors’, ficar ao ar livre. Quem sabe essa preferência seja exatamente por causa do clima instável. O fato é que o visitante de hoje do National Trust está mais interessado em passar  mais tempo nos jardins e campos do que nas casas e mansões. O problema é que se essa tendência se confirmar, as novas gerações podem não querer investir na preservação das construções históricas, algumas delas com mais de 500 anos de existência. Para evitar que esse trem se descarrilhe, o National Trust está mudando sua estratégia. Está se modernizando para sobreviver.
 

 

 
Arranjo do Jubileu da Rainha

 
 

Há quase dez anos, quando comecei a frequentar o National Trust, várias áreas das casas abertas ao público tinham acesso restrito, muitas vezes com cordas, para evitar que o visitante tocasse nos objetos ou estragasse o piso. Hoje em dia isso mudou um pouco. Eles claramente tentam criar uma nova geração de amantes da preservação. As atividades para  crianças estão cada vez mais comuns. São caça tesouros escondidos nas salas e outros desafios, que são premiados com pequenas recompensas. Mas não é só isso. O National Trust comprou a casa onde o Beatle Lennon passou sua infância, por causa de sua relevância cultural. Sabe aquele ‘faz de conta que a casa é sua’? Pois é, em outro projeto ambicioso toda a mobília original de uma casa histórica foi  substituída por móveis modernos. O visitante pode assentar, ler e desfrutar da casa, como se fosse realmente dele. 
 

De tempos em tempos, o National Trust manda boletins informativos para seus membros. Informam sobre projetos e a programação local. Uma vez por ano chega uma revista.Os anúncios da revista são direcionados para um público muito mais velho.  São aparelhos de surdez, excursões sob medida para aposentados e cobertores. Os anúncios dão uma pista sobre seu alvo. Sem falar que o  National Trust não quer desprezar os aposentados. Eles têm tempo e dinheiro e são potencialmente doadores de heranças. Na outra ponta, é notável o investimento nas futuras gerações com novos playgrounds e o ‘geocaching’, a caça ao tesouro mais bacana que existe.  

 
 
GPS com coordenadas


 
O National Trust empresta aos visitantes um GPS e um mapa com as coordenadas. Escondidas dentro de troncos de árvores e debaixo de pedras, estão caixinhas com ‘tesouros’ e um pedaço de papel para o explorador escrever seu nome, tipo um ‘fulano passou por aqui’. As regras são simples: o aventureiro só pode recolher o tesouro, se deixar outro no lugar para o próximo explorador. Pode ser uma bala, um balão de festa, um brinquedinho de plástico. Vale qualquer coisa, só não vale tirar um tesouro e não deixar nada em troca. Espalhamos algumas moedinhas de reais por aqui. A outra regra é que as caixinhas devem ser colocadas no mesmo lugar em que foram encontradas. Fizemos uma dessas caças ao tesouro com uma italiana. Ela custou a acreditar que as pessoas realmente cumpriam as regras.
 

Caça ao tesouro
 

O National Trust é um exemplo clássico de uma das coisas que mais aprecio no British Way of Life*. É uma das maiores organizações de caridade do mundo. Sobrevive e funciona tão bem porque existe investimento do cidadão. Conta com setenta mil voluntários, cujo trabalho soma 3.77 milhões de horas, num valor estimado em cerca de 100 milhões de reais por ano. É a sociedade civil organizada para preservar os valores que considera importantes. Não é à toa que o lema do National Trust seja ‘ for ever, for everyone’. Para sempre, para  todos.
 
 
Trilha na floresta
 
 
 
 * Estilo de vida dos britânicos

 

2 comentários:

  1. Maravilha de texto, pra variar. (Grande novidade, em se tratando desta minha querida amiga Duda, que sabe como ninguém escrever com clareza e boniteza.) O post não só me traz muitas recordações da infância na roça como também mostra como um povo educado de verdade -- e não com insanas e maniqueístas louvaminhas a pretensos ídolos históricos "de esquerda" que têm enormes pés de barro, como no ensino oficial brasileiro atual -- aprende a apreciar e a valorizar o que de fato merece ser cultivado e preservado. Notável esse detalhe de o National Trust ser uma entidade privada, mais uma marca registrada de uma sociedade evoluída. Duda, o teu texto me remeteu ainda a lembranças do tempo em que vivi no Japão: aprendi com os nipônicos as delícias e valores da contemplação. Eles dizem que (mais ou menos como os ingleses) constroem jardins e áreas verdes para poder contemplá-las e desfrutar sua beleza, além de deixá-las como herança para futuras gerações. Belos exemplos, não é mesmo? Quem sabe daqui a uns 500 anos a gente chegue lá. Tks pelas imagens tão bonitas e pelo texto envolvente e saboroso.

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    1. Obrigada Vicente. Fico muito contente que tenha gostado. Um beijo.

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