Bandeira do orgulho gay |
Tive um encontro inesquecível durante um evento sobre meninos de
rua, promovido pela Unicef em São Paulo. Foi com uma das representantes do
órgão no Brasil. Pior é que não me lembro do nome dela (uma injustiça da minha
memória). Eu disse que admirava o trabalho que eles estavam fazendo e perguntei
se ela honestamente acreditava que um dia não veríamos mais crianças vivendo
nas ruas de São Paulo. Ela respondeu que sim e acrescentou: às vésperas da
abolição da escravatura no Brasil, se alguém dissesse que os escravos seriam
libertados, pouca gente acreditaria. As mudanças acontecem. Infelizmente quase
nunca no passo que gostaríamos. Mas elas acontecem. Quando leio as notícias do
dia e fico com vontade de chorar de desânimo e tristeza, penso neste breve
encontro de anos atrás.
Pensei nesta mulher mais uma vez no fim-de-semana. Os irlandeses,
frequentemente taxados de católicos retrógrados, votaram um ‘big fat yes’ , um
sim com letra maiúscula, para a legalização do casamento gay. Dezenove países
já atravessaram essa ponte, mas foi a primeira vez em que o assunto foi
definido pelo voto popular, através de um referendo. O voto não era
obrigatório, mas ainda sim o comparecimento às urnas foi alto (passou dos 60%).
Muitos irlandeses, que não moram mais na Irlanda, fizeram questão de voltar ao
país só para votar. O resultado não poderia ser mais claro: 62.1% ( mais de 70% em Dublin) disseram que queriam
que a constituição fosse alterada, para legalizar o casamento entre duas
pessoas do mesmo sexo. O não venceu em apenas um pequeno distrito eleitoral
numa área rural.
Cartaz de Campanha |
O jornal 'The Independent' publicou um artigo escrito por um ativista irlandês
homossexual, às vésperas da votação. No texto, Ross Golden Bannon narra as
dificuldades que passou durante a campanha pelo sim, batendo de porta em porta,
pedindo apoio para a legalização do casamento gay. Ele fala do inferno
de crescer ‘diferente’ num país católico e conservador, dos desvios que tinha
que tomar para ir comprar alguma coisa, para não ter que topar com adolescentes que,
na certa, iriam humilhá-lo. Para Ross, cada não que ele recebeu doeu muito.
Uma nação inteira iria decidir se ele
era ou não igual aos outros. Embora sem gostar, ele sabia que era parte do jogo.
Um jogo arriscado. Não faz muito tempo, precisamente em 1987, os
irlandeses participaram de um referendo para decidir se o divórcio deveria ser
ou não legal. O não venceu naquela ocasião. O sim desta vez indica que no
espaço de apenas uma geração a sociedade irlandesa passou por uma transformação
profunda. O resultado do plebiscito
mostra que a rachadura da igreja católica num dos países mais conservadores deste
lado da Europa é enorme. O abuso sistemático praticado por padres pedófilos e
sádicos durante anos (e com o conhecimento do alto clero irlandês) agora paga
seu preço. A igreja católica foi o poder mais influente nos primeiros sessenta
anos da República da Irlanda, moldando governos e ditando regras culturais,
morais e políticas no país.
O plebiscito mostrou que o país não é mais o mesmo. O arcebispo irlandês
Diarmuid Martin votou contra, ainda que afirmando que os direitos dos gays
deveriam ser respeitados. Agora ele diz que a igreja católica em seu país
precisa de um choque de realidade. Ele reconhece que a igreja deve tentar se
reconectar com os jovens para reconquistar seu papel de autoridade moral e
cultural da Irlanda. Ele se disse intrigado com o fato de que a maioria dos
cidadãos que votaram sim passou doze anos estudando em escolas católicas e
concluiu: a nossa mensagem não está sendo ouvida.
Há os que argumentam que outra pá de cal no poder da igreja católica na
Irlanda foi a entrada do país na comunidade europeia - uma poderosa alavanca econômica, que levantou o
país da pobreza a um dos mais prósperos da Europa. Com a prosperidade, chegaram
imigrantes e novas formas de ver o mundo. Em 1995, o divórcio foi aprovado em
outro referendo. Dois anos antes, em 1993 o homossexualismo foi
descriminalizado, 30 anos depois do Reino Unido.
Irlanda e Irlanda do Norte se separaram na década de 20 do século passado. A Irlanda do Norte preferiu continuar como parte da Grã-bretanha. As disputas entre os dois países até hoje não foram totalmente remediadas, mas este é assunto para outra hora. Os outros países do Reino Unido (Inglaterra, Escócia e País de Gales) aprovaram o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A Irlanda do Norte se recusou a discutir o assunto. Diz que a União Civil está de bom tamanho e que casamento é só entre homens e mulheres. Qual será o peso do referendo no país vizinho sobre a questão, só tendo uma bola de cristal para saber.
Até os anos 70 na Irlanda, a servidora pública que se casasse tinha que
deixar o emprego. Era a lei. Falando em lei, até 1980, a camisinha era ilegal
na Irlanda. Fico chateada de não me lembrar do nome e nem do rosto da mulher
com quem falei rapidamente naquele evento em São Paulo no século passado. Pelo
menos não me esqueci de sua mensagem. Mulher sabida aquela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário