sábado, 29 de novembro de 2014

Estado Babá X Estado Madrasta



Experimenta procurar uma tomada num banheiro inglês. Vai perder seu tempo. Tirando uma de formato especial para carregar o barbeador elétrico, não existem tomadas em banheiros por aqui. É ilegal. O dono da casa não ganha o habite-se e nem vende a propriedade, se tiver a tomada. Se algum acidente acontecer e ficar provado que tinha a ver com a tomada ilegal, o proprietário responde a um processo criminal. Por quê? Porque o Estado quer prevenir acidentes. O cidadão desavisado pode querer secar o cabelo e tomar um banho ao mesmo tempo e acabar virando torrada. 

Os pubs, como são chamados os bares ingleses, precisam de uma licença para vender bebida. A licença limita o horário de funcionamento do pub e determina a hora em que o estabelecimento deve fechar. O dono do pub toca um sino, dez, vinte minutos antes de encerrar a venda de álcool. Aí, meu amigo, é o estouro da boiada. Pavlov, se pudesse ver a cena, salivaria de prazer. Os frequentadores de pub reagem condicionadíssimos ao sinal. Correm para o balcão e compram tantos copos de cerveja, quantos eles conseguem carregar. Aqui não tem copo lagoinha para beber cerveja. Ela é servida em pints, um copão de mais de meio litro. 568,26 ml para ser exata. Os fregueses não se importam que a bebida não esteja gelada. Aliás, o conceito de bebida gelada é uma coisa que eles ainda não alcançaram. Tenho esperança de que um dia eles ainda cheguem lá. Enquanto isso, bebem e servem refrigerantes, sucos, água e cerveja em temperatura ambiente. Cheers!  

Além do desespero para comprar o último trago, a decisão de marcar hora para fechar os pubs provoca outro fenômeno tipicamente inglês: a hora do rush dos bebuns. Claro, né? Saem todos alegrinhos e altinhos na mesma hora. Por que não se pode ficar bebendo no pub à noite, em dia da semana, até a hora em que o freguês ou o dono do bar quiser? Porque o Estado quer combater o alcoolismo e os chamados comportamentos antissociais agressivos. 

Sabe qual é a última? A discussão de um projeto de lei que proíbe que se fume dentro de carros, que transportem crianças. Se a lei passar, o motorista não vai poder fumar dentro do próprio carro, se tiver uma criança presente. Fumar é proibido em lugares públicos fechados. Por quê? Porque o Estado quer proteger o pulmão do cidadão. *

Tomadas em banheiro, horário dos pubs e fumantes são apenas três itens de uma lista interminável de proibições e regulações que renderam ao Estado Britânico o apelido de ‘Nanny State’. O Estado babá. Cada um dos pontos listados acima é passível de debate. Não é nem preciso se esforçar muito para entender a motivação por trás deles. Mas é o papel do Estado? Até que ponto o Estado deve, ou pode se intrometer na vida do cidadão? Quem é que demarca esses limites? É excesso de controle público sobre o privado? O cidadão não seria capaz de fazer suas próprias escolhas? Que fim levou o bom senso? 

A filhinha de uma amiga estava balançando a cadeira para trás, perdeu o equilíbrio, caiu de costas e bateu a cabeça. Chorou, ganhou colo da mãe e passou o dia bem. À noite, começou a vomitar. Assustada, a mãe pensou que talvez fosse por causa da queda e a levou para o pronto socorro. Já era tarde, o plantão estava movimentado. Elas tiveram que esperar mais de duas horas para serem atendidas. A menina vomitando. Quando finalmente foram recebidas por um médico, ele perguntou o que tinha acontecido. Ouviu em silêncio e perguntou ao final da história:
- Que horas ela caiu? Você viu a queda?  

Minha amiga disse que havia sido pela manhã e que não tinha visto, porque a menina brincava no quintal, enquanto ela tinha ido à cozinha buscar qualquer coisa. Antes de examinar a criança, o médico disse que teria que acionar o serviço social. Por quê? Porque o acidente havia acontecido de manhã e a mãe só tinha levado a criança ao hospital à noite. Além disso, ela não tinha presenciado a queda. Você negou socorro a uma criança que ainda por cima estava desacompanhada!  Ele deu seu veredito à mãe atônita. Desnecessário dizer o estresse que a família passou. Quanto à menina, ela tinha sofrido uma indisposição estomacal. Mais nada. 

A cunhada de uma vizinha teve um bebê. Marinheira de primeira viagem. Feliz da vida. Quando o menino tinha poucas semanas de vida, ela notou um roxinho no rosto dele. Levou-o ao hospital. Eles fizeram uma tomografia de cabeça e encontraram uma pequena fratura. A criança foi imediatamente tirada da mãe. Um trauma enorme, ela ainda estava amamentando. Os pais recorreram e só puderam levar o bebê para casa, dois meses depois, porque a avó da criança se comprometeu a viver com a família e ser a guardiã do menino. A mãe não podia sequer carregar o bebê sem a presença da sogra. A família pediu uma revisão do processo. Negado. Os pais então contrataram um advogado, que pediu um parecer de outro médico. No fim das contas, o bebê não tinha fratura nenhuma na cabeça. O que aconteceu foi que, na hora do exame, ele se mexeu . O que parecia uma fratura, na verdade era um tremido na imagem. Apesar do erro, esta família está ‘fichada’ para sempre. A mãe vive apavorada que tomem seu filho novamente.

 
"Baby P"


Esse anjinho de olhos azuis escuros como a noite, morreu em 2007 aos 17 meses. Peter Connelly era o saco de pancadas da mãe, do namorado dela e do irmão do namorado. A autópsia revelou que o bebê tinha mais de 50 ferimentos pelo corpo. Durante a curta vida dessa criança, ela foi atendida inúmeras vezes por médicos e assistentes sociais. A mãe era uma mulher extremamente manipuladora, que se passava por uma pessoa amorosa. Quando o caso veio à tona, vários assistentes sociais, médicos e políticos foram desgraçados, escorraçados pela mídia e opinião pública. O caso Baby P, como ficou conhecido, mudou a cultura da assistência social neste país. 

No Reino Unido existe o ‘Children Act’ um conjunto de leis que visa salvaguardar a integridade das crianças. Se o Estado considerar que a criança está em risco, ela poderá ser colocada para adoção, mesmo sem o consentimento dos pais. São as chamadas adoções forçadas. Este tipo de adoção aumentou 20% entre 2013 e 2014. Em média cinco crianças são adotadas por este sistema todos os dias. 

Este modelo de intervenção radical é bancado por uma instituição de caridade chamada Barnardo’s, cuja missão é proteger crianças vítimas de violência doméstica. A Barnardo’s é a maior instituição de caridade de crianças, em termos do volume de capital que movimenta - cerca de 770 milhões de reais por ano.  


A instituição existe desde 1866. Foi criada por um irlandês chamado Thomas Barnardo. Seu trabalho começou dando abrigo e educação aos órfãos de um surto de cólera, numa área de Londres onde hoje em dia ficam os teatros de musicais. No ano de sua morte, 1905, a Barnardo’s cuidava de 8.500 crianças em 96 localidades. Suas boas ações, contudo, eram cercadas de polêmica. O irlandês foi acusado mais de uma vez de raptar as crianças. Ou seja, tirava-as à força das famílias, que ele achava inadequadas. Ele teria chegado ao extremo de ‘fabricar’ fotos destas crianças. Em estilo antes e depois. Ele fazia as crianças parecerem piores e mais sujas, nas fotos do ‘antes’. As fotos do ‘depois’ de sua intervenção eram bem melhores. Ele admitiu a farsa  e o uso de métodos agressivos, mas justificou: eram “abduções filantrópicas”. O jeitinho pedante de dizer que os fins justificam os meios.
 

Quase um século e meio depois, a Barnardo’s continua a defender o que eles chamam de intervenção drástica. A ideologia baseia-se em casos extremos como o de Peter Connelly. O argumento é que essas crianças têm que ser protegidas a qualquer custo e quanto antes elas forem separadas de suas famílias violentas ou negligentes, melhor para elas. Menor é o estrago. 

Esta ideologia é compartilhada por vários ‘Councils’ na Inglaterra. O Council é uma espécie de prefeitura. É responsável pelo serviço de assistência social às famílias e crianças. A questão é que a ‘construção’ dos casos que justificam as adoções forçadas fica a cargo dos assistentes sociais. Os critérios são subjetivos. Famílias, que lutam na Justiça para terem os filhos de volta, argumentam que muitas vezes os fatos são reais, mas são manipulados e retratados de uma maneira extremamente desfavorável.
O Children Act e a adoção forçada criam um cenário kafkaniano. Fornecem a justificativa legal para que crianças que ainda nem nasceram sejam postas para adoção, mesmo contra a vontade dos pais! Isso mesmo. Na prática, os pais são punidos por um crime que sequer cometeram. É o caso de um casal de adolescentes que fugiu da Inglaterra, para evitar que a criança fosse tirada deles depois do parto. A mãe da criança foi colocada em uma casa de acolhida, porque o Estado julgou que seus pais não tinham condições de criá-la. Aos dezenove anos, ela engravidou de um colega de sala. Os dois tiveram uma discussão quente. A polícia foi chamada. Como a moça já era figura conhecida do sistema, as luzes de alerta se acenderam e ela perdeu a guarda da criança, que carregava em seu ventre**. É bom deixar claro que esta é a versão apresentada pela moça e que não tive acesso ao processo, que determina a adoção forçada. Ou seja, só estou contando um lado da história.


O governo defende suas ações. Diz que nenhuma criança é afastada dos pais, sem que haja evidências claras e sólidas para que isso aconteça. É difícil comentar os casos, sem saber os detalhes. É fácil tirar conclusões apressadas e inflamadas. Se o trabalho tivesse sido bem feito no caso de Baby P, talvez o menino estivesse vivo. Ser assistente social nesta ilha é um trabalho arriscado. Os profissionais estão sofrendo uma pressão enorme do público e da mídia. Dados divulgados essa semana revelam que o número de crianças, que estão aos cuidados do Estado, é  o maior dos últimos vinte e cinco anos.  Fica a sensação de que algumas decisões são tomadas sem levar em conta o que é melhor para a criança e sim o que é mais seguro para as instituições.


A linha que separa o ‘Nanny State’, o Estado babá, de o que eu chamo de ‘Stepmother State’, o Estado madrasta, é  tênue demais para o meu gosto.




* A lei foi aprovada 

 ** Aqui vai o link de um especial sobre o tema, feito pela Rádio BBC 4: http://www.bbc.co.uk/programmes/b03pjf3z

 


  

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Para sempre e Para todos

 

‘Se é verdade que os esquimós têm dezenas de palavras para a cor branca, os brasileiros devem ter centenas de palavras para a cor verde’. A frase inspirada é de um amigo; um escocês maravilhado pelo Parque Nacional do Iguaçu. Tive uma lua-de-mel no mínimo atípica. Eu, o marido e outros nove gringos de brinde. Incluindo sogra e sogro. Todos ficaram de queixo caído com a exuberância da natureza no Brasil. 

Outro amigo, desta vez um brasileiro em Londres, também se surpreendeu com a natureza. Ao chegar ao Wimbledon Common, ele disse abismado: ‘Tá de brincadeira? É isso? Tem gente que vem passar o dia aqui e fazer piquenique? Só tem mato!’ Wimbledon Common é uma área de reserva natural de 460 hectares, que se espalha por três bairros ao sul de Londres. Um deles é o elegante Wimbledon, o mesmo do torneio de tênis. A parte do parque, que fica próxima à vilinha de Wimbledon, é coberta de ‘meadow’. Prado em português. No dia em que meu amigo se assombrou, a vegetação estava particularmente seca, capim tostado. 

Li uma vez que no hemisfério norte, quanto mais ao norte, mais as pessoas são contemplativas. A julgar pelos programas de jardinagem e de natureza que a BBC faz como ninguém, deve ser verdade. Onde a gente vê capim seco, eles veem folhagens de diferentes formatos, tamanhos e tonalidades; o movimento provocado pelo vento e até pequenos insetos. O pai de outro amigo brasileiro veio passear por aqui. Aos oitenta e alguns anos, ele ficou besta com os ingleses, que constroem em seus jardins ‘hotéis' para insetos. ‘ No Brasil a gente peleja para se livrar deles’.

