sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Menor de idade e grávida




Minha filha tem duas amigas mais próximas na escola, ‘Daisy’ e ‘Elizabeth’. Resolvi mudar os nomes, por uma questão de privacidade. O pai de Daisy está desempregado. A mãe trabalha dois dias por semana numa loja. Eles dependem de uma ajuda do governo para fechar as contas no fim do mês e vivem num ‘council flat’, uma espécie de moradia social, subsidiada pela administração regional do bairro. A três quarteirões do prédio de Daisy, vive Elizabeth, numa casa avaliada em um milhão de libras (quatro milhões de reais). O bom é que ambas frequentam a mesma escola e são tratadas do mesmo jeito pelos professores e colegas.


 A avó de Daisy é um ano mais nova do que o pai de Elizabeth. Um fato que as meninas acham engraçadíssimo. Nem a avó de uma e nem o pai da outra são idosos, embora quando se tem dez anos, qualquer um com mais de trinta é velho.  As histórias dessas duas famílias são emblemáticas. Ilustram bem o que acontece por aqui e em muitos outros lugares. Nas regiões mais pobres, a gravidez na adolescência é maior do que em outras áreas, onde o número de casais que têm o primeiro filho perto dos quarenta anos é maior.


Desde que vim morar na Inglaterra, há mais de dez anos, escuto falar que a gravidez na adolescência é altíssima nesta ilha, porque as meninas ganham casa e são sustentadas pelo governo. Entretanto, uma notícia essa semana virou esse disco arranhado. Trouxe uma novidade: o número de jovens menores de dezoito anos, que engravidaram na Inglaterra e País de Gales, caiu pela metade nos últimos quinze anos. É o menor desde 1969, data do primeiro registro. As estatísticas, no entanto, revelam que a maior incidência de gravidez na adolescência ainda está concentrada nas áreas mais pobres do país.


A jornalista e comentarista Deborah Orr, do jornal ‘The Guardian’, que tem uma linha editorial mais de esquerda, credita a diminuição do número de adolescentes grávidas às mudanças na sociedade. Para ela, a versão de que as moças engravidavam de propósito, para serem sustentadas pelo Estado, é simplista e falha ao enxergar o contexto social. A jornalista argumenta que a discriminação que as mães solteiras sofriam caiu radicalmente depois da revolução sexual dos anos 70 e durante os anos 80. O que restou foi a ideia que estava na base do preconceito; a concepção de que o valor da mulher estava somente na maternidade e no lar. Principalmente para as moças pobres, com menos chances de conseguir um bom emprego, a maternidade era a única vida que elas vislumbravam. Então, por que adiar o inevitável?  Aos poucos, graças aos investimentos em educação, elas foram percebendo o ônus de uma gravidez precoce.


Educação é, de fato, uma palavra-chave. A queda do número de adolescentes grávidas coincide com um maior investimento nas meninas. Hoje em dia elas apresentam um desempenho escolar melhor do que os meninos em todas as áreas do conhecimento, incluindo as exatas. Existem várias teorias que tentam explicar este fenômeno. Uma delas é que a escola é um ambiente dominado pelas mulheres, a maior parte dos professores são mulheres. Os livros e o material didático favoreceriam as meninas. Outra tese é de que se criou a ideia de que os meninos não são tão bem sucedidos quanto as meninas, porque são agitados e não se concentram. Na opinião de um especialista em educação, esta ideia fatalista é determinante do fracasso escolar dos meninos, já que não se espera muito deles. Se o desempenho deles não é bom, é apenas mais uma profecia que se cumpre. Eles estão apenas seguindo um roteiro de expectativas.


Educação em geral parece ter tido um impacto positivo na redução de gravidez na adolescência, mas a educação sexual nas escolas merece um papel de destaque nesta história. O programa começa já com as crianças no jardim de infância. Tudo muito sutil, fala-se de amor e cuidados com o corpo. Faz parte do currículo e as crianças nem percebem. Nos três últimos anos da escola primária (crianças de 9,10 e 11 anos), as aulas se tornam mais óbvias. As crianças assistem a vídeos, apropriados para a idade delas. Um deles conta a história de um grupo de meninas e meninos que sai a procura do gato da família e acaba descobrindo que o gato era uma gata, que teve filhotinhos.  Depois eles visitam uma tia que está grávida. Aos poucos os vídeos introduzem questões como as mudanças corporais e preparam as crianças para a adolescência.


 Mas nem todos os pais estão de acordo com as aulas. Fui a uma reunião na escola, convocada para discutir o tema e mostrar um aperitivo dos vídeos. Quando o filme falou de masturbação feminina, sem mostrar nada explícito e sem dar nomes aos bois, uma das mães ficou irritada. Ela se mexia na cadeira, olhava para vizinha ao lado e balançava a cabeça como quem diz não. Assim que o professor perguntou se alguém tinha alguma pergunta, ela fez seu discurso. Disse que não autorizaria a presença da filha nas aulas e que isso não era assunto para escola.


Alguns anos atrás, o chefe-celebridade Jamie Oliver entrou numa campanha para melhorar a qualidade da merenda escolar. Ele estava preocupado com o que as crianças comiam na hora do almoço. Como não dá ponto sem nó, fez um documentário sobre o tema. As escolas, mostradas no programa, introduziram a merenda saudável e proibiram que as crianças levassem de casa alimentos açucarados e cheios de gordura saturada. Até hoje me lembro da cena de algumas mães jogando pacotes de batata frita e chocolates para os filhos por cima da cerca do pátio da escola. A mãe indignada da reunião de pais me fez pensar nas mulheres do documentário. Nos dois casos, elas fizeram o que achavam melhor para seus filhos. Se ao menos a ignorância protegesse nossas crianças...




