* Da Gaveta
Essa coisa chamada
meia-estação-primavera-verão na Inglaterra é bem engraçada. Dizem que o tempo
muda. Tudo bem é verdade que você olha pela janela às oito da noite e está
claro ainda. Às sete e meia começa a escurecer. O céu então fica lindo. Num tom de
azul marinho que faz lembrar um quadro holandês, daqueles bem escuros, mas com
uma luz especial no pontinho certo da tela. O céu londrino a noitinha é
bonito de a gente ver. É carregado de paz. Bem diferente daquelas noites
brancas-aflitas em São Paulo, quando o reflexo das luzes na poluição faz um
escudo de leite desnatado no céu.
Fora o entardecer do
começo de junho, o clima não é o que se pode chamar de paradisíaco. Chove um
monte. Venta ainda mais. Num só dia faz calor, faz frio, fica um tempinho
gostoso e assim vai. Mas o povo se prepara para dias melhores. Ah, sim... De
repente multiplicam-se os folhetos e catálogos de móveis para o verão. Muita
mesa de piquenique. Muito guarda-sol. Todos os apetrechos para um jardim onde
amigos sorridentes vão desfrutar alegres seus minguados churrascos com
hambúrgueres e pão.
Nas lojas de roupas, a
referência ao verão é explícita demais para ser levada a sério. Os vestidos têm
mais babados que saia de baiana. São vaporosos. Ainda não vi aquelas
estampas havaianas com hibiscos cor-de-rosa em camisas de fundo vermelho, mas
os vestidos não ficam muito atrás…
Também é só sair um
solzinho que as inglesas tiram do armário umas bolsas que parecem cestinhas.
Com a boca bem aberta em cima. Ali, elas enfiam água, jornais e mais uma
infinidade de produtos de primeira necessidade. Fico sempre intrigada como é
que elas andam de metrô com aquelas bolsas tão desprotegidas. Aprendi desde
pequena que “bolsa tem que ter fecho, senão ladrão leva sua carteira e você nem
vê”.
É interessante ver como
esse povo se comporta nos trens. Parece que nasceram para isso. Agem com tanta
familiaridade… Espalham coisas pelo chão. São craques em comer comida
engordurada, enquanto equilibram o guarda-chuva num braço e um livro no outro.
Todo mundo lê muito em Londres. Pode até ser o Metro News que sai que nem pão
quente de manhã ( mais porque é de graça do que por qualquer outra razão). O
certo é que tem sempre alguém lendo alguma coisa no “tube”**.
Eu que ainda não tenho
essa intimidade toda com a coisa, não consigo ler no metro sem sentir tontura.
Outro dia estava matando tempo vendo os anúncios pregados na lateral do vagão,
quando entraram umas figuras saídas de um romance inglês.
O escocês, de mais ou
menos uns setenta anos, tinha pedigree. Vi de cara. Corpo esbelto.
Paletó de lã escama de peixe com protetores de camurça nos cotovelos. Calça de
veludo. Boina de lã. Uns óculos dobráveis e sem hastes presos numa corrente
discreta de ouro. Guarda-chuva de cabo longo. Ele foi o primeiro a entrar. Com
olhos de falcão avistou um lugar vazio ao meu lado. Já ia assentando quando foi
interceptado com o traseiro no ar e os joelhos flexionados.
O inglês parecia ter a
mesma idade. Também tinha pedigree. Paletó azul escuro com botões dourados.
Gravata com um brasão de família estampado. Calça de risca de giz. Guarda-chuva
de cabo longo. Eles eram farinha do mesmo saco.
“I beg your pardon”,
disse o inglês ao escocês. Neste momento o alto falante do trem começava a
anunciar: “This is a District Line train calling at…” Queria ouvir o que os
dois senhores conversavam, mas estava tudo muito barulhento. No meio daquele
ruído todo compreendi que o inglês solicitava o lugar para a “lady” que também
havia entrado no vagão.
Contrariado e vencido
por anos de educação formal, o escocês cedeu seu assento para a lady em
questão. Ela era, é claro, a senhora-do-inglês. Muito altiva e sem dispensar
sequer um olhar para os outros mortais daquela District Line, ela tomou o lugar
como se fosse um direito de nascença. Sentou e começou a ler um jornal.
Estiquei os olhos para ver o que era. “Church news” eu vi impresso no alto da
página.
Levantei os olhos e vi
Escócia e Inglaterra num duelo silencioso de queixos erguidos e expressões
enrijecidas. Os dois estavam de costas um para o outro. O espaço entre eles era
exíguo. Desenhei uma espada imaginária passando no meio daqueles dois. É óbvio
que a lamina iria terminar aquele percurso congelada. Ambos apoiavam uma mão na
barra de ferro e a outra nos respectivos guarda-chuvas. O trem sacolejava, mas
eles estavam ali, se maldizendo mentalmente, impassíveis, irredutíveis. Se
odiando.
Passou uma estação e
depois outra. Perdi o interesse. Dispersei. Quando voltei meu olhar para onde
eles estavam, o escocês tinha desaparecido. Sobraram o inglês e a
mulher-interessadíssima-nas-últimas-da-igreja. Notei que mister-inglês não
tirava os olhos de mim. Sabia que ele estava prestes a confiscar mais um
assento: o meu.
Sempre levanto para os
mais velhos, para as grávidas, para mães com bebês. Mas aquele homem me olhava
de um jeito tão autoritário, que resolvi não ceder meu lugar para a empáfia.
Subitamente me senti defensora dos direitos dos povos da América Latina.
Precisava defender aquele espaço!
Ele havia me fisgado.
Quando dei por mim,
outro duelo acontecia naquele trem. Desta vez era comigo. O homem dobrava um
pouquinho os joelhos indicando que estava cansado de ficar em pé. Eu estudava com
atenção o mapa do metrô que já sei de cor e salteado.
Enquanto isso, os outros
passageiros faziam aquela cara de não estou aqui. Sabe como é, né? Aquele
olhar-desligado-fixo-em-lugar-nenhum, como se a alma tivesse ficado do lado de
fora, esperando ser teletransplantada para a estação de destino e religada ao corpo que lhe pretence.
E o trem seguia viagem.
E o homem me encarava
impaciente.
E eu ignorava
solenemente.
Aquele duelo de
teimosias podia durar para sempre. Não durou. Uma mão de mulher tocou o braço
do inglês e disse: “Dear, this is our station”. Ele não quis ouvir o chamado da
mulher. Estava ocupado demais comigo. Ela insistiu. Ele saiu daquele transe,
virou as costas para mim e foi caminhando devagar pela estação.
Respirei aliviada.
Cheguei em casa como quem chega de uma batalha, depois de matar um dragão. O
dragão de São Jorge, o padroeiro da Inglaterra.
Santa ironia, St George era turco!
(Londres/ Junho 2003)
* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico
chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens,
digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de
notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de
quando eu ainda era novata na terra da Rainha.
** Este texto obviamente foi escrito antes dos
smartphones. Hoje em dia os passageiros estão com os olhos colados nos
equipamentos eletrônicos.
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