Nymans - National Trust


Talvez essa tendência dos ingleses à contemplação seja um dos ingredientes do sucesso do National Trust, uma organização conservacionista, que existe na Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte. O National Trust é o maior proprietário privado de terras nesses três países. São 2550 quilômetros quadrados de parques, jardins, fazendas, costa marinha, mansões, castelos, áreas industriais, urbanas e florestas. Paisagens de encher os olhos. O filme ‘ O mundo encantado de Beatrix Potter’ (2006) mostra alguns destes cenários. A autora e ilustradora do consagrado Peter Rabbit, um clássico da literatura infantil inglesa, doou 14 fazendas ao Trust. Graças a ela, um quarto da área do Lake District está preservada para as futuras gerações. A região dos lagos, quase na fronteira com a Escócia, atrai milhares de turistas pela beleza natural.
 

Peter Rabbit


Lake District
 
 

O National Trust é quase que um Estado dentro do Estado. Seus números são impressionantes: é a maior organização de caridade da Inglaterra, possui quatro milhões de membros, recebe duzentos milhões de visitantes por ano. O mais incrível, se sustenta sozinha, sem subsídios ou qualquer forma de ajuda financeira ou interferência do governo.  

O Trust foi fundado em 1895. No começo de sua história visava preservar as mansões e os castelos dos aristocratas e endinheirados em geral. Mas foi entre as Primeira e Segunda guerras que viveu seu período de maior expansão. Endividadas e sem condições de manter suas propriedades, muitas famílias doaram imóveis ao National Trust. Além disso, por causa do espírito conservacionista dos ingleses, o Trust recebeu, e ainda recebe, doações consideráveis de heranças.  

A brincadeira na minha família é dizer que as propriedades do National Trust são as nossas casas de fim-de-semana. Se o tempo não está de todo ruim, visitamos uma destas casas. A anuidade do National Trust custa cerca de trezentos reais para um casal com uma criança. Vale cada centavo. O Trust administra quinhentos locais de interesse. Mesmo sendo uma frequentadora assídua, não consegui visitar nem um terço destes lugares.
 
 
 

 

O National Trust está mais popular do que nunca. Principalmente porque não deixa a peteca cair. Seus projetos de conservação e restauração são primorosos. Eles sabem envolver a comunidade local e criar eventos sazonais. Celebram as colheitas, as festividades. São caminhadas na primavera, noites assombradas no outono, teatro ao ar livre no verão e cantigas de natal no inverno. Demonstrações de falcoaria, de culinária, de jardinagem, de lutas medievais e artesanato tradicional. Tem sempre um atrativo para o visitante.
 
 



O tempo nesta ilha é voluntarioso. Chove um bocado, o céu vive cinza e no inverno às quatro da tarde já é noite. Mesmo assim, os ingleses têm paixão pelos ‘great outdoors’, ficar ao ar livre. Quem sabe essa preferência seja exatamente por causa do clima instável. O fato é que o visitante de hoje do National Trust está mais interessado em passar  mais tempo nos jardins e campos do que nas casas e mansões. O problema é que se essa tendência se confirmar, as novas gerações podem não querer investir na preservação das construções históricas, algumas delas com mais de 500 anos de existência. Para evitar que esse trem se descarrilhe, o National Trust está mudando sua estratégia. Está se modernizando para sobreviver.
 

 

 
Arranjo do Jubileu da Rainha

 
 

Há quase dez anos, quando comecei a frequentar o National Trust, várias áreas das casas abertas ao público tinham acesso restrito, muitas vezes com cordas, para evitar que o visitante tocasse nos objetos ou estragasse o piso. Hoje em dia isso mudou um pouco. Eles claramente tentam criar uma nova geração de amantes da preservação. As atividades para  crianças estão cada vez mais comuns. São caça tesouros escondidos nas salas e outros desafios, que são premiados com pequenas recompensas. Mas não é só isso. O National Trust comprou a casa onde o Beatle Lennon passou sua infância, por causa de sua relevância cultural. Sabe aquele ‘faz de conta que a casa é sua’? Pois é, em outro projeto ambicioso toda a mobília original de uma casa histórica foi  substituída por móveis modernos. O visitante pode assentar, ler e desfrutar da casa, como se fosse realmente dele. 
 

De tempos em tempos, o National Trust manda boletins informativos para seus membros. Informam sobre projetos e a programação local. Uma vez por ano chega uma revista.Os anúncios da revista são direcionados para um público muito mais velho.  São aparelhos de surdez, excursões sob medida para aposentados e cobertores. Os anúncios dão uma pista sobre seu alvo. Sem falar que o  National Trust não quer desprezar os aposentados. Eles têm tempo e dinheiro e são potencialmente doadores de heranças. Na outra ponta, é notável o investimento nas futuras gerações com novos playgrounds e o ‘geocaching’, a caça ao tesouro mais bacana que existe.  

 
 
GPS com coordenadas


 
O National Trust empresta aos visitantes um GPS e um mapa com as coordenadas. Escondidas dentro de troncos de árvores e debaixo de pedras, estão caixinhas com ‘tesouros’ e um pedaço de papel para o explorador escrever seu nome, tipo um ‘fulano passou por aqui’. As regras são simples: o aventureiro só pode recolher o tesouro, se deixar outro no lugar para o próximo explorador. Pode ser uma bala, um balão de festa, um brinquedinho de plástico. Vale qualquer coisa, só não vale tirar um tesouro e não deixar nada em troca. Espalhamos algumas moedinhas de reais por aqui. A outra regra é que as caixinhas devem ser colocadas no mesmo lugar em que foram encontradas. Fizemos uma dessas caças ao tesouro com uma italiana. Ela custou a acreditar que as pessoas realmente cumpriam as regras.
 

Caça ao tesouro
 

O National Trust é um exemplo clássico de uma das coisas que mais aprecio no British Way of Life*. É uma das maiores organizações de caridade do mundo. Sobrevive e funciona tão bem porque existe investimento do cidadão. Conta com setenta mil voluntários, cujo trabalho soma 3.77 milhões de horas, num valor estimado em cerca de 100 milhões de reais por ano. É a sociedade civil organizada para preservar os valores que considera importantes. Não é à toa que o lema do National Trust seja ‘ for ever, for everyone’. Para sempre, para  todos.
 
 
Trilha na floresta
 
 
 
 * Estilo de vida dos britânicos

 

domingo, 16 de novembro de 2014

Três Mulheres


Da Gaveta*

Se tem uma coisa que as inglesas não entendem é essa coisa de brasileiro ter empregada doméstica. Uma amiga daqui diz que é um absurdo que alguém limpe a sujeira que ela faz. Diz que é exploração. Toda vez que surge esse assunto, pergunto se é exploração pagar para alguém varrer as ruas, ou comer a comida que outra pessoa preparou num restaurante. Elas dizem que não e eu digo, qual é a diferença? É um trabalho. Não?

Já participei de jantares em que homens e mulheres comparavam notas sobre os melhores produtos de limpeza. Maior resultado e menor esforço é o nome do jogo. Todo mundo que eu conheço aqui lava, passa (muito raramente, diga-se de passagem) e cozinha. Se bem que muitas casas não tem sequer um fogão. É comum ver famílias que vivem de comida pronta, que elas esquentam no micro-ondas. Cada um que cuide de suas crianças, apare a grama e pinte as paredes. Esta é a terra do DIY** (faça você mesmo). Quem tem o luxo de ter uma arrumadeira por duas horinhas por semana, arruma a casa antes de ela chegar, que é para não dar vexame.

Recentemente li o livro ‘ The Help’, de Kathryn Stockett (que no Brasil foi lançado com o título de ‘A resposta’). A trama se passa no sul dos Estados Unidos na década de sessenta. Conta o drama das empregadas domésticas negras e suas patroas brancas. Num dos episódios narrados pela autora, as donas-de-casa  organizam um movimento para construírem banheiros para as empregadas, que não poderiam usar o mesmo vaso sanitário que as patroas. Soa familiar? Pois é, morri de vergonha dos nossos elevadores de serviço, onde são transportadas as domésticas, os cães e o lixo. O livro, as conversas sobre empregadas e a falta que sinto delas me fazem pensar nas mulheres que passaram pela minha casa e pela minha vida.
 
 

Quando morava em São Paulo, tive uma empregada chamada Edivalda. Edivalda era alto-astral, cheia de energia, alegre e muito competente no trabalho dela. Assim como milhares de outros nordestinos, ela migrou para o sul ainda mocinha, levada por parentes. Chegou a São Paulo aos treze anos, cheia de medos e sonhos. Tinha um emprego arranjado na casa de uma família de libaneses, num bairro nobre da cidade. Ia ajudar a criar as crianças da casa. Aos dezessete, ela ficou grávida de um português amigo dos patrões. Um homem trinta e um anos mais velho do que ela. Assim que o menino nasceu, o patrão, que era médico, arranjou para ela ligar as trompas. Anos mais tarde, ainda trabalhando para os libaneses, ela se casou com outro homem. Até que um dia resolveu mudar e sabe-se lá porque, foi parar lá em casa.

 Edivalda era esperta, dava conta do recado rapidinho, saía da minha casa e ainda ia fazer faxina em outras casas. O filho Bruno, de onze anos, tinha aparelho nos dentes e fazia um curso de inglês, que ela se esforçava para pagar. No fim do dia, Edivalda pegava dois ônibus e ia para casa com o menino, lavar, passar e cozinhar para a família, antes de ir para um curso supletivo. Ela queria terminar o primeiro grau. “Já imaginou, o Bruno falando inglês e tudo e eu sem saber nada? Ele vai ficar com vergonha de mim e vai acabar indo embora. Eu não quero perder  meu filho”, ela me contou um dia. Edivalda tinha suas prioridades definidas direitinho. Nos fins-de-semana, ela trabalhava num mutirão para construir o apartamento, que seria dela um dia. O marido, muito chique, não podia ir misturar cimento e carregar tijolo porque, segundo ela, ele tinha diploma. O plano era sair do aluguel e poder realizar o próximo sonho: juntar dinheiro para reverter a laqueadura e ter outro filho.

Edivalda trabalhou para mim durante dois anos. Ela tinha o hábito de me ligar bem na hora do fechamento do jornal, quando eu estava correndo para terminar as matérias. Na pior hora possível, me perguntava o que fazer para o almoço. Como ela continuava a se referir à ex-empregadora como ‘minha patroa’, um dia eu disse para ela ligar para a patroa, ver o que ia ter de almoço na casa dela e fazer o mesmo. Bad move***. Não passou muito tempo e ela pediu as contas. Resolveu voltar a trabalhar para a patroa.

Saiu Edivalda e entrou sua antítese, Marialva. Pequenininha, franzina e arredia. Quase não falava, não fazia barulho e andava pela casa como se já não habitasse esse planeta.  Quando eu disse que iria assinar a carteira dela, ela disse que não queria porque já estava aposentada. Aposentada? Como assim? “Pobremas da mente” ela disse. Para falar a verdade, não fiquei muito confortável tendo uma pessoa com problemas mentais dentro de casa, mas ela foi ficando. Em doses homeopáticas sua narrativa começava a se desenhar, sem pressa, como Marialva. 
 

Marialva também havia saído do Nordeste. Chegou a São Paulo acompanhada do primo Joaci, da mesma idade dela. Os dois se conheciam desde sempre e estavam noivos. O começo foi difícil. Passaram frio e fome. O dinheiro nunca dava, mas eles foram se arranjando. Ela ficou grávida, o bebê nasceu morto. Depois teve outro, que morreu com poucas semanas de vida. Ela queria muito ser mãe. Vieram dois meninos e duas meninas. Eles conseguiram comprar um apartamento em Carapicuíba e a vida parecia ajeitada. Foi então que o filho mais velho, de dez anos, começou a reclamar de dores na perna. Ela o levou ao posto de saúde várias vezes para sempre ouvir a mesma resposta: ‘É dor de crescimento, minha senhora’. A tal dor de crescimento foi só piorando e ele teve que ser internado. Tinha câncer nos ossos. Viveu só três meses. Foi quando Marialva teve o “pobrema da mente”.  

Apesar de caladinha, Marialva era uma dessas mães do mundo, que achou que tinha que cuidar de mim. Quando me mudei de casa e fui passar o carnaval fora, ela foi até a minha casa nova com o marido e juntos consertaram tudo o que precisava de reparos no apartamento. Na volta do feriado, encontrei a casa um brinco e fiquei muito comovida com a generosidade deles. 