Virtual Babies




Na escola secundária, a educação sexual é ainda mais presente. Muitas escolas introduzem o Bebê Virtual como parte do currículo.  São bonecas-robôs para que as meninas tenham a oportunidade de ‘praticar’ durante vinte e quatro horas. O bebê virtual chora pra burro, no meio da noite, no meio do dia, como um neném de verdade. A ‘mãe’ tem que trocar a fralda, acalmar o bebê, vesti-lo com a roupa apropriada para o clima e alimentá-lo. Ao contrário de um filho de verdade, o bebê virtual grava tudo. A adolescente e a escola recebem um relatório completo de como foram os cuidados. Além do bebê virtual, existe também um feto virtual, que simula a gravidez e outro bebê, que ao ser sacudido, mostra os danos provocados no cérebro. Tem também o bebê que já nasce viciado em drogas e álcool e sofre síndrome de abstinência e problemas neurológicos.




 
  







Não há como negar que os programas educativos tiveram um impacto na redução da gravidez na adolescência, mas a internet pode ter tido sua parcela de responsabilidade também. O doutor Philip Zimbardo é um dos psicólogos mais famosos do mundo. Na década de 70, conduziu um estudo sobre o comportamento de prisioneiros e carcereiros.  Com mais de 80 anos dirigiu seu olhar para a internet. Numa palestra do TED em 2011, ele avaliou o impacto da internet no comportamento dos adolescentes.



 





  A palestra é em inglês, mas a transcrição do texto em português está na http://www.ted.com/talks/zimchallenge?language=en 

  


Zimbardo parte da premissa de que os jovens passam tempo demais na internet. Estima-se que um típico rapaz de vinte um anos tenha passado dez mil horas de sua vida jogando videogame. E aí vai um dado ainda mais assustador: em média os adolescentes assistem a cinquenta vídeos pornográficos por semana. Ao contrário do vício das drogas, onde o viciado quer mais da mesma substância, o vício virtual cria um desejo constante por novidades. Aí é que mora o perigo. 


Vários estudos apontam para um novo fenômeno; o de rapazes que têm medo de intimidade, simplesmente porque, de tão acostumados com o mundo virtual, já não sabem como se comportar no mundo real. Não sabem a língua do cara a cara. Imagine juntar a falta de experiência com a expectativa criada pelos filmes pornôs numa cabeça cheia de hormônios pululantes. Com medo de falharem, esses adolescentes acabam adiando o início da vida sexual.

A pressão que a pornografia exerce sobre os adolescentes, de uma forma totalmente distorcida, acaba tendo um impacto na redução de gravidez na adolescência, porque as meninas estão namorando rapazes mais velhos, que são mais maduros quanto à contracepção e mais focados nos planos a longo prazo.


Com os rapazes da mesma idade fora do alcance, as moças passam muito tempo nas redes sociais. Vários tabus podem ter caído desde a revolução sexual, mas a menina namoradeira ainda hoje é taxada de galinha. No mundo virtual elas se vigiam o tempo todo e o caldeirão da fofoca borbulha como nunca. Elas têm que ser mais cuidadosas, porque o escândalo agora é mais público do que nunca e as consequências no grupo social são maiores.
  

Este papo todo de internet, mudanças na sociedade e educação é besteira, dizem os mais céticos. O que mudou realmente foi que o partido Conservador, no poder desde 2010, cortou a mamata das adolescentes. De fato, o partido Conservador tem cortado sistematicamente muitos benefícios sociais, como parte do plano para a retomada de crescimento da economia. Mas o interessante é que, mesmo durante o governo dos Trabalhistas, o número de gravidez na adolescência vinha caindo. Se esta tendência de queda se consolidar, quem sabe Daisy não vá repetir a história da mãe e da avó. Espero que sim. E tomara que o discurso de Patrícia Arquette, ao receber Oscar de melhor atriz coadjuvante, seja ouvido. Ela disse que está mais do que na hora das mulheres receberem os mesmos salários dos homens. Quem sabe assim, mais adolescentes adiem a maternidade, porque enxergam um futuro melhor.









terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Cortando gorduras

 



John é obeso. Não trabalha porque o excesso de peso o tornou incapaz. Ele vive de benefícios do governo. De acordo com estimativas do partido Conservador, atualmente no poder e em franca campanha para a reeleição em maio, John é apenas um de um grupo de cem mil pessoas que vivem à custa do governo por problemas de obesidade, ou porque são viciados em drogas e álcool. É justo que o contribuinte sustente essa turma?

 

O primeiro-ministro David Cameron acha que não. Anunciou esta semana que, se reeleito, vai cortar os benefícios de gordos e viciados, que recusarem tratamento para mudar de vida. Para que este post não fique longo demais, resolvi falar só do problema da obesidade. Então vamos lá.

 

A obesidade quadriplicou nos últimos vinte e cinco anos nesta ilha. Um em quatro adultos no Reino Unido é obeso e o pior é que não são só eles. O problema afeta uma em cada cinco crianças entre dez e onze anos. A previsão é de que no ano de 2020, um em cada três adultos será obeso. A situação é tão grave, que se diz agora que a gordura é o novo cigarro. O excesso de peso traz consequências péssimas para a saúde, aumenta o risco de diabetes do tipo dois, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer, como o de mama e o de intestino. Só a diabetes custa ao NHS (o Serviço Nacional de Saúde) nove bilhões de libras por ano de acordo com o Diabets UK, cerca de trinta e seis bilhões de reais. Estima-se que dos dois milhões e meio de cidadãos vivendo do seguro saúde, cerca de um milhão e meio receba o benefício por mais de cinco anos. Ao justificar seu plano, David Cameron argumenta que é um enorme desperdício de potencial humano.

