sábado, 31 de outubro de 2015

Buuu!!!

 

Hoje é a noite do Halloween. Nos últimos anos tenho observado que mais e mais ingleses se rendem ao modismo americano, apesar de muitos deles torcerem o nariz para os hábitos dos descendentes, que vivem do outro lado do Atlântico. O que muita gente não sabe é que, ao cruzar o oceano, o Halloween está de volta para casa.
 

Halloween era uma tradição celta que, na noite do 31 de outubro para primeiro de novembro, celebrava o fim das colheitas e marcava o começo dos dias escuros e frios do inverno anglo-saxão. Os romanos, governados pelo imperador Cláudio, invadiram essas terras em 43 d.C. e importaram a tradição pagã, que foi incorporada ao calendário cristão. Halloween vem de All Hallows’ Eve, que significa véspera de Todos os Santos. 



Casa decorada para o Dia das Bruxas
 
 

Nas Ilhas britânicas, a tradição sobreviveu repaginada. Uma delas era colocar uma vela dentro de um nabo, para espantar os maus espíritos, no estilo das carrancas que enfeitam os barcos. No século dezenove, muitos irlandeses que sofriam com a escassez de alimentos, conhecida como a fome das batatas, imigraram para os Estados Unidos. Lembra daquela lei universal que diz que a necessidade é a mãe da criatividade ou, no popular, ‘se só tem tu, vai tu mesmo’? Pois é, como as abóboras eram muito mais abundantes que os nabos, a tradição foi adaptada.
 

Além de nabos iluminados, os celtas usavam máscaras para espantar os ‘coisa ruim’ e também ofereciam algumas prendas (no melhor estilo despacho de macumba). Na terra da oportunidade de negócios, virou ‘doces ou travessuras’ - a frase que ficou mundialmente conhecida graças ao principal embaixador da cultura americana: Hollywood. Foi na década de 70, que filmes como E.T. começaram a tornar a brincadeira popular e atraente ao redor do globo.
 


Quanto mais feio melhor

 

Os britânicos são mais reservados do que nós os latinos. Privacidade é um direito sagrado para eles. Não gostam de estranhos chegando sem serem convidados. Por isso, aos poucos a etiqueta do Dia das Bruxas vai sendo escrita, sem palavras, como em tantas outras convenções sociais.
 

É de bom tom bater apenas na porta das casas que estão enfeitadas, ou que tenham uma abóbora decorada na frente. Meus conhecidos combinam com os vizinhos de antemão. No ano passado, esta tradição de deixar velas acesas custou caro para uma menina de oito anos. Matilda é filha da apresentadora de tevê Claudia Winkelman.








 No último Halloween, elas participavam de um ‘doces ou travessuras’, quando a fantasia da menina encostou numa vela acesa. Matilda virou uma bola de fogo, sofreu queimaduras terríveis e precisou passar por várias cirurgias reconstrutivas. Claudia começou uma campanha para conscientizar os pais sobre a qualidade do tecido das fantasias baratas e altamente inflamáveis. Ela deu uma entrevista para a BBC, que é repetida exaustivamente nas redes sociais nesta época do ano.  Reparei no supermercado hoje que, ao lado das fantasias, havia um aviso dizendo para mantê-las longe do fogo.



 

Aviso na loja para evitar possiveis processos judiciais
 

Ano passado participei com a minha filha, e um bando de crianças, do Halloween. Ao abrirem as portas de suas casas e distribuírem balas e chocolates, muitas pessoas diziam: Happy Halloween (Feliz dia das Bruxas)! Feliz dia das bruxas? O que isso quer dizer? Fiquei encafifada.
 

 


Feliz dia das Bruxas
 


Apesar de a festa estar se tornando mais popular aqui na Ilha, ela ainda encontra algumas resistências e não só porque é um modismo americano. Outro dia perguntei a uma conhecida se ela ia levar os filhos para o ‘doces ou travessuras’. Ela respondeu que era batista e, por isso, que não celebra o dia das bruxas. Nunca tinha enxergado por esse lado. Não quis provocar  polêmica e nem saia justa. Fiquei pensando que talvez ela tema que os pagãos roubem dos cristãos, o que um dia eles levaram dos celtas...
 