 Depois de um tempo, Marialva avisou que ia embora com a família. Eles iam para Minas, porque o segundo filho estava escapando pelos dedos. Andava em más companhias. Ele já não era o mesmo desde a morte do irmão e eles tinham medo de que ele fosse preso ou assassinado. Anos depois fiquei sabendo que o rapaz havia sido preso em Minas, por tráfico de drogas. Na prisão, ele teria ficado doido. Quando foi solto, os pais se mudaram de novo, para cuidar melhor do filho. Longe das más companhias.


Marialva foi embora e deixou em seu lugar a Dulce. Dulce já era avó. Ela era uma senhora negra alta e extremamente elegante. Nunca teve educação formal, mas era dona de uma sabedoria admirável. Cada movimento seu gritava “eu tenho orgulho de ser quem sou”. Ela também era muito competente no trabalho e como as outras me deixou muito mal acostumada.


A vida de Dulce começou longe da capital paulista. Ela nunca entrou em detalhes, mas deu para perceber que ela tinha o dom de se relacionar com trastes, bêbados. Homens que abusavam dela. Homens que sumiam. Ela  contou que quando estava esperando a filha nascer, o pai da criança desapareceu. Ela se desesperou, sem ter como cuidar de dois filhos pequenos e grávida de outra criança. O desamparo foi tão grande, que um dia ela pegou os filhos e foi com eles para a estação de trem. Ia se jogar debaixo do trem e levar os filhos com ela. Chegando à estação, teve um ataque de nervos e ficou histérica. Foi levada com a família para um hospital. Dulce havia chegado à profundeza do abandono. Ela não sabia ainda, mas tinha molas nos pés. Assim que bateu no fundo do poço, começou a subir. No hospital, ela resolveu que nunca mais iria passar fome. Começou a frequentar as feiras livres e recolher as frutas e os legumes que os feirantes jogavam fora. Nunca levou os filhos junto com ela, que era ‘para eles não aprenderem a mendigar’. Dulce aprendeu a costurar e conseguiu vários empregos como empregada doméstica. Os três filhos concluíram o segundo grau e, para o orgulho dela, dividiam um carro zero quilômetro.

Ando pensando muito nestas mulheres sofridas e batalhadoras. Três mulheres tão diferentes e tão semelhantes ao mesmo tempo. Três mães empenhadas em suavizar o caminho dos filhos. Três mulheres a quem sou muito grata pela dedicação e generosidade.
 

(Novembro 2011)   

* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias ‘da gaveta’. São impressões de quando eu ainda era novata no Reino da Rainha.

** DIY – Do it yourself

***  Me dei mal.

 

domingo, 9 de novembro de 2014

Primeira Guerra Mundial cem anos depois


 
888.246 papoulas de cerâmica foram ‘plantadas’, por oito mil voluntários, ao redor da Torre de Londres, um dos mais famosos pontos turísticos da cidade. A instalação é um dos principais eventos para marcar o centenário da Primeira Guerra Mundial.  O ‘sangue varreu terras e mares' (tradução livre)  é de tirar o fôlego. Cada flor representa um militar britânico morto na guerra. Olhando para o ‘mar vermelho’ ao redor da torre, o visitante consegue visualizar o número de vidas perdidas. http://www.bbc.co.uk/news/in-pictures-29935592
 


O 'mar de sangue' contorna a torre


A obra do artista Paul Cummins e do cenógrafo Tom Piper começará a ser desmanchada no dia 12 de novembro. O prefeito de Londres e até o vice primeiro ministro insistiram para que a exibição fosse prolongada, mas não foram ouvidos. As papoulas estão à venda por 25 libras cada (cerca de cem reais). Parte do dinheiro arrecadado irá para instituições de caridade ligadas aos militares.
 

Novembro é um mês especial no calendário britânico, como mostra o ‘Da Gaveta’ abaixo.

Relembrar, relembrar

Da Gaveta*
 

Se algum dia voltar a viver no Brasil, vou sentir muita falta da mudança bem definida das estações e do ritmo que isso dá para minha vida. É delicioso ver as primeiras folhas brotando nos galhos pelados das árvores, que acordam na primavera. Sentir o prazer de ver as primeiras flores saírem da terra no quintal e descobrir que nem todas morreram no inverno. É ótimo poder sair sem casaco pesado no verão, admirar as luzes e o colorido do outono e me recolher no inverno. Deslumbrar-me na neve. O melhor é saber que tudo vai acabar e começar de novo, numa cadência reconfortante.  

Quem já morou aqui, ou veio passear na Inglaterra em novembro, sabe que quando as árvores perdem suas folhas, flores vermelhas de papel se materializam nas roupas. Os brochinhos são encontrados em milhares de pontos de venda. Praticamente toda loja tem um display. Os apresentadores de tevê, os políticos, caixas de supermercado, todo mundo entra nessa moda instantânea que todo novembro toma conta das ruas. Quase que dá vontade de usar um também, só para não me sentir com roupa de praia em dia de Oscar.  


Um dos muitos pontos de vendas

 

As papoulas fazem parte de uma campanha de caridade para arrecadar fundos para a Legião Britânica Real (Royal British Legion), para os heróis de guerra. Dá para imaginar o Brasil inteiro se mobilizando uma vez por ano para dar dinheiro para soldado? Dei uma olhada no http://www.poppy.org.uk/   e descobri que no ano de 2013, eles recolheram quase 35 milhões de libras em donativos. Isso dá por volta de 140 milhões de reais. Em 2014, a expectativa de arrecadação é de 42 milhões de libras.  

E aí chega a semana de relembrar. No décimo primeiro dia, do décimo primeiro mês, na décima primeira hora, o país faz um minuto de silêncio. Bem no coração de Londres, perto de onde moram a rainha e o primeiro ministro, tem um monumento, o Cenotaph. O nome vem do grego e significa túmulo do soldado desconhecido, embora o túmulo oficial do soldado desconhecido esteja em outro lugar também no centro. Vai entender...  
 