 

Se o Primeiro-ministro vai cumprir o que anda falando, caso seja reeleito, ainda não sabemos. A oposição diz que isso é bravata de campanha para arrebanhar mais eleitores. Diz que o plano é típico dos conservadores elitistas e sua tendência de punir os mais pobres. A ideia de tentar resolver o problema da gordura onde dói mais, no bolso, é polêmica, mas não tem nada de original.

 

Em 2008, o Japão adotou uma política de redução da cintura, com o objetivo de eliminar gordura na população. Detalhe, apenas 3% dos japoneses eram obesos, mas os indicadores apontavam para um aumento significativo no número de gordos, caso o problema não fosse atacado de frente.

 

Ao contrário da maioria dos países desenvolvidos do lado de cá do globo, a sociedade japonesa é extremamente coletivista. Por isso mesmo, as penalidades não incorrem ao cidadão e sim às companhias e governos locais. Pela chamada Lei Metabo (de síndrome metabólica, que é como os japoneses chamam a obesidade), adultos entre 40 a 75 anos são pesados e as cinturas são medidas anualmente. A cintura dos homens não deve passar de 85 cm e das mulheres de 89 cm. Se falharem em atingir a meta, envergonham a comunidade local ou empresa onde trabalham, que têm de arcar com a multa. Se você, como eu, também se preocupou com os pobres lutadores de sumô, aí vai mais uma informação nipônica: a maioria deles se aposenta antes dos 40. Portanto, não tem desculpa.
 




Campanha japonesa

 




Quando foi lançada, a Metabo previa a redução dos índices de obesidade em 25% até o ano de 2015. Vai ser interessante verificar se funcionou ou não. O que se sabe até agora é que a lei provocou um aumento na venda de equipamentos de ginástica, de produtos que prometem perda de peso e de frequentadores de academias. Além disso, muitos japoneses aderiram às dietas malucas, nas semanas que precedem o exame.

 

Mas os ingleses não são japoneses e a sociedade aqui é muito diferente. Além do mais, não é a primeira vez que o Primeiro-ministro busca na carteira a solução do problema real que é a obesidade. Em 2011, David Cameron ameaçou introduzir o ‘Fat Tax’, o imposto gordura. A ideia de aumentar o imposto de produtos engordativos também não é inédita. Outro país, desta vez bem mais perto daqui, tentou uma estratégia semelhante. 


Em outubro de 2011, a Dinamarca introduziu o ‘imposto gordura’ para a manteiga, leite, queijo, pizza, carne, óleo e outros alimentos que contém mais de 2,3% de gordura saturada. Um ano depois a lei foi abolida. Ela falhou em mudar os hábitos alimentares dos dinamarqueses, que passaram a cruzar a fronteira para comprar produtos mais baratos, o que colocou muitos empregos locais em risco. A lei custou um enorme capital político ao governo. O então ministro da agricultura, alimentos e pesca declarou que o ‘imposto gordura’ foi a lei mais impopular que eles tiveram em muito tempo.

 

Resolver o problema da obesidade através de leis é polêmico, mas é necessário que o governo entre nesta batalha, argumentam os médicos britânicos. Em 2013, duzentos e vinte mil médicos se juntaram para demandar um imposto de 20% para os refrigerantes e outras bebidas açucaradas. E não foi só isso. Querem refeições mais frescas e saudáveis em hospitais, a proibição de lanchonetes fast food próximo às escolas, mais verba para combater a obesidade, proibição de anúncios de produtos que tenham alto teor de sal, gordura saturada e açúcar antes das nove da noite, além da introdução das ‘etiquetas semáforo’ nas embalagens. As etiquetas usam as cores, vermelho, laranja e verde para os índices de calorias, açúcar e sal. Verde é o mais saudável. Laranja para ser consumido eventualmente e vermelho, que deve ser evitado. A informação visual clara ajuda o consumidor a fazer suas escolhas.
 

 

 
Etiqueta 'semáforo'



 


O problema é que nem sempre é possível escolher. Sou do tipo que vai o supermercado comprar uma coisinha e sai com o carrinho cheio. Mas outro dia consegui me comportar. Saí de lá somente com o que fui comprar; uma pizza pronta e cebola. Quase caí para trás quando fui pagar pela compra. Um pacote com três cebolas custou quatro reais a mais do que o que paguei pela pizza marguerita. Alimento fresco neste país é caríssimo. Uma caixa de profiteroles recheados de creme e gordura hidrogenada é mais barato do que um pacote de maçãs, que é a fruta mais abundante por aqui. O que me deixa encafifada: o que é que tem nos alimentos processados que custa tão barato?  


Açúcar, muito açúcar é o que diz o endocrinologista Robert Lustig, especialista em obesidade infantil.  E o pior é que o diabo se apresenta com vários nomes: malte diastático, dextrano, maltose,  xarope de sorgo, fructose e glucose. Esses nomes esquisitos, segundo o médico, fazem parte de uma estratégia sem-vergonha da indústria de alimentos para enfiar açúcar goela abaixo do consumidor, sem ele saber o que está consumindo. Adoçar os alimentos faz com que eles fiquem mais apetitosos e durem mais, o que aumenta o tempo de prateleira. Peguei, ao acaso, seis produtos que tinha na dispensa. Todos continham muito açúcar, até o feijão com molho de tomate, que os ingleses comem no café da manhã.

