‘Se é
verdade que os esquimós têm dezenas de palavras para a cor branca, os
brasileiros devem ter centenas de palavras para a cor verde’. A frase inspirada
é de um amigo; um escocês maravilhado pelo Parque Nacional do Iguaçu. Tive uma
lua-de-mel no mínimo atípica. Eu, o marido e outros nove gringos de brinde.
Incluindo sogra e sogro. Todos ficaram de queixo caído com a exuberância da
natureza no Brasil.
Outro amigo,
desta vez um brasileiro em Londres, também se surpreendeu com a natureza. Ao
chegar ao Wimbledon Common, ele disse abismado: ‘Tá de brincadeira? É isso? Tem
gente que vem passar o dia aqui e fazer piquenique? Só tem mato!’ Wimbledon
Common é uma área de reserva natural de 460 hectares, que se espalha por três
bairros ao sul de Londres. Um deles é o elegante Wimbledon, o mesmo do torneio
de tênis. A parte do parque, que fica próxima à vilinha de Wimbledon, é coberta
de ‘meadow’. Prado em português. No dia em que meu amigo se assombrou, a
vegetação estava particularmente seca, capim tostado.
Li uma vez
que no hemisfério norte, quanto mais ao norte, mais as pessoas são
contemplativas. A julgar pelos programas de jardinagem e de natureza que a BBC
faz como ninguém, deve ser verdade. Onde a gente vê capim seco, eles veem
folhagens de diferentes formatos, tamanhos e tonalidades; o movimento provocado pelo vento
e até pequenos insetos. O pai de outro amigo brasileiro veio passear por aqui. Aos
oitenta e alguns anos, ele ficou besta com os ingleses, que constroem em seus
jardins ‘hotéis' para insetos. ‘ No Brasil a gente peleja para se livrar
deles’.
Nymans - National Trust |
Talvez essa
tendência dos ingleses à contemplação seja um dos ingredientes do sucesso do National
Trust, uma organização conservacionista, que existe na Inglaterra, País
de Gales e Irlanda do Norte. O National Trust é o maior proprietário privado de
terras nesses três países. São 2550 quilômetros quadrados de parques, jardins, fazendas,
costa marinha, mansões, castelos, áreas industriais, urbanas e florestas. Paisagens
de encher os olhos. O filme ‘ O mundo encantado de Beatrix Potter’ (2006) mostra
alguns destes cenários. A autora e ilustradora do consagrado Peter Rabbit, um clássico
da literatura infantil inglesa, doou 14 fazendas ao Trust. Graças a ela, um
quarto da área do Lake District está preservada para as futuras gerações. A
região dos lagos, quase na fronteira com a Escócia, atrai milhares de turistas pela
beleza natural.
Peter Rabbit |
Lake District |
O National
Trust é quase que um Estado dentro do Estado. Seus números são impressionantes:
é a maior organização de caridade da Inglaterra, possui quatro milhões de
membros, recebe duzentos milhões de visitantes por ano. O mais incrível, se
sustenta sozinha, sem subsídios ou qualquer forma de ajuda financeira ou
interferência do governo.
O Trust foi
fundado em 1895. No começo de sua história visava preservar as mansões e os
castelos dos aristocratas e endinheirados em geral. Mas foi entre as Primeira e
Segunda guerras que viveu seu período de maior expansão. Endividadas e sem
condições de manter suas propriedades, muitas famílias doaram imóveis ao
National Trust. Além disso, por causa do espírito conservacionista dos
ingleses, o Trust recebeu, e ainda recebe, doações consideráveis de heranças.
A
brincadeira na minha família é dizer que as propriedades do National Trust são
as nossas casas de fim-de-semana. Se o tempo não está de todo ruim, visitamos
uma destas casas. A anuidade do National Trust custa cerca de trezentos reais
para um casal com uma criança. Vale cada centavo. O Trust administra
quinhentos locais de interesse. Mesmo sendo uma frequentadora assídua, não consegui visitar nem um terço destes lugares.
O National
Trust está mais popular do que nunca. Principalmente porque não deixa a peteca cair.
Seus projetos de conservação e restauração são primorosos. Eles sabem envolver
a comunidade local e criar eventos sazonais. Celebram as colheitas, as
festividades. São caminhadas na primavera, noites assombradas no outono, teatro
ao ar livre no verão e cantigas de natal no inverno. Demonstrações de falcoaria,
de culinária, de jardinagem, de lutas medievais e artesanato tradicional. Tem
sempre um atrativo para o visitante.