Quando o Big Ben bate as onze badaladas e o silêncio se veste de reverência, a rainha cumpre seu dever mais uma vez. Com expressão de respeito e contrição no rosto, ela segue o soturno ritual. Carrega nas mãos uma coroa de papoulas de papel vermelho, que deposita aos pés do monumento em homenagem aos que lutaram e aos que não viveram para contar a história. No cortejo vão também uns velhinhos, cada vez menos, bem caidinhos, de cadeira de rodas. São os veteranos da Segunda Guerra. O último combatente britânico da Primeira Guerra morreu em 2012. A cerimônia continua com toda pompa e circunstância; duas coisas que os ingleses fazem com maestria.  



Monumento aos mortos em guerras
 

O caráter belicoso dos britânicos me intriga. É um dos meus muitos “Palácios da Pena” particulares. O Palácio da Pena é uma construção rebuscada que fica em Sintra, em Portugal. Não consigo decidir se abomino ou se adoro. No fundo acho que é culpa da minha ignorância no assunto. Esse gosto-gozo britânico por guerra me deixa confusa. Os ingleses estão sempre em guerra em algum lugar do mundo. Não passou um ano sequer do século XX em que a Inglaterra não estivesse em guerra contra um ou outro país. É inegável que as duas grandes guerras do século passado tiveram um impacto profundo no jeito de pensar e viver desse povo.

 
Meu amigo Harry e a indefectível papoula 
 

No último onze de novembro, calhou de eu estar trabalhando na escola da minha filha. Nos colégios, o dia sempre começa com uma assembleia. Primeiro a diretora falou sobre o dia do armistício, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. Os alunos mais crescidinhos apresentaram uma encenação, vestidos de preto, vermelho e branco. A dança representava os soldados que tombaram, o preto. O vermelho simbolizava o sangue derramado e também as flores (daí as papoulas), que cobriam os campos onde aconteceram muitas batalhas. A paz em branco. A música funesta saía de violinos, que pequenas mãos manuseavam concentradas. Não havia nenhuma criança tossindo, se mexendo. Olhinhos colados naquele espetáculo de horrores e de introspecção. O ‘Grand Finale’ ficou a cargo de um menino de dez anos. Um toque de corneta, que a minha falta de conhecimento musical e militar não vai saber dizer como se chama, mas que a gente vê em filme, em enterro de soldado. 
 
Relembrando os mortos


Não faz muito tempo eu estava no trem, num daqueles bancos que fica de frente para outro banco. Bem na minha frente, havia um rapazinho de cabeça raspada. No colo dele, mochila militar e uma pasta cheia de material de exército que ele remexia como quem quer exibir alguma coisa. Mordi a isca e puxei assunto. Perguntei se ele era soldado. Com uma cara de semi-choro-e-petulância, ele me disse que tinha acabado de ser dispensado. Tinha um sopro do coração. Tive que me conter para não dar um abraço de parabéns no menino-soldadinho do coração partido. Queria dizer para ele que ele tinha sido muito sortudo e devia aproveitar esse presente que a vida havia lhe dado. Se eu fosse a mãe dele, teria ficado muito feliz com o cartão vermelho. Mas será que é assim que se pensa por aqui? 
 Nos anos 70 em plena Ditadura Militar, eu tinha que cantar o hino nacional debaixo de sol forte toda quarta-feira, sob o olhar pouco amistoso da diretora. Ela ameaçava, embora nunca tivesse cumprido, levar lá na frente para cantar sozinho quem não cantasse o hino. Foi naquela época que aprimorei a técnica de mexer a boca sem emitir som algum. Fico encafifada quando vejo multidões nas ruas de vilarejos ingleses recebendo, de bandeirinhas em punho, os soldados que voltam da guerra. Os vivos e os mortos. É verdade que na chamada “modern war” as baixas são muito menores. Nada comparado às perdas da Primeira e Segunda guerras. Ainda assim, do mesmo jeito que a gente vê na tevê brasileira notícias sobre arrastões, a tevê aqui mostra a foto de um soldado morto numa emboscada meio do caminho. Sempre aparece um pai ou uma mãe para ler uma declaração que, sem muita variação, diz: “estamos muito orgulhosos do nosso filho que morreu defendendo seu país; John-George-William-Philip adorava o que fazia”. Pelo olhar desconsolado do meu companheiro de metrô, eles devem mesmo gostar da testosterona da guerra. Mas os pais? Os que ficam? Palácio da Pena total na minha cabeça. 


Coroas de papoulas

Acabei de ler um livro agradável, gostoso de ler. Em português chama-se “Assando bolos em Kigali”. É sobre uma confeiteira em Ruanda que pede aos clientes que contem suas histórias, para juntos eles decidirem o formato do bolo. Tem uma passagem em que uma das personagens vai visitar uma escola onde aconteceu um massacre sangrento. Os corpos ainda estão insepultos, cobertos de cal. A personagem escreve no livro de visitantes, “Nunca mais!”, para depois refletir sobre quantas vezes, em quantas situações essa frase foi repetida e a violência das guerras não termina nunca.  

 O espírito belicoso dos britânicos me confunde, me incomoda e me faz pensar. Talvez seja mesmo necessário tocar música fúnebre e falar de mortes em massa na escola primária. 
(Novembro/ 2013)
 

* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias ‘da gaveta’ São impressões de quando eu ainda era novata no Reino da Rainha.


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Lei de Imprensa na Ilha


William e Catherine foram passear na Provence. Ficar num 'dolce far niente' no casão de um amigo. Até aí, nada de mais. Não fosse pelo fato de eles serem o Duque e a Duquesa herdeiros do trono britânico, de ela ter se bronzeado nua da cintura para cima e de um paparazzi espertalhão ter tirado fotos indiscretas. As imagens, quem não se lembra, saíram em jornais e revistas de fofocas ao redor do globo. Foram publicadas quase no mundo todo. Quase.

 No Reino Unido, a mídia não publicou uma foto sequer do topless de Kate. Anos antes, o episódio da morte da sogra, perseguida por paparazzi pelas ruas de Paris, caiu muito mal para a imprensa por aqui. O Buckingham Palace e a Imprensa firmaram então um trato para preservar a imagem dos meninos William e Harry, que cresceram ressabiados com a mídia, para dizer o mínimo. O fuxico do banho de sol aconteceu quando os jornais estavam no olho do furacão de um escândalo da mídia nacional. Por isso, e porque ninguém quis se arriscar a ter que lidar com indenizações milionárias, as fotos jamais foram publicadas nesta ilha.

 Todo o mal-estar midiático causado pelo episódio da morte de Diana fez a realeza investir pesado em relações públicas. Como moeda de troca, a mídia recebe uma ocasional entrevista com um membro da família real, fotos ‘de família’ como as do noivado do século e do bebê real. E o direito do público de ser informado? Os mamilos da duquesa são realmente de interesse público? Get a life!*

Uma coisa que me chamou a atenção, logo que vim morar na Inglaterra, foi como a cobertura policial era sem graça. Os jornais passavam dias e dias repetindo as mesmas informações de uma história quente. É que por aqui nenhum detalhe de um crime sai nos jornais até que o caso seja julgado. A medida visa evitar que as notícias ‘melem’ o julgamento, influenciem a opinião dos jurados e atrapalhem as investigações. Um exemplo de um caso recente: um casal matou os pais da esposa. Os velhinhos foram enterrados no quintal da casa deles, debaixo do nariz de um investigador de polícia. Ninguém soube do caso, ninguém deu falta dos dois, até que quinze anos mais tarde a farsa foi revelada. Logo que os corpos foram descobertos, a única coisa que saiu nos jornais foi que um casal havia sido preso, suspeito de assassinato e que os corpos estavam enterrados no quintal. Mais nada. Depois do julgamento, liberou geral. Cada detalhe mórbido da trama foi revelado exaustivamente pela mídia, com mais ou menos destaque, dependendo do veículo em que foram publicados.
 
 

Nos filmes americanos de tribunais, volta e meia alguém apela para a Primeira Emenda Constitucional, que garante o direito de expressão. No Reino Unido isso não acontece, simplesmente porque o país faz parte de um grupo muito seleto de países onde não existe uma constituição escrita. O que existem por aqui são leis históricas, algumas muito antigas como a Magna Carta, que foi assinada na Idade Média, quase trezentos anos antes dos portugueses içarem suas velas rumo ao Brasil e que vale até hoje.

Além das leis históricas, também chamadas de leis comuns, existem as ‘Royal Charter’. Não, não se trata de aviões fretados para levar membros da família real em excursões para a Disney. Esse charter é outro. ‘Royal Charter’, para nós Carta Régia, nada mais é do que é um documento formal emitido por um monarca, concedendo um direito ou poder a um indivíduo ou uma instituição, por exemplo. Em sua história, a monarquia britânica emitiu mais de 980 cartas régias. Cerca de 750 ainda estão em vigor.

Acompanhei, na escola onde trabalho como voluntária, crianças do terceiro ano primário discutirem com paixão os termos de uma ‘Carta Régia’ com as regras de conduta, que elas achavam importantes. Trinta e dois meninos e meninas de sete e oito anos concordaram que: Primeiro; não se deve falar palavrão. Segundo; não se pode empurrar o colega no playground. Terceiro; nada de cuspir no outro. Quarto; todos devem ter a chance de jogar futebol no recreio, mesmo os mais perebas. A lista tinha outros seis itens, igualmente relevantes para eles. Assim que ficou pronta, a Carta foi impressa. Todos assinaram embaixo e ela foi pregada na parede, no caso de alguém esquecer um item importante. A Carta não transformou as crianças em anjinhos de um dia para o outro. Mas cada vez que uma das regras era quebrada, o injustiçado recorria a ela para reclamar seus direitos. Tá acompanhando a analogia?


 

No ano passado, depois de muita discussão e de muita pressão, uma nova Carta Régia saiu do forno. Para quê? Para autorregular a imprensa. O que levou a Rainha a selar o documento foi um inquérito que investigou o chamado ‘Escândalo dos telefones hackeados’, que sacodiu os alicerces de ‘Fleet Street’, tradicional rua das empresas jornalísticas.

A história começou quando se descobriu que jornalistas do extinto ‘News of the World’ contratavam detetives particulares para invadir eletronicamente os telefones de celebridades, políticos e membros da família real, a fim de conseguirem histórias exclusivas e, de preferência, escabrosas. Além disso, policiais também foram subornados, para que passassem informações confidenciais ao jornal. O ator Hugh Grant, J.K Rowling, a autora de Harry Potter, a modelo Elle Macpherson e o ex-presidente da Fórmula Um, Max Mosley foram algumas das vítimas famosas do jornalismo inescrupuloso do tabloide sensacionalista.

O escândalo ganhou proporções ainda maiores depois que as investigações revelaram que membros do público, como os pais da menina Madeleine, que desapareceu em Portugal, também foram investigados ilegalmente. A opinião pública se revoltou quando veio à tona que o celular da adolescente Milly Dowler havia sido hackeado. Milly morreu nas mãos de um pedófilo em 2002. O investigador, que invadiu o telefone da menina, apagou todas as mensagens gravadas - o que levou a família dela e a polícia a acreditarem que ela ainda estava viva, quando na verdade, se descobriu mais tarde, Milly já estava morta. Além da família Dowler, famílias de vítimas dos ataques terroristas em Londres em 2005 e familiares de soldados mortos no Afeganistão também tiveram suas conversas particulares invadidas de forma indevida. No vale tudo pela notícia que vende mais, os fins justificaram os meios.

A maior baixaria da impressa britânica gerou o Leveson Enquiry, um inquérito batizado com o nome do juiz que o conduziu. O gigante da mídia Rupert Murdoch, proprietário do ‘News of the World’, virou, de um dia para o outro, o vilão mais odiado de Gotham City. Suas empresas tiveram que pagar milhões de libras em indenizações às vítimas, em inúmeros processos criminais. Boicotado por seus anunciantes, o tabloide encerrou suas atividades depois de 168 anos de existência. Vários executivos da corporação de Murdoch receberam um chute no traseiro. O comissário da Metropolitan Police de Londres foi ‘saído’ do cargo e jornalistas tiveram que responder a processos criminais. O editor-chefe Andy Coulson foi condenado a 18 meses de prisão.

 
 

Depois de ouvir evidências durante oito meses e de custar ao contribuinte quase seis milhões de libras, o inquérito concluiu que a ação criminosa da mídia teve um efeito devastador na vida das vítimas. Estava pavimentado o caminho para a Carta-Régia. A regulação da imprensa, entre outros motivos, foi uma resposta à pressão popular. É óbvio que a mídia esperneou. Argumentou que as regras comprometiam a independência da imprensa e seu direito de informar o público. Duas ações no Tribunal Superior fracassaram na tentativa de evitar e de modificar o texto do documento.

