quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Um teto londrino


Esta semana alguns jornais publicaram uma ilustração que mostra o mapa do metrô de Londres de um jeito diferente. Ao lado de cada estação, o valor médio do aluguel mensal de um apartamento de UM quarto (em geral numa casa que foi subdividida). O mais baratinho fica em Hatton Cross, praticamente na pista do aeroporto de Heathrow, onde o constante tráfego de aviões não é uma das coisas mais agradáveis do mundo. Mesmo assim, quem quiser ter o privilégio terá que pagar £324 por mês (no câmbio de hoje R$ 1940,00). Para quem dinheiro não é problema, a pedida é o Hyde Park Corner, onde mora a realeza. O aluguel custa quase três mil libras. Coisa de dezoito mil reais por mês.
 
 


 
 

Existe uma demanda absurda por imóveis na capital e isso empurra o preço para as alturas, mas não é só isso. Os donos dos imóveis ficam mais seletivos, muitos deles não aceitam inquilinos com crianças por exemplo. Outros, apesar de ser ilegal, discriminam estrangeiros, gays e assim por diante.

 

by Shame Walsh - Unsplash





Logo que cheguei aqui, verde de tudo, tive que encarar um 'house-hunting' junto com meu marido (que na época era namorado); fomos a campo buscar um lugar para alugar. Já faz um tempão, mas ainda no começo deste milênio a falta de moradia já era um problema.


 
A história estava guardada na gaveta...
 

Imigrantes sem teto

 * Da Gaveta


Vamos combinar Londres é uma cidade grande. Vamos combinar que muito antes dos romanos chegarem aqui e batizarem esse pedaço de terra de Londinium, Londres já estava aqui. Vamos combinar que oito milhões e meio de pessoas vivem aqui, porque já nasceram londrinos, pelo sonho da fortuna ou por um acaso qualquer. Vamos combinar que até hoje não vi nenhuma estação de metrô que não tivesse na frente, ou nas redondezas, uma imobiliária com anúncios de compra e venda de imóveis estampados nas vitrines. Vamos combinar que toda semana entopem a caixa de correio com jornais e classificados de imóveis. Por que então ainda não encontramos um cantinho para chamar de nosso?







 

Dois meses e meio depois de desembarcar em solo britânico, não aguento mais falar, ouvir ou ler sobre o exorbitante preço dos imóveis em Londres. Este iê-iê-iê inglês (desafinado e insosso) é tão baixo astral quanto os pubs escuros, sujos, com um indefectível barman mal-humorado, servindo cerveja quente e vigiando a hora de tocar o sino e fechar o bar. Mas não tem jeito, todos os fins-de-semana saímos novamente na esperança de encontrar um lugar decente para morar.

Semana passada decidi ser mais independente e coordenar as buscas. Comprei o ‘Loot’ um jornal de classificados, selecionei os imóveis para o nosso bico. Afinei o inglês (sempre é mais difícil ao telefone) e deixei muitos recados em muitas secretárias eletrônicas até que uma voz atendeu ao meu chamado. Para o meu azar, o sujeito era tão ou mais gringo do que eu.

Ouvi a voz dizer do outro lado com um sotaque bem asiático (paquistanês, talvez?): “Very good price”. Tentei acertar a visita para o sábado de manhã. Depois de uns minutos tentando entender o nome do corretor, pedindo que ele soletrasse e repetisse, ele me disse que eu poderia ir até a imobiliária pegar a chave. Exausta, concordei.

No sábado de manhã, ligamos para a imobiliária e nosso amigo concordou que seria melhor nos encontrarmos na casa que estava para alugar, perto de onde moramos. A sala era decente. Tamanho honesto, se bem que tinha uma lareira falsa que era duro de encarar. O ‘focal point’, o lugar de destaque da sala como dizem os programas de decoração que infestam as tevês, era emoldurado por uma madeira entalhada e com um friso dourado de gosto duvidoso. Na base, uma imitação de mármore branco, que também não ornava muito. Decidi que dava para viver com aquele monstrinho na sala. Fazer concessões, aprendi rápido, era o nome do jogo. Entramos no quarto: um desafio à física. Sabe aquela lei de que diz que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço e no tempo? Esquece! Caber um casal, uma cama e um guarda-roupa naquele cubículo, só mesmo com muita boa vontade. Pronto, botão ejetor apertado mais uma vez.

Voltamos para casa a tempo de vermos o jogo do Brasil contra a China. Foi um alívio perceber que nem tudo é difícil nesta vida. Nunca fui fã de futebol. Mas é Copa do Mundo e estou fora de casa.... Meu dia estava melhorando consideravelmente. Recebemos o retorno de um dos recados, que eu havia deixado na véspera. Combinamos de ver a casa no dia seguinte.




by Rob Bye- Unsplash
 

 

Domingo amanheceu chuvoso. Se tivesse que escrever sobre os fins-de-semana ingleses, provavelmente poderia começar com “domingo amanheceu muito chuvoso”, ‘very often’. Fomos até Portobello procurar um português que vende guaraná e coxinha. Não me imaginava fazendo uma coisa dessas tão cedo, mas estava chovendo, o Brasil tinha vencido o jogo, não tínhamos muito que fazer, além de matar o tempo até a hora de visitar mais um imóvel. Notting Hill é um passeio que todo turista faz em Londres. É recomendado por qualquer guia da cidade e com razão. A coxinha não valeu a viagem, mas não tinha importância. Fizemos hora num café e fomos ver a casa, que estava para alugar.