 

 

 
Produtos açucarados





 

 
Em seu livro, Fat Chance, o doutor Lustig defende a ideia de que os governos deveriam realocar os subsídios destinados ao cultivo de milho e soja (indispensáveis para a indústria de alimentos processados) e focar mais no cultivo de outros legumes e verduras. Ele engrossa o grupo que defende uma sobretaxa para os produtos açucarados.
 

O problema é encontrar quem tenha vontade política de adotar as medidas que são extremamente impopulares. O próprio Primeiro-ministro já defendeu que se fixe um preço mínimo para bebidas alcóolicas, como uma das estratégias para diminuir o consumo exagerado do produto. Latiu, mas não mordeu. Em 2013, o governo voltou atrás e disse que não havia evidências sólidas de que a medida iria funcionar. No ano passado, entrou em vigor uma lei que não permite a venda de bebidas abaixo do preço de custo, foi o máximo que conseguiram. Na Columbia Britânica, uma província do Canadá, a política de preço mínimo foi adotada há mais de vinte anos e os resultados são inegáveis na redução do consumo de bebidas alcóolicas.

 

Fixar um preço mínimo para bebidas atinge o pobre mais do que o rico, certo?  Parece óbvio, mas é mais complexo do que isso. Um estudo publicado no ano passado pelo NHS diz que estabelecer um preço mínimo por unidade de álcool afeta positivamente os pacientes no grupo de risco em todas as classes socioeconômicas. E vai além: os consumidores mais pobres são menos afetados, porque consomem menos bebidas alcoólicas do que os mais ricos.
 

Voltando ao plano de David Cameron de cortar os benefícios dos obesos, que recusarem tratamento. Será que é uma boa? Realisticamente, quantas pessoas obesas fazem dieta e mantêm o peso ideal depois de dois anos? É tão fácil assim? Anunciar que vai cortar benefícios é mole. Enfrentar o lobby da indústria alimentícia e regular a quantidade de açúcar nos alimentos é briga de cachorro grande. Como sempre, parece que ir atrás do corrompido é uma saída mais simples. Penalizar os ‘sanguessugas’ da sociedade rende muito mais votos do que aumentar o imposto dos alimentos e cobrar da indústria seu papel de responsabilidade. Cabe ao Estado agradar ao eleitor, ou defender os interesses de seus cidadãos? 


Quanto ao argumento de que os obesos estariam ‘quebrando’ o sistema de saúde, aí vai um teste: entre um obeso, um fumante e uma pessoa saudável, qual deles custa mais para o NHS? Se você respondeu o último, acertou. Porque vive mais, o saudável acaba custando mais aos cofres públicos. O ponto é que nem tudo deve se resumir ao bolso.


Quase nada é tão simples como parece. 
 


  

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Três tons de voyeurismo




Ele deveria ter virado para a direita. Virou para esquerda. Encontrou uma serra no caminho e se desintegrou. Era o avião que transportava os rapazes da banda ‘Mamonas Assassinas’. O ano, 1996. O impacto da batida na Cantareira foi tão violento, que o Learjet se despedaçou. Quem estava dentro dele também.


Tragédia que é tragédia acontece quando é o plantão da gente. É assim que pensam os jornalistas. Naquele fim de semana de março, eu estava de plantão na tevê. ‘Pelados em Santos’ e ‘Robocop Gay’ não estavam exatamente entre os top 10 lá de casa, mas os meninos da banda de rock cômico eram simpáticos. E jovens. Estavam no auge do sucesso. A notícia da morte tão violenta foi um choque até para os mais cínicos.


De volta ao plantão. Respirei aliviada quando soube que um colega e, não eu, iria editar a matéria. Acompanhei o editor-chefe distribuir as reportagens do dia, como quem vê um jogo de roleta-russa. Não faço a menor ideia do que editei naquele fim-de-semana, mas não me esqueço do furor que a fita com as imagens brutas, sem edição, provocou na redação. O cinegrafista, sei lá por qual motivo, filmou sessenta minutos de pedaços de corpos espalhados pela mata. As imagens, ouvi dizer, fariam um professor de anatomia vomitar. O cameraman era experiente, ele sabia que as imagens jamais iriam ao ar, mesmo assim registrou tudo o que viu, como se a câmera fosse um escudo que protegesse seus olhos contra o horror ao seu redor.


Nos dias que se seguiram ao acidente, o editor de imagens, que havia copiado as piores cenas fazendo um ‘melhores momentos’ às avessas, ficou famoso na tevê. Tinha fila na ilha de edição dele. Vinha gente do departamento comercial, da segurança, da cozinha, da maquiagem. Todos interessados em ver a carnificina explícita. Uma demonstração sem pudor do voyeurismo mórbido. O mesmo que faz motoristas diminuírem a marcha do carro, para ver melhor o acidente na estrada.


‘Cinquenta tons de cinza’ estreia hoje na Inglaterra, em tempo para o dia dos namorados, que é comemorado no quatorze de fevereiro. A lotação dos cinemas para este fim-de-semana está esgotada. O filme é baseado num livro que tem o mesmo nome e que por aqui foi apelidado de ‘o pornô da mamãe’.