Apesar de achar que, de certa forma, seja um culto ao consumo, pra mim o Dia das Bruxas não celebra nada. É como o carnaval, uma festa de origem pagã, que oferece a chance de sair fantasiado pela rua e se divertir, sem ter medo do ridículo.
 

Saiu hoje nos jornais o resultado de uma pesquisa encomendada pela Igreja Anglicana. 40% das pessoas nesta Ilha não acreditam que Jesus seja um personagem real e sim uma invenção religiosa. Mas, curiosamente, 57% dos mais de 4 mil entrevistados se dizem cristãos, embora menos de 10% frequentem a igreja. O segundo grupo mais popular é o dos que se dizem ateístas,12%. Depois vêm os agnósticos 9%, mulçumanos 3%. Judeus e hindus representam 2% da população. Talvez esta pesquisa dê uma pista do sucesso crescente das festas do Dia das Bruxas. 


Não consegui encontrar números desta Ilha, mas nos Estados Unidos, o Halloween representa quase sete bilhões de dólares em negócios todos os anos. Uma oportunidade de ouro para incrementar o comércio antes do natal. As quinquilharias do Dia das Bruxas estão por todos os lugares nas lojas. São fantasias mil, teias de aranha falsas, biscoitos em forma de esqueleto, bolos com cobertura verde e balas para dar, vender e jogar fora.
 





Descartar é a parte do Halloween que me causa um certo desconforto. Eu sei que é rabugice, que as crianças adoram e que o Dia das Bruxas vai fazer parte da memória delas, como as nossas brincadeiras de criança ficaram nas nossas. Entretanto,  não consigo deixar de pensar que essa tralha toda vai acabar num lixão. Vai levar algumas centenas de anos para que esse lixo desapareça. Antes que alguém fale alguma coisa, tenho a mesma sensação quando vejo as casas empetecadas com milhares de luzinhas chinesas para o natal.




 Fazer o quê, né? Cada um que lide com a assombração que lhe atormenta.




Buuu!!!!!
 
 

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Cameron mãos de tesoura e a liga dos Gentlemen


 

Há cinco anos, todo outono, nós aqui da Ilha ficamos grudados em frente da tevê nas noites de domingo para assistir ao Downton Abbey, um drama de época que virou sucesso mundial. Não vou estragar a surpresa para ninguém, mas não faz mal dizer que na série atual Lorde Crawley e outros da mesma estirpe estão achando difícil manter a criadagem no alvorecer da Segunda Guerra.
 



 

Na vida real, Downton Abbey é Highclere Castle e fica a cem quilômetros do centro de Londres, em Newbury. O conde e a condessa de Carnarvon abrem as portas de sua propriedade para o público sessenta dias por ano. Um negócio pra lá de lucrativo. As excursões para espiar o modo de vida dos nobres se esgotam rapidamente.
 
 
Cliveden - National Trust
 
 

Espalhadas por esta Ilha estão outras tantas propriedades que guardam o cheiro de outra era. Uma delas é Cliveden às margens do mesmo Tâmisa que corta Londres ao meio. Cliveden é espetacular em termos de arquitetura, jardins e história. Nas décadas de 20 e 30 era um polo de encontro de intelectuais. No começo dos anos 60, foi cenário do Profumo Affair, um escândalo político à la Bill Clinton e Monica Lewinsky, que mudou a política por aqui. Foi em Cliveden que o conservador John Profumo, então Ministro da Guerra, viveu dias quentes com uma aspirante a modelo chamada Christine Keeler, de dezenove anos. Tinha até um espião russo no rolo, em tempos de guerra fria. O escândalo pavimentou o caminho para vitória do Labour Party (os trabalhistas) em 1964. Hoje em dia Cliveden pertence ao National Trust (http://mariaeduardajohnston.blogspot.co.uk/2014/11/para-sempre-e-para-todos.html) e a casa abriga um hotel cinco estrelas, para quem tem a carteira recheada.

 
A escandalosa Christine Keeler do Profumo Affair
 

  


Cliveden, Highclere Castle e muitas outras ainda atraem multidões. Na linha da filosofia-Joãzinho-trintense, talvez seja porque pobre gosta mesmo é de luxo. Ou quem sabe, os ingleses sejam encantados por história. Seja lá como for, esses lugares preservam narrativas de um tempo que não existe mais.



Será?



