quarta-feira, 6 de maio de 2015

Uma mulher, um casal gay, uma criança e uma sentença


‘Religiões, sistemas morais, o dela incluído, eram como picos numa cordilheira montanhosa, vistos de uma grande distância, nenhum obviamente mais alto, mais importante ou verdadeiro do que o outro. O que há para julgar?’

(Ian McEwan)

 
 
 
 
 
Fiona Maye é uma juíza da suprema corte inglesa. Altamente educada, bem relacionada, rica e amante da música clássica. Ela é casada com um intelectual igualmente respeitado. Eles não têm filhos. Ainda assim, cabe à ela resolver o destino de muitas crianças. Fiona trabalha na vara de família. Ela é conhecida por sua ‘imparcialidade divina e inteligência diabólica’, de acordo com um colega de profissão. No entanto, ela não é real. Saiu da cabeça do escritor Ian McEwan e vive nas páginas do ‘The Children Act’ ( ‘A balada de Adam Henry’, em português pela Cia das Letras). Trata-se de um livro pequeno, mas recheado de reflexões e o eterno conflito entre o racionalismo e a religiosidade.

 
Livro de Ian McEwan
 
 
 
 
Gostei bastante do livro, mas este post não é uma crítica literária. Acordei hoje com a Fiona Maye na cabeça. Na verdade, comecei a pensar nela depois de dar uma lida rápida nas notícias do dia. Uma delas me chamou atenção. Uma juíza chamada Alison Russell decidiu que uma menininha de 15 meses deve ser retirada imediatamente da mãe e entregue ao pai biológico e seu companheiro. O caso é polêmico, porque mesmo aqui, a Justiça tende a julgar em favor da mãe.

 
A história começou antes  de a criança nascer. Pela determinação da Justiça, nenhuma pessoa envolvida neste caso pode ter o nome revelado, por razões óbvias. O pai da criança, um homossexual romeno bem de vida, queria ter um filho. Procurou uma amiga, também romena, que topou ser a barriga de aluguel. Aliás, durante a gravidez, o pai pagou as despesas da mãe. Pela lei britânica, não se pode pagar por uma barriga de aluguel (a mulher pode sim receber uma ‘ajuda de custo’, uma brecha na lei que acaba sendo de praxe). No meio do caminho, ou talvez ela tivesse planejado isso desde o princípio, a mãe da criança mudou de ideia. Queria que o bebê fosse somente dela.


 
 
 
 
 
 
A mulher teve a criança sem contar para o pai e seu companheiro. Quando a menina tinha um mês de idade, eles decidiram entrar com uma ação na Justiça, para ter a guarda da criança. Contrariando uma decisão judicial, a mulher batizou a filha com um nome que ela escolheu. A mãe é cristã ortodoxa, o pai protestante e o companheiro do pai é católico. O famoso ame ao próximo como a si mesmo, aqui foi mais um complicador. Os cristãos em questão não conseguiram chegar a um acordo e o relacionamento entre as partes azedou ainda mais.

 
Coube à juíza dar a sentença. Durante o julgamento, segundo consta, a mãe da criança apelou. Fazia-se de vítima e discriminada. Ela teria interrompido as audiências várias vezes, para amamentar a menina. Quando era a vez dela (ou de alguma testemunha favorável a ela) falar, ela não precisava alimentar a criança. Além disso, a mulher teria usado expressões homofóbicas e insinuado que o pai da criança e seu companheiro eram promíscuos, por serem gays. A meritíssima juíza não caiu nessa. Criticou o comportamento da mulher durante o julgamento e acusou a mãe de ter usado o pai como um doador de esperma. No final da sentença, ela afirmou que tirar a criança da mãe (que ainda está amamentando) não é uma decisão fácil, mas que ela acredita que o pai da menina tem mais condições de ‘criá-la para que ela seja feliz, equilibrada, saudável e desenvolva suas potencialidades’. A mãe, que tem outras duas crianças, agora só poderá ver a menina em visitas supervisionadas.
 
 
 


Só posso imaginar que não seja mesmo fácil tomar decisões que afetam o destino de uma criança. Logo que me mudei para essa ilha, outro caso de família ocupava as manchetes. Fiz uma pesquisa  e descobri que  minha memória havia me enganado. Não foi aqui e sim nos Estados Unidos. Um casal de namorados decidiu terminar o relacionamento. A moça estava grávida e queria abortar. O rapaz queria a criança. Seu argumento era forte: o bebê era tanto dele, quanto da mãe. Se ela não queria o filho, que o desse para ele. No final, a Justiça votou a favor da mulher, argumentando que se tratava do corpo dela, sobre o qual ela tinha total autonomia. Os grupos pró-vida espernearam. As feministas comemoraram. Os destinos de três vidas foram selados numa sentença.




E ainda tem gente que acha que julgar seja fácil...


 


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