Nesta Ilha que adora uma tradição, cinco de
novembro é o dia de acender fogueira e soltar alguns fogos de artifício. Neste
dia, os ingleses comemoram a derrota de Guy Fawkes, um vilão que faz parte do
repertório nacional. Talvez você já tenha ouvido o nome dele, graças ao filme ‘V
de Vingança’ (lançado em 2005). As máscaras de Guy Fawkes, uma peça-chave do
enredo do filme, são usadas no mundo inteiro por manifestantes, que protestam
contra o que eles consideram governos autoritários. O ‘Da Ilha’ de hoje traz um
texto Da Gaveta, da minha primeira Bonfire Night.
Bonfire Night
* Da Gaveta
Conta a história que uma querela
entre protestantes e católicos, no tempo em que Shakespeare já era uma pena
afiada por essas bandas, terminou muito mal para um tal Guy Fawkes. O sujeito, primeiro rascunho de
Unabomber, queria explodir o Parlamento e instalar o catolicismo na Inglaterra.
O plano mal traçado, que não contava com a pólvora umedecendo nos porões de
Westminster e nem com a mudança dos parlamentares, com medo da peste, acabou
nas mãos do rei Jaime I. É que ao contrário do sucessor americano, o
conspirador inglês (na era pré-binladiana era conspiração. Hoje seria
terrorismo e com certeza com conexões com a Al-Qaeda) deu com a língua nos
dentes e foi pego no pulo. O castigo? Bom, primeiro ele foi enforcado. Quando
estava quase morrendo, tiraram a corda e abriram uma cruz no peito do infeliz.
Em seguida, num requinte de sadismo, tiveram a ideia de remover as vísceras e
finalmente esquartejaram o coitado. No dia cinco de novembro de 1605, ele foi
pego guardando a pólvora nos porões do parlamento e até hoje ninguém esqueceu.
Guy Fawkes |
Todo
cinco de novembro acontece no Reino Unido uma versão local de festa junina, com
fogueira e fogos de artifício: é a ‘bonfire night’. Eles não queimam o Judas e
sim o Guy Fawkes. O foguetório rola em vários parques e escolas da Inglaterra.
Fomos ao Wimbledon Park, no sul de Londres, perto de onde se disputa um dos
torneios de tênis mais famosos do mundo.
Chegamos ao coração da festa pouco antes da segunda fogueira ser acesa.
Uma pilha de metros e metros de madeira, com um boneco numa forca, começou a
arder sem muito estardalhaço. Bonito, aquele fogaréu deixou o povo muito
animado. Mas nada de música, quentão, canjica e chapéu de palha. Tinha lá umas
barraquinhas. Tradicional e indefectível fish n’chips (peixe frito com batata
frita, tudo afogado no vinagre). Tinha também a barraca dos mais gordurentos
ainda: linguiça com pão murcho, bacon e hambúrguer- sola-de-sapato. E uma
última, mais divertida, mas não menos junk, de puxa-puxa e marshmallow.
Apesar do fogo, estava escuro à beça, a grama empapada por dias
intermináveis de chuva e o povo se acotovelando para ficar perto da cerca e ver
os fogos . “Ei turma, para que o stress? Os fogos a gente vê é lá no céu. ” A
frase saiu da boca de uma menina de uns sete anos, que ao final soltou um
sorrisinho triunfante. Ri para ela, como quem diz: é isso aí, não dá mole não.
Se a fogueira
foi acesa sem pompa, o mesmo não se pode dizer dos fogos de artifício. Uma
caixa de som gigantesca soltou uns acordes medonhos e graves e a primeira bomba
explodiu no céu. A acústica era uma tristeza, mas consegui ouvir “live and let
die” no meio da música. Fiquei esperando Bond, James Bond, mas ele não
apareceu. Nem como espião da rainha caçando conspiradores. Olhei para o lado e
meu amigo Guy Fawkes ardia na fogueira, completamente largado.
Fogos de artifício até quando são feios, são bonitos. Só queria que
fossem menos barulhentos. Eles não estavam lá muito bem coordenados com a
trilha sonora, quando saiu do aparelho de som o tema de Superman. Agora sim.
Vimos fogos pipocando no céu branco de pólvora também ao som de Batman e Star
Wars.
No momento sossego da mamãe, eles me saíram
com o arco-íris de ‘O mágico de OZ’. Nesta altura, uma garoa irritante,
parecendo umas agulhinhas congeladas de acupuntura, furava os nossos narizes
apontados pra cima. Aí veio uma sucessão de corações, cor-de-rosa, vermelho,
verde… desenhados com fogo. E já estava adivinhando a música encerramento da
festa, o gran-finale: “God Save The Queen”.
Ainda
bem que não apostei. Teria quebrado a cara. Só depois fiquei sabendo que o hino só toca em jogo de futebol, em solenidades ou quando sua majestade em pessoa dá o ar da graça.
A rainha não deu as caras na festa e o show
pirotécnico tinha acabado. Queria ir ver de perto aqueles
brinquedos de parque de cidade do interior. Aquelas cadeirinhas que giram
presas em correntes, carrossel e carrinho bate-bate. Mas fomos aos poucos
levados pela massa para o portão de saída.
Não
tive nem tempo de decantar as imagens que tinha acabado de ver. Nem pude andar
devagar pela rua, observando as casas e me sentido feliz por poder passear no
escuro, de noite, sem medo de ladrão ou sequestro relâmpago. Passava das
nove da noite de uma terça-feira-dia-de-trabalho. Era preciso chegar rápido em
casa. Toda aquela massa anglicana e devidamente vingada tem pressa e sabe muito
bem aonde quer chegar.
(Novembro/ 2002)
* Da Gaveta:Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de quando eu ainda era novata na terra da Rainha.
* Da Gaveta:Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de quando eu ainda era novata na terra da Rainha.
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