David Cameron está em seu segundo mandato. No primeiro, seu partido Conservador, apelidado aqui de Tories, governou em conjunto com os Liberais-Democratas, num governo de coalizão. Agora que está com a faca e o queijo na mão, já que foi reeleito com maioria no Parlamento, anda descendo o facão a torto e a direito. À direita também. Essa semana está sendo muito intensa na política aqui da Ilha.
 
Casa dos Lordes
 

 
O Parlamento é dividido em duas casas: a dos Comuns (parlamentares eleitos, semelhante à Câmera Federal) e a dos Lordes (783 no total, sendo que 670 são vitalícios e nenhum é eleito pelo povo). Os Comuns aprovaram uma espécie de reforma fiscal que diminui os benefícios de muitas famílias. Três milhões delas para ser mais exato. Os Lordes barraram o projeto, que vai ser adiado. Foi a primeira vez em cem anos que a Casa dos Lordes bateu de frente com os Comuns, numa matéria que envolve o orçamento. O que o governo, depois da traulitada, está chamando de Crise Constitucional.
 
Em 2003, o governo dos Trabalhistas aprovou uma série de incentivos fiscais para famílias de baixa renda. O atual governo quer cortar esses incentivos, como parte de um pacote para equilibrar as contas públicas. O primeiro-ministro e sua equipe econômica afirmam que essas famílias não serão prejudicadas, porque o salário mínimo vai subir. Mas o IFS (Institute of Fiscal Studies), uma entidade independente de pesquisa, diz que não é exatamente assim e que os mais pobres, como sempre, vão ter que pagar a conta.
 
Cameron e seu time mais próximo são frequentemente acusados na Imprensa de fazerem parte de um grupo seleto de pessoas que já nasceram muito ricas, estudaram em escolas particulares e que, portanto, são dissociadas da realidade dos trabalhadores e daqueles que vivem de benefícios sociais.
 
É inegável que do ponto de vista econômico é preciso pôr a casa em ordem, para a bomba não estourar lá na frente. Existe mais de uma maneira de se fazer isso. Durante a campanha eleitoral, a oposição propôs um imposto mansão para casas avaliadas em mais de um milhão de libras (além do IPTU deles). A proposta era controversa, mas não importa mais porque ficou no plano das ideias. Há os que defendam impostos sobre grandes fortunas e aumentar o imposto sobre as heranças. Nenhuma proposta é agradável, popular ou sem custo político. E o debate está mais quente do que nunca.
  
 

  
Foi neste contexto, que a revista Country Life publicou esta semana um artigo indispensável com 39 dicas para se tornar um verdadeiro gentleman – um legítimo cavalheiro inglês. Tome nota aí. Um gentleman...
 
1)    Evita usar meia lilás com sapato engraxado
2)    Não bate a porta na cara de ninguém
3)    Não é vegetariano
4)    Sabe velejar e cavalgar
5)    Sabe desabotoar um sutiã com uma mão só
6)    Não beija e sai contando que beijou
7)    Não viaja para Porto Rico (????????????????????)
8)    Leu ‘Orgulho e Preconceito’ de Jane Austen
9)    Nunca seca o cabelo com secador
10)  Desliga o celular no restaurante
11)  Demonstra que fazer amor não é nem uma corrida e tampouco uma competição
12)  Sandálias? Jamais!
13)  Nunca é dono de um Chihuahua
14)  Carrega as bagagens dos hóspedes de sua casa
15)  Dá gorjeta aos funcionários das mansões onde se hospeda
16)  Canta os hinos religiosos a plenos pulmões na igreja
17)  Termina um relacionamento cara a cara
18)  É capaz de treinar tanto um cão quanto uma rosa ...
 
 

Não vou traduzir a lista inteira. Já deu para entender o espírito, né? Oscar Wilde disse certa vez que um gentleman nunca insulta alguém sem querer. Ah, esse humor britânico...

O tempo das grandes mansões com um pequeno exército de empregados pode ter ficado no passado. Mas ao que tudo indica, a distância entre a cozinha e os salões continua grande.
 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Não Me Toque



Meses depois de desembarcar na Inglaterra, um dia me vi conversando com um rapaz brasileiro na rua. Não me lembro do contexto ou de como começamos a conversar. O papo durou dois quarteirões e terminou com dois beijinhos na bochecha. Não vi nada de mais, não achei que ele tivesse segundas ou terceiras intenções. Foi um tchau. Acho que nenhum estranho me deu um beijo na rua no Brasil, mas aquele dia na Queens Road me pareceu a coisa mais natural do mundo. Me dei conta de que estava sentindo saudade da espontaneidade brasileira. 


Entender que diferenças culturais existem não as tornam necessariamente mais fáceis de assimilar. Esse é um dos muitos dilemas que o imigrante encontra no novo país. A falta de contato físico nas relações sociais aqui na Ilha ilustra bem o ponto para mim. 


 Já perdi a conta de quantas vezes fui convidada para jantar na casa de um ou outro colega de trabalho do meu marido. Alguns deles são muito agradáveis. A conversa flui sem problemas. Aí chega a hora das despedidas. Os anfitriões nos guiam até a porta da frente. Rola uma conversinha mole, para despistar o desconforto geral. Os donos da casa não podem dar pinta de que querem se livrar dos convidados e os convidados por sua vez não devem demonstrar pressa de ir embora. E então se diz adeus, sem nenhum abraço, beijos (no singular ou no plural) ou mesmo um aperto de mão. Nessas horas vejo um murinho de tijolo e cimento sendo erguido na minha frente em fast foward. Para mim, não toc­á-los sai caríssimo em termos de energia. Que diabos! Um aperto de mão não arranca pedaço. 
 
 
 




Aliás as mãos são as únicas partes do corpo que mulheres e homens toleram que sejam tocadas por um estranho. Esta é uma das conclusões de um estudo que a Universidade de Oxford acaba de publicar. Os pesquisadores entrevistaram mil e quinhentas pessoas do Reino Unido, Itália, França, Finlândia e Rússia. Adivinhe só: os britânicos são os que menos gostam de contato físico com estranhos.
 

Trabalho há anos como voluntária numa escola primária. A primeira vez em que ouvi uma professora dizer: “keep your hands to yourself” (inglês para " não encoste no coleguinha"), achei engraçado. Quando notei que a frase era repetida cada vez que uma criança tocava, digamos o cabelo da outra, comecei a achar que não tinha graça nenhuma. Por isso não me estranhei, quando li sobre a pesquisa da Universidade de Oxford.

 
 
A pesquisa resultou num Body Map (mapa do corpo). As pessoas que tomaram parte no estudo foram convidadas a colorir desenhos do corpo humano.  Ao todo são treze modelos: parceiro, irmãos, amigos, colegas até estranhos. A cor amarela indica as partes em que o toque não incomoda. A preta onde não se deve tocar e as àreas tabu: os órgãos genitais. O estudo revelou algumas coisas interessantes...  Tanto para os homens quanto para as mulheres, não existe zona de exclusão do toque para os parceiros. Mas os homens preferem ser tocados em algumas partes por estranhas mais do que por pessoas da família por exemplo. Ou seja, a titia não pode encostar lá, mas uma estranha numa boate pode. Homem tocando em homem, não vale. Nem mesmo nos pés.



 

Um dos coordenadores do estudo, o professor de psicologia evolutiva Robin Dunbar, acredita que o toque seja um fenômeno universal, embora apresente modulações diferentes em diversas culturas. Ele acrescenta que mesmo nesta era de mídias sociais, o contato físico é fundamental para estabelecer relações e fortalecer laços sociais.

 


 


Na mesma escola onde as crianças não devem encostar umas nas outras, havia um menino de três anos e meio, que mal falava inglês. Um dia brincando no recreio, ele se machucou e começou a chorar desconsoladamente. Não pensei duas vezes e pus o menino no colo. Em seguida, uma professora espavorida se materializou na minha frente, dizendo para eu botar a criança no chão. Carregar era proibido. Poderia trazer complicações para a escola.

 
Num documentário que assisti, uma criança de oito anos parecia perdida num shopping center. A menina era uma atriz, mas ninguém sabia. Uma câmera escondida filmou mais de duzentas pessoas passando batido pela menina. Algumas percebiam que ela estava em apuros, mas não paravam. Só quatro pararam para tentar ajudar a criança, sendo que uma não falou com ela. Procurou um segurança para informar que havia uma garota, que parecia estar precisando de ajuda. O mais interessante foi ver o depoimento daqueles que não pararam para prestar ajuda. Foi uma unanimidade: eles não queriam que alguém pensasse que eles estavam fazendo mal para a criança. O que me leva a pensar que medidas como a de não dar colo para uma criança, que obviamente precisa de um carinho, são para resguardar os adultos e não as crianças. Alguma coisa está muito errada.

 

A mãe do menino, que ganhou colo, veio me procurar na escola. Queria me agradecer. O filho tinha chegado em casa dizendo que eu tinha sido boazinha com ele. Às vezes na hora da despedida dos tais jantares, se me dá na telha, dou uma de brasileira exótica e abraço meus anfitriões. Até hoje não senti que tivesse dado uma bola fora. De duas uma: ou professor Dunbar entende mesmo do assunto, quando diz que o contato físico é fundamental, ou eu ando praticando a arte do autoengano, achando que os ingleses no fundo gostam do jeito latino de ser.



terça-feira, 20 de outubro de 2015

Mulher de Malandro



Foi uma daquelas ideias bem-intencionadas, que se espalham como fogo no mato seco. O que nos dias de hoje a gente classifica como um viral. Começou no Facebook. Uma sobrevivente de violência doméstica aqui da Ilha criou o ‘Black Dot Campaign”, ou a Campanha do Pontinho Preto. “Se alguém lhe mostrar um ponto preto desenhado na palma da mão, chame imediatamente a polícia. Trata-se de um pedido de socorro de uma pessoa que está sofrendo violência doméstica".


Campanha do Pontinho Preto



Apesar de aparentemente ter ajudado 49 mulheres a saírem de relacionamentos abusivos, a campanha não sobreviveu uma semana e enfureceu muita gente que trabalha diariamente no combate à violência doméstica. Por quê? Porque as vítimas e os abusadores não vivem em universos separados. É óbvio que se uma pessoa qualquer na rua pode entender o novo código, por que não o agressor? Existe o temor de que a iniciativa, ao invés de trazer uma solução para o problema, aumente o número de homicídios de mulheres.


Toda semana na Inglaterra e País de Gales, duas mulheres são assassinadas por seus parceiros, namorados, maridos e ex. 70% destes crimes acontecem quando a mulher decide se separar do agressor. Fato.






Esse assunto me faz pensar imediatamente no livro ‘A cidade do Sol’ de Kaled Hosseini, que escreveu ‘O Caçador de Pipas’, um best seller que virou filme. O livro conta a história de duas mulheres, que dividem o mesmo marido: um tirano, que abusa, maltrata e destrói a alma dessas mulheres. É uma obra de ficção, mas mesmo assim é uma leitura dolorosa, porque retrata uma realidade tristíssima. Embora em algumas culturas o abuso seja entendido como um fator cultural, ele ocorre em todos os países e em todas as classes sociais. Aqui na Ilha estima-se que um milhão e quatrocentas mil mulheres sejam ou tenham sido vítimas de abuso doméstico. Uma situação que afeta também um número enorme de crianças (uma em cada sete menores de 18 anos). Uma tragédia nacional.


Uma amiga contou que a escola do filho teve que adotar medidas especiais para proteger um dos alunos. Todas as salas de aula passaram a ser trancadas e alarmes foram instalados. Tudo porque o pai do garoto descobriu onde eles estavam vivendo e ameaçava se vingar da ex-mulher. Ela havia mudado de nome e de cidade, com a ajuda de programas de proteção às vítimas. A iniciativa da escola mostra que eles levam o perigo a sério.

Cartaz de uma campanha contra a violência doméstica

 
E não são somente as escolas. Na linha de frente do combate à violência doméstica estão várias organizações. Uma delas é a WHAG – Women’s housing action group, uma entidade sem fins-lucrativos, que trabalha em conjunto com as prefeituras locais e oferece acomodação para as pessoas vítimas de violência doméstica. Nos refúgios, as famílias que tentam escapar do agressor ficam até 13 semanas. Lá elas recebem assistência médica, jurídica, psicológica, além de treinamento profissional, para que possam encontrar trabalho e serem autossuficientes. O programa é fantástico, mas a grana é curta. O governo dos conservadores tem cortado sistematicamente os programas sociais, para colocar as contas em dia. Semana passada recebi um folheto da prefeitura local dizendo que eles já cortaram muitos milhões de libras do orçamento e que vão ter que cortar ainda mais, para atingir as metas. De fato, entre 2010 e 2014, o número de refúgios para vítimas da violência doméstica caiu 17% e, a julgar pela correspondência que recebi semana passada, esse número vai cair ainda mais.
 

O pior é que ainda tem gente por aqui que acredita que ‘mulher de malandro gosta de apanhar’. O pensamento local tem sotaque diferente, mas a raiz é a mesma. Por que essas mulheres deixam que os parceiros abusem delas? Por que não põem a viola no saco e hasta la vista? As formas de abuso e de controle são muito complexas e destroem a autoestima das vítimas. Elas se sentem totalmente incapazes de enxergar uma saída. Numa inversão de valores, as vítimas se sentem envergonhadas, quando a vergonha deveria ser do agressor. Por isso o trabalho de assistência às sobreviventes é tão importante.



Cartaz alerta para a violência doméstica


Minha memória para números é uma tristeza. Mas sou capaz de me lembrar dos textos e das ilustrações dos meus livros de escola. Escrevendo este post, pensei numa história que eu achava que já tinha esquecido. A crônica estava num livro de português, daqueles que a gente usava para fazer interpretação de texto. Era para ser engraçadinho. Contava a história de um matuto, que havia acabado de se casar. Ele pôs a noiva no lombo de um burrinho e lá se foram os dois. Um pouco adiante, o burro tropeçou. O matuto disse: “Primeira vez”. Alguns quilômetros depois, o burro tropeçou mais uma vez, quase derrubando a noiva. “Segunda vez”, disse ele rosnando. Não demorou muito e o burrinho tropeçou novamente. Sem paciência, o homem tirou a esposa de cima do burro, apontou sua espingarda e antes de atirar gritou: “terceira vez! ” Ao ver o burrinho estirado no chão, a moça choramingou horrorizada: “ mas meu marido...” Ele a interrompeu dizendo: “Primeira vez!”


Duvido, ou pelo menos gostaria de acreditar, que os livros de português de hoje ainda tenham o texto acima. O politicamente correto ainda não havia sido inventado, eu poderia dizer. Mas não vou. Por que banalizar um assunto sério, que de engraçadinho não tem nada? Histórias como a do matuto tecem fio a fio o manto do repertório cultural de um povo e tornam mais difícil para as vítimas escapar da violência.


Aqui na Ilha, nunca ouvi  história semelhante à do matuto. Os ingleses são mais discretos. As sutilezas do pensamento nacional são menos escancaradas. Eles não gostam de falar sobre violência doméstica. Talvez por isso mesmo, ela seja uma assassina silenciosa. Dá até para entender porque uma das vítimas inventou a campanha do pontinho preto.


 
 

terça-feira, 13 de outubro de 2015

The Big "C"




Aquele, você sabe quem. Ou, aquele que não se pode dizer o nome: Lorde Voldemort. Ele é o arquirrival de Harry Potter e de todos os bruxos do bem. É um personagem feio, soturno, traiçoeiro, cruel. O vilão perfeito. Voldemort simboliza tudo o que existe de mal. Por isso, melhor não falar o nome dele.




Aquele que não se menciona

 

Longe da ficção, um outro vilão muito real é tão assustador, que algumas pessoas preferem não chamá-lo pelo nome. Em inglês, frequentemente se referem a ele como o “Big C”, um “C” maiúsculo: Câncer. Uma palavra que muita gente prefere não dizer, que é para não atrair coisa ruim.



The Big "C"



No mesmo hospital em que nasci, um tio da minha mãe estava internado. Ele acreditava que tinha câncer. Como era velho e solteiro, decidiu que não queria dar trabalho para ninguém. Tirou a própria vida antes de deixar o hospital. Já se vão quase cinco décadas, os tratamentos melhoraram bastante, mas câncer ainda é um assunto que muita gente evita, porque, assim como o Voldemort, é assustador demais.


Outubro é oficialmente o mês de chamar atenção para o câncer de mama. Aqui na Ilha é o mês cor de rosa. Não é à toa. Uma em cada oito mulheres vai ter câncer de mama, mais cedo ou mais tarde. Nós estamos vivendo mais, mas a um custo: nossas células envelhecem e os casos de câncer aumentam. A doença atinge uma em cada três pessoas em algum ponto da vida. Então é melhor começarmos a encarar esse vilão de frente.





Outubro Rosa



Foi o que fez a jornalista e apresentadora da BBC, Victoria Derbyshire, de 47 anos. Em julho, ela foi diagnosticada com câncer de mama. Resolveu fazer um vídeo diário de seu tratamento. No dia 24 de setembro, passou por uma mastectomia. Essa semana, ela divulgou o clipe que gravou assim que voltou para o quarto depois da operação. Num cartaz escrito a mão, ela diz: “esta manhã eu tinha câncer. Esta noite não tenho mais”. Ela aparece maquiada e composta nos vídeos, como se tivesse acabado de dar um upgrade no silicone (se é que alguém sai assim tão ileso de uma cirurgia plástica). A mensagem de Victoria é que câncer não tem e nem precisa ser um bicho de sete cabeças. A jornalista afirma que a experiência de cada um ao lidar com a doença é pessoal, mas que ela não se sente travando uma batalha contra o câncer e sim se tratando de uma doença. Dá a impressão de estar em controle da situação.

 




 
Desmistificar a doença e fazer com que as pessoas possam encarar o câncer de uma forma diferente é louvável. Os vídeos foram o mecanismo que a jornalista da BBC encontrou para lidar com o tumor e suas consequências. Se está fazendo bem a ela, meus parabéns. Entretanto, esse tipo de mensagem me incomoda, porque passa a ideia de um passeio ensolarado num parque florido. O que um câncer definitivamente não é.

Como a jornalista da BBC, eu também não encarei a doença como uma cruzada. Aos 33 anos, recebi o diagnóstico de câncer de intestino. O tratamento envolveu uma cirurgia e seis meses de quimioterapia. Qualquer bocó com dois neurônios operantes sabe que na vida não há garantias de nada. Mas quando a gente descobre que tem uma doença potencialmente fatal, essa vivência é dolorida. Ninguém garante a cura. Nos damos conta de que não temos sequer o controle sobre nossas próprias células. A vida, que é o bem mais precioso que cada um de nós tem, de repente se torna mais especial. E, se não nos permitirmos ter medo, dúvidas e dias ruins, essa caminhada fica pesada demais.

Aqui na Ilha existem várias instituições de caridade empenhadas em tornar essa jornada mais tranquila para os pacientes e suas famílias. Outro dia mesmo, participei de um café-da-manhã para levantar fundos para a Macmillan Cancer Support, uma instituição que existe desde 1911 e batalha para que ninguém tenha que enfrentar o câncer sozinho. Só no ano passado, eles receberam £25 milhões em doações (cerca de R$150 milhões).




Cartaz da campanha da Macmillan


Mas sem dúvida o Cancer Research UK é a maior instituição de caridade do setor. É muito comum ver as lojas do Cancer Research nas ruas de comércio de muitas cidades. São brechós, onde se encontra de roupa a brinquedos, passando por louças e pequenas peças de decoração. Tudo de segunda mão. Tudo para arrecadar fundos. A instituição acaba de anunciar uma bolsa de £100 milhões ( cerca de R$600 milhões) para financiar pesquisas de prevenção, diagnóstico e tratamento do câncer. Essa dinheirama não surge do nada. São 40 mil voluntários fixos e membros da sociedade que se organizam para levantar fundos.







A brasileira Eugenia Andreadis, que mora há 22 anos na Inglaterra, admira o hábito inglês de angariar fundos para instituições de caridades. Eugenia perdeu a mãe, vários parentes e amigos para o câncer e decidiu que gostaria de ajudar a encontrar uma cura para a doença. Ela organiza há três anos um grupo de brasileiras que participa do ‘Race for Life’ do ‘Cancer Research UK’. É um trabalho de formiguinha, mas felizmente esse formigueiro é grande.





Race for Life - Corrida pela vida




Não faz muito tempo, quimioterapia era praticamente remédio de matar rato. As descobertas na genética, o investimento em biomedicina e muita pesquisa têm mudado o tratamento. As boas notícias são mais comuns. Vive-se mais, tolera-se o tratamento melhor.



Câncer pode até não ser uma batalha pessoal, mas ele é sim um desafio mundial. Apesar das conquistas, a expectativa é de que, nas próximas duas décadas, o número de novos casos da doença aumente 70%. Mais de 60% deles na África, Ásia, América Central e América do Sul. Fazer de conta que o câncer não existe para ver se ele vai embora, não vai dar.