A Carta cria um painel regulador das atividades da mídia com poder de emitir multas de até um milhão de libras e exigir retratação imediata. Simplificando, o painel é formado por membros do público, advogados e representantes do setor financeiro. Não pode ter em seus quadros: políticos, funcionários públicos, nem editores e jornalistas (na ativa ou aposentados). A ação se dá em três frentes: a que recebe as queixas, a que faz a arbitragem e a que cria códigos de conduta.

Como as crianças do terceiro ano, os jornais e revistas também podem escolher se querem ou não se inscrever para o novo sistema de regulação. Alguns já disseram que não vão assinar embaixo. Mas aqueles que ficarem de fora correm o risco de terem processos de difamação julgados pela justiça, sendo obrigados a arcar não só com as indenizações, mas também com os custos do processo, se o queixoso ganhar a causa.

A polêmica sobre a ‘lei’ de imprensa britânica ainda deve continuar. Contudo, nas palavras de Lord Leveson, ‘existe um elefante na sala’. Este paquiderme atende pelo nome de internet. São os blogueiros, tweeters e as mídias sociais, que transformam qualquer um em jornalista. Regular essa turma são outros quinhentos...

*Se liga!

domingo, 2 de novembro de 2014

Dadá na Selfridges

* Da Gaveta


Pouco depois de uma da tarde, começa o zum-zum-zum no setor de alimentação da loja de departamentos Selfridges. A quituteira Dadá veio direto da Bahia ensinar como preparar xinxim de galinha e caruru. Aos poucos os curiosos vão chegando e ela não tem pressa. Conversa com um e com outro num ritmo próprio e sorridente. Aparece uma inglesa e pergunta quando a aula vai começar. A intérprete passa a pergunta para Dadá, que responde com um ‘agorinha mesmo’. A inglesa quer mais exatidão na resposta e pergunta se agorinha é daqui a cinco, dez ou quinze minutos. Recebe outra resposta vaga e decide dar uma volta pela loja.

Quando Dadá acha que finalmente está na hora de começar, um senhor inglês garante seu espaço, bem no gargarejo, de frente para o fogão. Dadá vai falando, sorrindo ao mesmo tempo, gesticulando com graça e agradecendo à Selfridges, à Bahia de todos os santos e aos poucos o grupo vai engrossando.

Primeiro ela apresenta os ingredientes. Aparece uma galinha branca, empacotada e plastificada, parecendo vagamente com o que um dia deve ter sido um frango. Ela bate os braços, como se fossem asas, solta um cocoricó, no caso de alguém ter alguma dúvida de que aquilo era mesmo uma galinha. Ri da própria piada e diz que o inglês dela está melhorando... Depois vêm os temperos: a cebola roxa ‘que não pode faltar na culinária baiana’, o coentro, ‘que é o Viagra do pobre’ e por aí vai até chegar à descrição dos usos da salsinha no Candomblé. Ela se abana com o maço de folhinhas verdes e se benze. A intérprete olha atônita, se maldizendo por ter aceitado o trabalho. Diz sem graça que salsinha é bom para tomar banho. Os alunos, pasmos, olham tudo sem entender muita coisa.

Quando o ‘ensopado de galinha’, como dizem os ingleses, já está borbulhando na panela, a inglesa, que minutos antes queria saber quando a aula iria começar, volta e fica visivelmente decepcionada. Reclama que é a segunda vez que ela perde a demonstração. Parece que não foi desta vez que ela aprendeu sobre o ‘timing’ baiano. Anyway, ela diz dando os ombros, amanhã  tentarei novamente.

Dadá começa a receita do caruru explicando que as mães de gêmeos devem preparar a iguaria no dia vinte e sete de setembro e distribuir aos pobres, em homenagem a São Cosme e Damião. Depois ela ensina como escolher os quiabos, usando, mais uma vez, métodos de difícil compreensão para essa gente tão distante do Brasil. Ela diz que a cozinheira deve catar os quiabos de sete em sete, os mais bonitos, aqueles que terão mais energia e trarão mais coisas boas. Ensina como picar o quiabo e, enquanto o tempero é batido no liquidificador, ela interrompe a aula para me explicar que na verdade ela acredita mesmo é em Allan Kardec, que depois da aula vai fazer um pouco de yoga, meditar um pouquinho, mas que ela não pode deixar de falar do candomblé.  Afinal, ‘ com um céu tão bonito e tantas coisas boas, a gente não pode negar essas coisas’. Foi a demonstração mais explícita do sincretismo religioso brasileiro que eu já ouvi. Pena que meus colegas de curso perderam.

Dadá vai misturando a comida nas panelas e o público acostumado com fast food começa a ficar ansioso. Os alunos querem saber quanto tempo vai levar. Ela solta um ’cinco minutinhos’. Dez minutos depois, solta outro, até que diz que vai levar ‘umas meia hora’. Ela conta casos, dança e canta, enquanto a intérprete, pálida, exausta e vencida, joga a tolha e desiste de traduzir.

Alguém tinha pisado no fio e o fogão elétrico estava desligado. Dadá descobre então porque estava demorando tanto para cozinhar o caruru. Não se intimida e nem perde a pose. Liga o fogão e retoma as histórias de um lugar colorido chamado Bahia. Nesta altura, o senhor do gargarejo está mais do que impaciente. Fica repetindo para ela servir logo, senão a comida vai esfriar. Inglês tem pânico de comida fria. Eles colocam os pratos no forno, antes de servir o prato feito. Levar as travessas de comida e deixar cada um se servir, não rola por aqui. Ela sorri e diz que vai dar tudo certo. ‘Sempre dá’.

Quando finalmente chega a hora de provar a comida, o senhor inglês estende os braços e recebe um pratinho com arroz, caruru e xinxim de galinha. Ele sai da fila e vai para um cantinho. Põe a primeira colherada na boca e é a primeira vez que o vejo sorrir. Satisfeito, ele me dá uma discreta piscadela. Valeu a pena esperar.

(maio/ 2004)
 

* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias.  O Da Ilha também tem suas histórias ‘da gaveta’. São impressões de quando eu ainda era novata no Reino da Rainha.