O tempo nesta ilha é voluntarioso. Chove um bocado, o céu vive cinza e no inverno às quatro da tarde já é noite. Mesmo assim, os ingleses têm paixão pelos ‘great outdoors’, ficar ao ar livre. Quem sabe essa preferência seja exatamente por causa do clima instável. O fato é que o visitante de hoje do National Trust está mais interessado em passar mais tempo nos jardins e campos do que nas casas e mansões. O problema é que se essa tendência se confirmar, as novas gerações podem não querer investir na preservação das construções históricas, algumas delas com mais de 500 anos de existência. Para evitar que esse trem se descarrilhe, o National Trust está mudando sua estratégia. Está se modernizando para sobreviver.
Arranjo do Jubileu da Rainha |
Há quase dez
anos, quando comecei a frequentar o National Trust, várias áreas das casas
abertas ao público tinham acesso restrito, muitas vezes com cordas, para evitar
que o visitante tocasse nos objetos ou estragasse o piso. Hoje em dia isso
mudou um pouco. Eles claramente tentam criar uma nova geração de amantes da preservação.
As atividades para crianças estão cada vez mais comuns. São caça tesouros
escondidos nas salas e outros desafios, que são premiados com pequenas recompensas. Mas não é só isso. O National Trust comprou a casa onde o Beatle Lennon passou sua
infância, por causa de sua relevância cultural. Sabe
aquele ‘faz de conta que a casa é sua’? Pois é, em outro projeto ambicioso toda a mobília
original de uma casa histórica foi substituída por móveis modernos. O visitante pode assentar, ler e desfrutar da casa, como se fosse realmente
dele.
De tempos em
tempos, o National Trust manda boletins informativos para seus membros. Informam
sobre projetos e a programação local. Uma vez por ano chega uma revista.Os anúncios da revista são direcionados para um público muito mais velho. São aparelhos de surdez, excursões sob medida
para aposentados e cobertores. Os anúncios dão uma pista sobre seu alvo. Sem falar que o National Trust não quer desprezar
os aposentados. Eles têm tempo e dinheiro e são potencialmente doadores de
heranças. Na outra ponta, é notável o investimento nas futuras gerações com
novos playgrounds e o ‘geocaching’, a caça ao tesouro mais bacana que existe.
GPS com coordenadas |
O National
Trust empresta aos visitantes um GPS e um mapa com as coordenadas. Escondidas
dentro de troncos de árvores e debaixo de pedras, estão caixinhas com ‘tesouros’
e um pedaço de papel para o explorador escrever seu nome, tipo um ‘fulano
passou por aqui’. As regras são simples: o aventureiro só pode recolher o
tesouro, se deixar outro no lugar para o próximo explorador. Pode ser uma bala,
um balão de festa, um brinquedinho de plástico. Vale qualquer coisa, só não vale
tirar um tesouro e não deixar nada em troca. Espalhamos algumas moedinhas de reais por aqui. A
outra regra é que as caixinhas devem ser colocadas no mesmo lugar em que foram
encontradas. Fizemos uma dessas caças ao tesouro com uma italiana. Ela custou a
acreditar que as pessoas realmente cumpriam as regras.
Caça ao tesouro |
O National Trust é um exemplo clássico de uma das coisas que mais aprecio no British Way of Life*. É uma das maiores organizações de caridade do mundo. Sobrevive e funciona tão bem porque existe investimento do cidadão. Conta com setenta mil voluntários, cujo trabalho soma 3.77 milhões de horas, num valor estimado em cerca de 100 milhões de reais por ano. É a sociedade civil organizada para preservar os valores que considera importantes. Não é à toa que o lema do National Trust seja ‘ for ever, for everyone’. Para sempre, para todos.
Trilha na floresta |
Maravilha de texto, pra variar. (Grande novidade, em se tratando desta minha querida amiga Duda, que sabe como ninguém escrever com clareza e boniteza.) O post não só me traz muitas recordações da infância na roça como também mostra como um povo educado de verdade -- e não com insanas e maniqueístas louvaminhas a pretensos ídolos históricos "de esquerda" que têm enormes pés de barro, como no ensino oficial brasileiro atual -- aprende a apreciar e a valorizar o que de fato merece ser cultivado e preservado. Notável esse detalhe de o National Trust ser uma entidade privada, mais uma marca registrada de uma sociedade evoluída. Duda, o teu texto me remeteu ainda a lembranças do tempo em que vivi no Japão: aprendi com os nipônicos as delícias e valores da contemplação. Eles dizem que (mais ou menos como os ingleses) constroem jardins e áreas verdes para poder contemplá-las e desfrutar sua beleza, além de deixá-las como herança para futuras gerações. Belos exemplos, não é mesmo? Quem sabe daqui a uns 500 anos a gente chegue lá. Tks pelas imagens tão bonitas e pelo texto envolvente e saboroso.
ResponderExcluirObrigada Vicente. Fico muito contente que tenha gostado. Um beijo.
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