quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Noite da Fogueira


Nesta Ilha que adora uma tradição, cinco de novembro é o dia de acender fogueira e soltar alguns fogos de artifício. Neste dia, os ingleses comemoram a derrota de Guy Fawkes, um vilão que faz parte do repertório nacional. Talvez você já tenha ouvido o nome dele, graças ao filme ‘V de Vingança’ (lançado em 2005). As máscaras de Guy Fawkes, uma peça-chave do enredo do filme, são usadas no mundo inteiro por manifestantes, que protestam contra o que eles consideram governos autoritários. O ‘Da Ilha’ de hoje traz um texto Da Gaveta, da minha primeira Bonfire Night.


Máscara de Guy Fawkes
 

Bonfire Night
* Da Gaveta
 
 

Conta a história que uma querela entre protestantes e católicos, no tempo em que Shakespeare já era uma pena afiada por essas bandas, terminou muito mal para um tal Guy Fawkes. O sujeito, primeiro rascunho de Unabomber, queria explodir o Parlamento e instalar o catolicismo na Inglaterra. O plano mal traçado, que não contava com a pólvora umedecendo nos porões de Westminster e nem com a mudança dos parlamentares, com medo da peste, acabou nas mãos do rei Jaime I. É que ao contrário do sucessor americano, o conspirador inglês (na era pré-binladiana era conspiração. Hoje seria terrorismo e com certeza com conexões com a Al-Qaeda) deu com a língua nos dentes e foi pego no pulo. O castigo? Bom, primeiro ele foi enforcado. Quando estava quase morrendo, tiraram a corda e abriram uma cruz no peito do infeliz. Em seguida, num requinte de sadismo, tiveram a ideia de remover as vísceras e finalmente esquartejaram o coitado. No dia cinco de novembro de 1605, ele foi pego guardando a pólvora nos porões do parlamento e até hoje ninguém esqueceu.



Guy Fawkes

 

Todo cinco de novembro acontece no Reino Unido uma versão local de festa junina, com fogueira e fogos de artifício: é a ‘bonfire night’. Eles não queimam o Judas e sim o Guy Fawkes. O foguetório rola em vários parques e escolas da Inglaterra. Fomos ao Wimbledon Park, no sul de Londres, perto de onde se disputa um dos torneios de tênis mais famosos do mundo.
 
 O outono em Londres já é bem friozinho, mas até que a temperatura não estava de arrepiar. Vai ver que é por isso que uma multidão também teve a mesma ideia. A rua de acesso ao parque parecia mais uma rave que uma festa junina. Muitos “mudernos” e ambulantes vendendo aqueles acessórios que brilham no escuro.
 

Chegamos ao coração da festa pouco antes da segunda fogueira ser acesa. Uma pilha de metros e metros de madeira, com um boneco numa forca, começou a arder sem muito estardalhaço. Bonito, aquele fogaréu deixou o povo muito animado. Mas nada de música, quentão, canjica e chapéu de palha. Tinha lá umas barraquinhas. Tradicional e indefectível fish n’chips (peixe frito com batata frita, tudo afogado no vinagre). Tinha também a barraca dos mais gordurentos ainda: linguiça com pão murcho, bacon e hambúrguer- sola-de-sapato. E uma última, mais divertida, mas não menos junk, de puxa-puxa e marshmallow.
 

 Apesar do fogo, estava escuro à beça, a grama empapada por dias intermináveis de chuva e o povo se acotovelando para ficar perto da cerca e ver os fogos . “Ei turma, para que o stress? Os fogos a gente vê é lá no céu. ” A frase saiu da boca de uma menina de uns sete anos, que ao final soltou um sorrisinho triunfante. Ri para ela, como quem diz: é isso aí, não dá mole não. 

Se a fogueira foi acesa sem pompa, o mesmo não se pode dizer dos fogos de artifício. Uma caixa de som gigantesca soltou uns acordes medonhos e graves e a primeira bomba explodiu no céu. A acústica era uma tristeza, mas consegui ouvir “live and let die” no meio da música. Fiquei esperando Bond, James Bond, mas ele não apareceu. Nem como espião da rainha caçando conspiradores. Olhei para o lado e meu amigo Guy Fawkes ardia na fogueira, completamente largado. 

Fogos de artifício até quando são feios, são bonitos. Só queria que fossem menos barulhentos. Eles não estavam lá muito bem coordenados com a trilha sonora, quando saiu do aparelho de som o tema de Superman. Agora sim. Vimos fogos pipocando no céu branco de pólvora também ao som de Batman e Star Wars.
 

No momento sossego da mamãe, eles me saíram com o arco-íris de ‘O mágico de OZ’. Nesta altura, uma garoa irritante, parecendo umas agulhinhas congeladas de acupuntura, furava os nossos narizes apontados pra cima. Aí veio uma sucessão de corações, cor-de-rosa, vermelho, verde… desenhados com fogo. E já estava adivinhando a música encerramento da festa, o gran-finale: “God Save The Queen”.

 

 Ainda bem que não apostei. Teria quebrado a cara. Só depois fiquei sabendo que o hino só toca em jogo de futebol, em solenidades ou quando sua majestade em pessoa dá o ar da graça.

A rainha não deu as caras na festa e o show pirotécnico tinha acabado. Queria ir ver de perto aqueles brinquedos de parque de cidade do interior. Aquelas cadeirinhas que giram presas em correntes, carrossel e carrinho bate-bate. Mas fomos aos poucos levados pela massa para o portão de saída. 
 

 Não tive nem tempo de decantar as imagens que tinha acabado de ver. Nem pude andar devagar pela rua, observando as casas e me sentido feliz por poder passear no escuro, de noite, sem medo de ladrão ou sequestro relâmpago. Passava das nove da noite de uma terça-feira-dia-de-trabalho. Era preciso chegar rápido em casa. Toda aquela massa anglicana e devidamente vingada tem pressa e sabe muito bem aonde quer chegar.
(Novembro/ 2002)





* Da Gaveta:Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de quando eu ainda era novata na terra da Rainha.
 

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