O corpo de bombeiros de Londres está se preparando para um final de semana agitado. Teme um aumento nas chamadas daqueles que, inspirados pelo filme, se atrapalhem com algemas e outros apetrechos sexuais. De abril de 2013 até hoje, atenderam a 393 pedidos de socorro do gênero. Em uma ocasião, receberam a ligação de uma mulher, cujo marido tinha ficado preso a um cinto de castidade. Em outras, foram resgatar homens e suas genitálias em perigo. Algumas presas em torradeiras, outras em aspiradores de pó. O que, convenhamos, deve ter rendido umas boas risadas na sede dos bombeiros.


Levantar lençóis e dar uma espiadinha lá embaixo faz sucesso e não é de hoje. Jorge Amado que o diga. O voyeurismo, que existe no leitor e no espectador, faz vender histórias. Desperta todo o tipo de desejo, os esperados e os de repulsa. Na pré-estreia do filme ontem no centro de Londres, um grupo não foi atrás de autógrafos dos astros de Hollywood. Foi protestar. Carregando cartazes indignados estavam profissionais, que atuam na linha de frente do combate à violência sexual. Para os manifestantes (na maioria mulheres), o filme promove a glamourização de um comportamento sexual perverso e incita à violência. Elas se dizem preocupadas principalmente com as jovens inexperientes, que passam a considerar o tipo de comportamento retratado no filme (e no livro) como sexy e romântico, expondo-as assim a situações de risco.


Na semana do ‘Cinquenta tons de cinza’ outra notícia passou quase batida: graças à Corte Criminal de Justiça a vingança pornográfica agora é crime na Inglaterra e País de Gales. As câmeras dos celulares nos tornaram viciados em registrar imagens. Não basta ir a um show, ou a um evento esportivo, temos que registrar e compartilhar e experiência. Antes se dizia que comemos primeiro com os olhos. Hoje comemos primeiro através da lente da câmera. Registramos um café na cama, os primeiros passos de nossos filhos e as gracinhas que eles fazem. A câmera está em todos os cômodos de nossas vidas. Incluindo o quarto.


Nossos olhos, cada vez mais acostumados a ver o mundo através de lentes e filtros, encontraram uma nova brincadeira. Alguns casais, principalmente os que cresceram íntimos da tecnologia, gostam de se filmar. Enquanto se trata de um jogo consentido entre as partes envolvidas, não é da conta de ninguém. O problema é quando uma parte não tem esportiva. Não aceita bem o fim de um relacionamento e deixa o bicho cabeludo da vingança tomar conta. Aí é só apertar um botão e, num instante, o que era privado vira público, muito público. As imagens são rapidamente capturadas por sites de pornografia e se reproduzem na internet mais rápido do que coelhos.

As mulheres são as maiores vítimas deste tipo de crime. Uma vez lá, é impossível retirar as imagens da rede. Li outro dia o caso de uma professora, que perdeu o emprego e não é mais empregável graças a uma vingança pornográfica. Toda vez em que ela pleiteia um emprego, o possível empregador pesquisa na internet e dá de cara com as imagens, que nunca deveriam ter saído do quarto.

http://www.bbc.co.uk/news/uk-31429026


A nova lei prevê que o responsável pela divulgação das imagens seja condenado a uma pena que pode chegar a dois anos de prisão. Os críticos dizem que se a polícia tiver recursos suficientes para investigar todos os casos, vai faltar lugar nas prisões. Recomendam que as pessoas devam ser educadas sobre o perigo de se exporem. Qualquer pai de criança pequena sabe que esta é uma tarefa difícil, nesta época em que o que é público e o que é privado é um conceito muito embaçado. As gracinhas de nossos filhos são públicas ou privadas? Como eles entendem esta diferenciação? Como nós entendemos os limites? Muitos de nós ainda não temos uma compreensão clara das implicações que a internet pode ter na vida de nossos filhos e nas nossas também.


Até outro dia, se alguém tivesse dito a palavra ‘selfie’, eu ia achar que se tratava de uma nova modalidade de restaurante ‘self service’. Hoje fazer essa piadinha pega até mal. Os ‘selfies’ estão aí e aqui. Em bares, festas, nascimentos, acidentes e até funerais. Não é mesmo, Mr Obama? Se o acidente dos Mamonas fosse hoje, as imagens, pra lá de explícitas, teriam sido capturadas por membros da equipe de resgate e curiosos.  Seriam compartilhadas exaustivamente na internet e meus colegas não precisariam fazer fila na ilha de edição.


No fim das contas, as imagens que registramos diariamente dizem muito mais sobre nós do que sobre o que retratamos. Na era do voyeurismo sem pudor, não dá para dormir no ponto.



domingo, 8 de fevereiro de 2015

Vacinar ou não vacinar?




Roald Dahl é um dos autores mais queridos da literatura inglesa com suas narrativas malucas, às vezes frias, mas sempre escritas de forma primorosa. Talvez você não ligue o nome à obra, mas duas das histórias que saíram de sua cabeça viraram filmes famosos, que provavelmente você assistiu, ou pelo menos já ouviu falar: ‘A fantástica fábrica de chocolate’ e ‘Matilda’. Os livros são uma belezura, muitas vezes têm um toque de humor negro e final inesperado. Seus vilões são horrorosos, como a terrível diretora da escola de Matilda. São livros que cativam a atenção das crianças, porque não tratam a criança como se ela fosse boba. Como criança não é nada boba, os livros fazem sucesso.

Dahl morreu em 1990. Deixou uma vasta obra que inclui romances, contos, poesia, peças de teatro, ensaios, roteiros para cinema, rádio e tevê, além dos livros infantis. Mas é um de seus textos, mais precisamente uma carta escrita em 1986, que os jornais resolveram desempoeirar essa semana. A carta é a mais nova arma daqueles que apelam para que os pais vacinem seus filhos.


Olivia, a filhinha mais velha de Dahl, morreu aos sete anos, vítima de sarampo em 1962. A doença tomou um rumo perigoso, provocou uma encefalite, que é uma inflamação aguda no cérebro. Dahl só conseguiu escrever sobre o assunto vinte e quatro anos após a morte da filha. Na carta escrita para uma publicação governamental da área de saúde, ele contou que a menina parecia estar se recuperando. Ele brincava com ela, quando reparou que ela estava perdendo a coordenação motora e parecia confusa. Olivia disse então que estava com muito sono. Uma hora depois estava inconsciente. Doze horas mais tarde, morta. Dahl não usou meias palavras quando falou de vacinas: ‘É quase um crime deixar sua criança sem imunização’, ele concluiu em sua carta.







Roald Dahl com a família


Por que mexer nessa história justo agora? Porque os Estados Unidos estão vivendo um surto de sarampo. Cento e dois casos parecem estar ligados à Disneylândia, onde os pacientes teriam sido contaminados por outros visitantes. Este é apenas o surto mais recente. No ano passado foram 644 casos confirmados. O triste é que no ano dois mil, os americanos haviam anunciado que a doença estava erradicada nos Estados Unidos.


Sarampo é uma doença viral altamente contagiosa. Nos países ricos, mata um em cada cinco mil pacientes. É bem mais letal nos países mais pobres, onde um em cada cem morre. Muitos pacientes sofrem sequelas para o resto da vida. Para se erradicar a doença, pelo menos 95% da população deve ser vacinada.


Toda comoção e atenção que a mídia dá ao assunto no momento nos Estados Unidos, esta ilha viveu dois, três anos atrás. O Reino Unido também havia erradicado o sarampo, mas um surto da doença custou a vida de um homem de vinte e cinco anos no País de Gales, em abril de 2013. Ele não era vacinado.  O problema é que desde o final do século passado, por volta de 1998, o número de pais que vacinaram seus filhos caiu consideravelmente neste país. O que teria provocado a queda? Por que a recusa em vacinar?


Em 1998, um gastroenterologista chamado Andrew Wakefield publicou na revista científica ‘The Lancet’ um estudo relacionando a vacina triviral (sarampo, caxumba e rubéola) com autismo. A vacina estaria provocando autismo em bebês, segundo ele.


O artigo de Wakefield é tão incorreto, desonesto e fraudulento, que levaria bem mais de um post para explicar suas falcatruas item por item. Ele descreve o caso de uma dúzia de pacientes, que apresentavam problemas intestinais e comportamentais, a maioria no espectro do autismo. Dos doze, oito teriam apresentado os problemas depois de receberem a vacina tríplice, segundo os pais dessas crianças. O estudo falha nos princípios mais básicos da pesquisa científica. Apenas reporta os casos e sequer os compara com outro grupo, que também recebeu a vacina. Mais tarde ficou provado que ele falsificou alguns dos dados e que as crianças em seu estudo não apresentavam doença crônica no intestino. Para piorar, concluiu-se que a pesquisa foi antiética e irresponsável. Wakefield teria sujeitado seus pacientes a exames dolorosos, caros e totalmente dispensáveis.  O estudo de Wakefield falhou em provar a conexão entre a vacina e o autismo. Se você se interessa pelo assunto, dê uma olhada no livro do médico Ben Goldacre (Ciência Picareta da editora Civilização Brasileira) e em inglês www.badscience.net .




Capa do livro de Ben Goldacre


Em 2010, a máscara caiu. Wakefield foi acusado de fraude e teve seu registro de médico cassado. Um editorial do ‘The Lancet’, anunciou que o artigo era uma elaborada obra de falsidade e se defendeu dizendo que eles haviam sido enganados. O problema é que neste meio tempo, entre a publicação do artigo de Wakefield e o fim da farsa, a mídia deitou e rolou na história. Uma boa teoria da conspiração e um mal invisível vendem mais do que pãozinho fresco. Muitos pais, bombardeados pelas notícias, resolveram arriscar. Melhor não vacinar e evitar que o filho se torne autista. Afinal, o sarampo foi erradicado, que mal vai fazer? Apresentados com a escolha (mentirosa) de dois infernos, escolheram o que achavam ser o menos ruim. A bomba foi estourar anos mais tarde, quando o país se viu frente a frente com um surto da doença, que já deveria ter sido relegada aos livros de história da medicina.


 A imprensa não perdeu a oportunidade. Cobriu o surto como se cobre uma epidemia de ebola. Muitos pais correram para vacinar seus filhos. Pela primeira vez o número de imunizações começou a subir, embora em várias regiões ainda não tenha chegado aos esperados 95%. É que a semente da desconfiança foi plantada, teve tempo de crescer e aí, para arrancar essa erva daninha, não é fácil.

Vacina triviral



Jake tem sete anos. Ele também tem câncer. Todo mundo na escola onde ajudo como voluntária já ouviu falar do menino. É o pior pesadelo que um pai pode ter. Numa manhã de segunda-feira na cafeteria perto da escola, havia uma mulher chorando na mesa ao lado da minha. Menos de vinte centímetros separavam nossas mesas. Foi impossível não ouvir o que ela dizia. Eu a conhecia de vista, mas não sabia quem ela era. Era a mãe de Jake, vivendo uma semana difícil. Ela contava da dor de ver o filho tão abatido, depois do último tratamento de quimioterapia. A fala dela oscilava, ela pedia muitas desculpas por ‘estar dando show em público’. Enxugava o rosto, secava o nariz e recomeçava. De repente, notei uma mudança no tom de voz. Ela estava mais irritada. Havia achado um bode expiatório para sua dor. Um bode é verdade, mas bem real: Os pais que não vacinam os filhos.