Chegamos ao número onze da Kennelworth Avenue. Estávamos quinze minutos adiantados (aqui é coisa que se menciona). Batemos a campainha e um cara nervoso veio atender. Era um casão. O homem, John, entrou agitado. Vi zebras de relance nas fotos que cobriam uma das paredes. Estávamos olhando ao redor, mas John tinha pressa. Praticamente nos empurrou para dentro da biblioteca. Uau! Que biblioteca. Era forrada de livros do chão ao teto. Mal entramos no cômodo e ele ordenou apressado: Feche a porta, feche a porta. Yes, Sir. Obedeci prontamente.

Muito agitado e tentando parecer muito eficiente, ele sacou uma folha de papel com muitos nomes números. Nos informou que dezessete pessoas já tinham ido lá ver a casa, que estava para alugar, segundo ele, por um preço realmente muito bom. Ele perguntou o que o Ian fazia da vida.Ele tentou puxar conversa e disse que tinha visto as belas fotos de viagem na parede e perguntou se o John gostava de viajar. Ele disse que as fotos eram do pai ‘ que não está mais entre nós’. Sujeitinho macabro aquele.

Ele era todo arrumadinho. Arrumadinho demais naquela biblioteca caótica. Tinha uma profunda cicatriz no antebraço direito. Estava intrigada com o que via ali, tentando decifrar o que havia de errado, quando ele disparou sua metralhadora giratória em minha direção. Perguntou o que eu fazia. Nestas horas adoro brincar de ‘mim não fala inglês’. Ian me socorreu e enquanto os dois papeavam, desliguei meu ‘translator’ para me concentrar no que estava ao meu redor.

Não sei em que ponto da conversa, John decidiu que ia nos mostrar a parte da casa que estava para alugar. Saímos da biblioteca e começávamos a descer uma escadinha, quando ele ordenou: “Feche a porta!”. Ops, fechei a porta de novo.

Foi tudo muito rápido, mas quando dei por mim, estávamos num porão com uma cama baixa e um armário com portas espelhadas, que cobria a parede de fora a fora. O chão era gelado. Não tinha janelas. Parecia mais um cativeiro do que um quarto. Quando entramos no banheiro decadente, com torneiras enferrujadas e teto baixo, John calou a boca. Pensou um pouco e disse num tom estranhíssimo, teatral mesmo: Paz. ((...)) “Escutem, vocês estão ouvindo alguma coisa?” Nós, cordeirinhos, balançamos as nossas cabeças negativamente. “É isso, ele disse. Este lugar tem que ser assim, pacífico”. Senti um calafrio subindo pela espinha.

Subimos um pequeno lance de escada e chegamos à sala. De um lado, prateleiras de fórmica branca caindo aos pedaços com frisos de metalon arrematando as beiradas. Um jogo de mesas e cadeiras, que eu tenho certeza, foi prêmio do Baú da Felicidade na década de setenta. E finalmente um arremedo de sofá com um colchão encardido enrolado em cima. O lustre era pavoroso. Uma coisa indescritível que talvez, talvez, tenha sido ok na década de cinquenta. Senti uma onda de pena pelo tal John-tenta-manter-as-aparências. Foi aí que ele se traiu. Até então ele batia na tecla de que era um negócio da China e que muita gente, mas muita gente mesmo, estava interessada em alugar o porão. Foi então que ele disse que duas pessoas haviam pagado o depósito e desistido de morar lá. Tive que desviar o meu olhar do Ian. Tive medo de cair na gargalhada.

Nosso tour guiado ainda não havia acabado. Chegamos até a cozinha. John disse para não repararmos na bagunça. Tudo ia ser arrumado em tempo. A antiga moradora havia se mudado horas antes. Imaginei que só sendo muito nem aí para a Hora do Brasil que alguém conseguiria morar naquele lugar. Quero dizer, o tamanho era joia, a rua bacana, mas aquele buraco? Tive que segurar a minha boca, para não perguntar o que tinha levado a antiga moradora a se mudar. Consegui conter essa pergunta, mas outra escapuliu, antes que eu me desse conta: O que você faz da vida, John?  Ele respondeu que lia muito, por isso precisava de paz.

Ele ia nos mostrar o quintal, mato grande, tudo verde escuro-Inglaterra, quando decidi que já era o bastante. Eu heim? Sou mineira! E se tropeçasse no esqueleto do pai-dele-que-já-não-está-mais-aqui-mas-que- trabalhou-um-bocado-para-deixar-aquela-casa-para-o-John-faz-porcaria-nehuma-da-vida?

Fomos embora rapidinho daquele manicômio, prometendo ligar depois. Na rua, caímos na risada, mais de nervoso do que qualquer outra coisa. O Ian confessou que ficou preocupado, pensando que eu tinha gostado da casa. Eu fiquei fantasiando que se quisesse escrever um livro, alugava aquela casa e ficava de olho no John. Só não sei se ia dar num thriller ou policial. Voltamos para casa com o passo apertado. Olhando por cima dos ombros, só para ter certeza de que ninguém estava nos seguindo.

 

(Junho 2002)


* Da Gaveta:Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens, digamos nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias Da Gaveta. São impressões de quando eu ainda era novata na terra da Rainha.

 

2 comentários: