‘Religiões, sistemas morais, o dela incluído, eram como picos numa cordilheira montanhosa, vistos de uma grande distância, nenhum obviamente mais alto, mais importante ou verdadeiro do que o outro. O que há para julgar?’
(Ian McEwan)
Fiona Maye é uma juíza
da suprema corte inglesa. Altamente educada, bem relacionada, rica e amante da
música clássica. Ela é casada com um intelectual igualmente respeitado. Eles
não têm filhos. Ainda assim, cabe à ela resolver o destino de muitas crianças.
Fiona trabalha na vara de família. Ela é conhecida por sua ‘imparcialidade
divina e inteligência diabólica’, de acordo com um colega de profissão. No
entanto, ela não é real. Saiu da cabeça do escritor Ian McEwan e vive nas
páginas do ‘The Children Act’ ( ‘A balada de Adam Henry’, em português pela Cia
das Letras). Trata-se de um livro pequeno, mas recheado de reflexões e o eterno
conflito entre o racionalismo e a religiosidade.
Livro de Ian McEwan |
Gostei bastante do livro, mas este post não é uma
crítica literária. Acordei hoje com a Fiona Maye na cabeça. Na verdade, comecei
a pensar nela depois de dar uma lida rápida nas notícias do dia. Uma delas me
chamou atenção. Uma juíza chamada Alison Russell decidiu que uma menininha de
15 meses deve ser retirada imediatamente da mãe e entregue ao pai biológico e
seu companheiro. O caso é polêmico, porque mesmo aqui, a Justiça tende a julgar
em favor da mãe.
A história começou antes de a criança nascer.
Pela determinação da Justiça, nenhuma pessoa envolvida neste caso pode ter
o nome revelado, por razões óbvias. O pai da criança, um homossexual romeno
bem de vida, queria ter um filho. Procurou uma amiga, também romena, que topou
ser a barriga de aluguel. Aliás, durante a gravidez, o pai pagou as despesas da
mãe. Pela lei britânica, não se pode pagar por uma barriga de aluguel (a mulher
pode sim receber uma ‘ajuda de custo’, uma brecha na lei que acaba sendo de
praxe). No meio do caminho, ou talvez ela tivesse planejado isso desde o
princípio, a mãe da criança mudou de ideia. Queria que o bebê fosse somente
dela.
A mulher teve a criança sem contar para o pai e seu
companheiro. Quando a menina tinha um mês de idade, eles decidiram entrar com
uma ação na Justiça, para ter a guarda da criança. Contrariando uma decisão
judicial, a mulher batizou a filha com um nome que ela escolheu. A mãe é cristã
ortodoxa, o pai protestante e o companheiro do pai é católico. O famoso ame ao
próximo como a si mesmo, aqui foi mais um complicador. Os cristãos em questão
não conseguiram chegar a um acordo e o relacionamento entre as partes azedou
ainda mais.
Coube à juíza dar a sentença. Durante o julgamento,
segundo consta, a mãe da criança apelou. Fazia-se de vítima e discriminada. Ela
teria interrompido as audiências várias vezes, para amamentar a menina. Quando
era a vez dela (ou de alguma testemunha favorável a ela) falar, ela não precisava
alimentar a criança. Além disso, a mulher teria usado expressões homofóbicas e
insinuado que o pai da criança e seu companheiro eram promíscuos, por serem
gays. A meritíssima juíza não caiu nessa. Criticou o comportamento da mulher
durante o julgamento e acusou a mãe de ter usado o pai como um doador de
esperma. No final da sentença, ela afirmou que tirar a criança da mãe (que
ainda está amamentando) não é uma decisão fácil, mas que ela acredita que o pai
da menina tem mais condições de ‘criá-la para que ela seja feliz, equilibrada,
saudável e desenvolva suas potencialidades’. A mãe, que tem outras duas
crianças, agora só poderá ver a menina em visitas supervisionadas.
Só posso imaginar que não seja mesmo fácil tomar decisões que afetam o destino de uma criança. Logo que me mudei para essa ilha, outro caso de família ocupava as manchetes. Fiz uma pesquisa e descobri que minha memória havia me enganado. Não foi aqui e sim nos Estados Unidos. Um casal de namorados decidiu terminar o relacionamento. A moça estava grávida e queria abortar. O rapaz queria a criança. Seu argumento era forte: o bebê era tanto dele, quanto da mãe. Se ela não queria o filho, que o desse para ele. No final, a Justiça votou a favor da mulher, argumentando que se tratava do corpo dela, sobre o qual ela tinha total autonomia. Os grupos pró-vida espernearam. As feministas comemoraram. Os destinos de três vidas foram selados numa sentença.
E ainda tem gente que acha que julgar seja fácil...
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