Uma semana antes, a escola havia mandado para casa uma circular informando que um de seus alunos sofria de leucemia e convocando os pais a vacinarem seus filhos. Pesquisando para este post, descobri que a escola e a mãe de Jake tinham motivos de sobra para se preocuparem. A escola fica numa das piores regiões do Reino Unido em termos de imunização. Em 2012, apenas 79% das crianças eram vacinadas. A quimioterapia de Jake destrói as defesas do organismo do menino. Se contaminado com um vírus tão violento quanto o do sarampo, ele não teria a menor chance.


Ao redor do mundo, o sarampo ainda é uma das doenças virais que mais mata, principalmente crianças em países pobres. Em 2001, fez cento e cinquenta e oito mil vítimas fatais. Entre elas bebezinhos, que ainda não foram vacinados, e pacientes vulneráveis como Jake. Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas, se a população fosse vacinada e a doença erradicada.


Vacina contra a polio


A desinformação e a ignorância matam. O começo do século XXI veio com a promessa de erradicação da poliomielite da face da Terra. O mundo chegou bem pertinho de realizar este sonho. Mas o número de casos tem subido em alguns países mulçumanos, onde a população foi convencida por líderes religiosos de que as vacinas fazem parte de um plano norte-americano para inocular o vírus da AIDS no povo. Nada como uma teoria conspiratória...


Mas erra quem acha que o problema está restrito aos cantos mais pobres do planeta. Wakefield e sua pesquisa fraudulenta fazem sucesso, adivinhe onde? Nos Estados Unidos, que também adoram uma teoria conspiratória.


Manfiestantes contra a vacina triviral


Do outro lado do Atlântico, na França da década de noventa, o pânico foi por causa de uma vacina de hepatite B, que estaria provocando esclerose múltipla. Uma teoria sem fundamento que se espalhou no país como fogo na mata seca. Afinal, onde há fumaça há fogo, certo? Errado. A fumaça da desconfiança era só fumaça mesmo.


Vacinar ou não vacinar?  Isto ainda é uma questão?  A vacina, ou melhor, a falta dela mudou para sempre a história do Brasil. Em 1788, Dom José morreu de varíola em Portugal. Na época, a vacina contra a doença era aplicada em vários países europeus. Para quem não está assim tão familiarizado com a história da realeza portuguesa, D. José era o primeiro herdeiro ao trono. Ele havia sido educado para ser o regente. D. José não tomou a vacina contra varíola, porque sua mãe tinha muitos ‘escrúpulos religiosos’, como conta Laurentino Gomes em seu livro 1808, que narra a fuga da família real portuguesa para o Brasil. No lugar de D. José, assumiu o segundo na linha de sucessão. Dom João VI era despreparado para o cargo. Não havia recebido a mesma formação de Dom José. Como seu irmão mais velho teria reagido à ameaça de Napoleão Bonaparte nunca saberemos. O que sabemos é que a mãe de José e João, Dona Maria I entrou para a história como a Rainha Louca.




 

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Um bebê, três pais


 

Janeiro de 1803. Londres. Prisão de Newgate. George Foster está prestes a morrer. Ele foi condenado à forca pelo assassinato da mulher e filha. Foster jurou inocência. Os amigos testemunharam seu bom caráter. Ele tinha até um álibi. Pobre, sem dinheiro, não teve a menor chance de defesa. O juiz foi implacável em seu veredito.

 

Não muito distante da prisão, Giovanni Aldini, um cientista italiano esperava a execução com ansiedade. No começo do século XIX na Inglaterra, só os corpos dos piores criminosos poderiam ser dissecados. Pela capital circulavam notícias horrendas de pessoas que acordaram quando suas pernas, ou braços, eram serrados. Tempo sinistro. Aldini era extremamente ambicioso. Ele havia convencido seus colegas da universidade que, se eles lhe dessem um cadáver intacto, ele traria o morto de volta à vida!

 

Depois de ficar dependurado na forca durante uma hora, o corpo de Foster foi levado para o Royal College of Surgeons, uma instituição de prestígio na época. Lá o experimento macabro foi testemunhado por médicos, cientistas e membros do público. Aldini ligou eletrodos aos pés, braços, peito e testa do defunto. Assim que a corrente elétrica passou pelo corpo de Foster, ele começou a mexer a mandíbula e se contorceu até que chegou a abrir o olho esquerdo. O contorcionismo convulsivo durou até a bateria acabar. As testemunhas concluíram que ele não havia voltado à vida. Aldini caiu em desgraça. Partiu para a Itália com o rabo entre as pernas, culpando a bateria por seu fracasso. Sempre a tecnologia...




O ambicioso Aldini





 

A história, no entanto, sobreviveu e animou os salões da sociedade inglesa. Numa dessas reuniões estava uma menina chamada Mary Shelley. Escondida no topo da escada, ela ouvia e absorvia as histórias dos adultos como terra seca bebe água. Anos mais tarde, Mary criou seu personagem mais famoso: Victor Frankenstein.

 



A curiosa Mary Shelly, que tinha muita imaginação.

