Foi uma daquelas ideias
bem-intencionadas, que se espalham como fogo no mato seco. O que nos dias de
hoje a gente classifica como um viral. Começou no Facebook. Uma sobrevivente de
violência doméstica aqui da Ilha criou o ‘Black Dot Campaign”, ou a Campanha do
Pontinho Preto. “Se alguém lhe mostrar um ponto preto desenhado na palma da
mão, chame imediatamente a polícia. Trata-se de um pedido de socorro de uma
pessoa que está sofrendo violência doméstica".
Campanha do Pontinho Preto |
Apesar de aparentemente
ter ajudado 49 mulheres a saírem de relacionamentos abusivos, a campanha não
sobreviveu uma semana e enfureceu muita gente que trabalha diariamente no
combate à violência doméstica. Por quê? Porque as vítimas e os abusadores não
vivem em universos separados. É óbvio que se uma pessoa qualquer na rua pode
entender o novo código, por que não o agressor? Existe o temor de que a
iniciativa, ao invés de trazer uma solução para o problema, aumente o número de
homicídios de mulheres.
Toda semana na
Inglaterra e País de Gales, duas mulheres são assassinadas por seus parceiros, namorados, maridos e ex. 70% destes crimes acontecem quando a mulher decide se separar do
agressor. Fato.
Esse assunto me faz
pensar imediatamente no livro ‘A cidade do Sol’ de Kaled Hosseini, que escreveu
‘O Caçador de Pipas’, um best seller que virou filme. O livro conta a história
de duas mulheres, que dividem o mesmo marido: um tirano, que abusa, maltrata e
destrói a alma dessas mulheres. É uma obra de ficção, mas mesmo assim é uma
leitura dolorosa, porque retrata uma realidade tristíssima. Embora
em algumas culturas o abuso seja entendido como um fator cultural, ele ocorre
em todos os países e em todas as classes sociais. Aqui na Ilha estima-se que um
milhão e quatrocentas mil mulheres sejam ou tenham sido vítimas de abuso
doméstico. Uma situação que afeta também um número enorme de crianças (uma em
cada sete menores de 18 anos). Uma tragédia nacional.
Uma amiga contou que a
escola do filho teve que adotar medidas especiais para proteger um dos alunos.
Todas as salas de aula passaram a ser trancadas e alarmes foram instalados.
Tudo porque o pai do garoto descobriu onde eles estavam vivendo e ameaçava se vingar
da ex-mulher. Ela havia mudado de nome e de cidade, com a ajuda de programas de
proteção às vítimas. A iniciativa da escola
mostra que eles levam o perigo a sério.
Cartaz de uma campanha contra a violência doméstica |
E não são somente as escolas. Na linha de frente do
combate à violência doméstica estão várias organizações. Uma delas é a WHAG – Women’s
housing action group, uma entidade sem fins-lucrativos, que trabalha em conjunto
com as prefeituras locais e oferece acomodação para as pessoas vítimas de
violência doméstica. Nos refúgios, as famílias que tentam escapar do agressor
ficam até 13 semanas. Lá elas recebem assistência médica, jurídica,
psicológica, além de treinamento profissional, para que possam encontrar
trabalho e serem autossuficientes. O programa é fantástico, mas a grana é
curta. O governo dos conservadores tem cortado sistematicamente os programas
sociais, para colocar as contas em dia. Semana passada recebi um folheto da
prefeitura local dizendo que eles já cortaram muitos milhões de libras do orçamento e que
vão ter que cortar ainda mais, para atingir as metas. De fato, entre 2010 e
2014, o número de refúgios para vítimas da violência doméstica caiu 17% e, a
julgar pela correspondência que recebi semana passada, esse número vai cair
ainda mais.
O pior é que ainda tem
gente por aqui que acredita que ‘mulher de malandro gosta de apanhar’. O
pensamento local tem sotaque diferente, mas a raiz é a mesma. Por que essas
mulheres deixam que os parceiros abusem delas? Por que não põem a viola no saco
e hasta la vista? As formas de abuso e de controle são muito complexas e
destroem a autoestima das vítimas. Elas se sentem totalmente incapazes de
enxergar uma saída. Numa inversão de valores, as vítimas se sentem
envergonhadas, quando a vergonha deveria ser do agressor. Por isso o trabalho
de assistência às sobreviventes é tão importante.
Cartaz alerta para a violência doméstica |
Minha memória para
números é uma tristeza. Mas sou capaz de me lembrar dos textos e das
ilustrações dos meus livros de escola. Escrevendo este post, pensei numa
história que eu achava que já tinha esquecido. A crônica estava num livro de
português, daqueles que a gente usava para fazer interpretação de texto. Era
para ser engraçadinho. Contava a história de um matuto, que havia acabado de se
casar. Ele pôs a noiva no lombo de um burrinho e lá se foram os dois. Um pouco
adiante, o burro tropeçou. O matuto disse: “Primeira vez”. Alguns quilômetros
depois, o burro tropeçou mais uma vez, quase derrubando a noiva. “Segunda vez”,
disse ele rosnando. Não demorou muito e o burrinho tropeçou
novamente. Sem paciência, o homem tirou a esposa de cima do burro, apontou sua
espingarda e antes de atirar gritou: “terceira vez! ” Ao ver o burrinho
estirado no chão, a moça choramingou horrorizada: “ mas meu marido...” Ele a
interrompeu dizendo: “Primeira vez!”
Duvido,
ou pelo menos gostaria de acreditar, que os livros de português de hoje ainda
tenham o texto acima. O politicamente correto ainda não havia sido inventado, eu
poderia dizer. Mas não vou. Por que banalizar um assunto sério, que de engraçadinho
não tem nada? Histórias como a do matuto
tecem fio a fio o manto do repertório cultural de um povo e tornam mais difícil
para as vítimas escapar da violência.
Aqui na Ilha, nunca ouvi história semelhante à do matuto. Os ingleses são mais discretos. As sutilezas do pensamento nacional são menos escancaradas. Eles não gostam de falar sobre violência doméstica. Talvez por isso mesmo, ela seja uma assassina silenciosa. Dá até para entender porque uma das vítimas inventou a campanha do pontinho preto.
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