 

Frankenstein de Mary Shelly



É curioso que sempre que se discute um avanço da ciência, Frankenstein é tirado de seu descanso. Foi assim em julho de 1978, quando nasceu Louise Brown. O primeiro bebê de proveta. Durante nove anos, os pais de Louise tentaram sem sucesso produzir um filho à moda antiga. Eles eram os candidatos perfeitos para a nova técnica de reprodução.
 

Na época em que se discutia a possibilidade de fertilização em vitro, um cientista americano chamado Leon Kass, que mais tarde seria conselheiro do governo Bush para bioética, foi radicalmente contra. Ele argumentava que o risco de produzir bebês com sérias anomalias seria enorme.
 

De 1978 para cá, mais de três milhões de crianças, que foram concebidas em tubos de ensaio, vieram ao mundo. O número de anomalias é o mesmo que em crianças concebidas naturalmente. A tecnologia trouxe muita alegria para casais que não podiam ter filhos. Mesmo assim, ainda hoje o assunto gera polêmica.

 

A Igreja nunca achou graça nessa história de bebê de proveta. Condena o uso de tecnologia para substituir o ato sexual com fins reprodutivos. Em 2008, a Igreja Católica publicou o Dignitas Personae, um documento da Congregação da Doutrina e Fé enumerando as razões pelas quais se opõe à fertilização em vitro. Uma delas é que muitos embriões são criados no processo e poucos sobrevivem. Os cientistas rebatem o argumento dizendo que a maioria dos embriões concebidos durante a relação sexual falha em sua missão de se implantar no útero. Em outras palavras, não vingam e a mulher sequer soube que estava ‘grávida’. Também no processo natural muitos embriões são criados e poucos sobrevivem. 



Tenho uma conhecida que quis batizar os filhos, numa igreja católica no condado de Kent ao sul da Inglaterra. O padre se recusou a batizá-los, porque eles eram bebês de proveta. Foi a última vez em que ela viu o padre ou a igreja em questão.
 
 
 



Fertilização em vitro condenada pela Igreja

 

 No ano 2000, quando se anunciou o mapeamento genoma humano, editei uma série de reportagens sobre o assunto. Lembro-me claramente das manchetes da época. Desvendado o alfabeto da vida era uma delas. O tom de muitas reportagens era alarmista. Usavam sem miséria a expressão ‘brincando de Deus’. Temia-se que a nova descoberta iria abrir as portas para bebês geneticamente alterados. Os pais poderiam selecionar o sexo e até a cor dos olhos dos filhos, criando-se Frankensteins genéticos.
 

Quinze anos mais tarde, a possibilidade de se criar um bebê    geneticamente modificado é real. Cientistas ingleses desenvolveram uma tecnologia que trucida a matemática da genética, como conhecíamos até hoje. Esqueça a equação um óvulo + um espermatozoide = embrião. A nova técnica propõe criar uma vida humana com dois óvulos e um espermatozoide. Isso se o Parlamento inglês aprovar uma lei que abre caminho para o bebê de três pais*. E o que Maria ganha com isso?
 

Maria eu não sei. Mas para muitos casais a nova tecnologia vai trazer tanta alegria quanto aos pais dos milhões de bebês de proveta. Algumas crianças nascem com uma doença genética gravíssima e incurável porque a mitocôndria, presente nas células, é incapaz de transformar comida em energia. A mitocôndria que não funciona bem é passada pela mãe e os filhos afetados sofrem danos cerebrais, musculares, cardíacos e cegueira.

 

A nova tecnologia usa o óvulo da mãe, mas substitui a mitocôndria que não funciona bem por outra, retirada do óvulo de uma doadora. Apenas 0,1% do material genético da doadora passa para o bebê. O Parlamento Britânico deve votar hoje se aprova ou não o uso da tecnologia. Posso apostar que Sharon Bernardi vai acompanhar a votação de perto. Ela perdeu sete filhos para a doença. http://www.bbc.co.uk/news/health-23095000

 

 

Hoje de manhã ouvi um parlamentar do partido conservador dizer no rádio que vai votar contra. O argumento dele é que não se pode abrir a porta para a manipulação genética de embriões porque, ‘daqui a pouco os pais vão querer escolher a cor dos olhos dos filhos’. Sei não, já ouvi esta frase antes em algum lugar. Os anglicanos e católicos também  têm  trabalhado duro no lobby contrário à aprovação da lei. Se dizem solidários com os pais, mas que questões éticas precisam ser melhor pensadas e querem garantias de que a técnica vai funcionar. Pedem mais tempo.

 

Os avanços científicos costumam vir acompanhados de polêmicas e questões éticas, que são importantes e não podem ser desprezadas. Numa das entrevistas que ouvi sobre o assunto, uma mulher dizia que tinha pena das famílias afetadas pela doença genética, mas que a natureza devia seguir seu curso. Ainda bem que nem todo mundo pensa assim. Porque se não fosse pelo antibiótico, só para citar um exemplo, a natureza teria dado cabo de muita gente e talvez eu ou você não estivéssemos aqui hoje pensando sobre o assunto.

 
 
 

 
Só mais uma coisa antes de eu ir. Será que é hora de parar de ‘brincar de Frankenstein’? Hoje em dia é fácil rir de Aldini e sua tentativa  rocambolesca de trazer um homem de volta à vida. Seus planos eram audaciosos demais, mas não de todo estúpidos. O desfibrilador, aquele aparelho que dá choques no coração que bate fora do ritmo, não traz ninguém de volta, mas adia a ida de muitos pacientes para o além.


Ganha um doce quem advinhar de onde veio a ideia de criar o equipamento.



 

     A lei foi aprovada por 382 parlamentares. 128 votaram contra.