domingo, 6 de setembro de 2015

A História do Andarilho Peladão



De perto,  toda família tem seu folclore particular. Uns mais ricos, mais coloridos do que outros, mas se procurar com cuidado, vai ver que está lá. Em algum galho perdido no alto de minha árvore genealógica paterna, viveu um homem muito turrão, daqueles que levam a vida acreditando que voltar atrás é sinal de fraqueza de caráter.  Pois bem, um dia esse sujeito estava brincando com um garfo. Devia estar fazendo hora para comer, sei lá. Alguém ordenou que ele largasse o talher. Ao ouvir o comando, ele teria respondido: Se quiser, não largo nunca mais. E não largou! Nasceu pele ao redor do garfo e seus dedos se atrofiaram. O esqueleto dele deve estar no caixão segurando o talher por toda eternidade. O fato da história ter sobrevivido, geração após geração, deve ter algum significado...






Semana passada, Stephen Cough voltou às páginas dos jornais por aqui. Ele havia saído da prisão. De novo. Foi preso mais de quarenta vezes. Ao todo, entre idas e vindas, Stephen passou cerca de dez anos encarcerado. A maior parte do tempo, confinado na solitária. Custou ao contribuinte cerca de 400 mil libras (o que dá mais ou menos  2.24 milhões de reais) só para mantê-lo confinado, ainda tem os custos legais que não entram nesta conta. Aqui vai a lista dos crimes que ele não cometeu:


Assassinato (X), roubo (X), furto (X), sequestro (X), estupro (x), pedofilia (x), produzir, distribuir ou consumir pornografia infantil (X), mostrar a genitália para criancinhas no parque (X), atos terroristas (X)... Podia seguir com essa lista por todo o código criminal, mas acho que neste ponto já ficou claro que ele não é criminoso perigoso. Então por que passou tanto tempo atrás das grades?


Porque não arredou o pé do que considera seu direito como ser humano: o de andar nu quando e onde bem entender! Melhor contar a história do começo.


Stephen Cough nasceu aqui na Ilha em 1959. Serviu na Marinha Real, foi motorista de caminhão e flertou com os Moonies - a Igreja da Reunificação do reverendo Moon, que cresceu nos Estados Unidos no auge da era hippie dos anos 70. Sua teologia ortodoxa e a crença de que Moon fosse o segundo Cristo ainda gera muita polêmica. Mas a causa de Stephen não é religiosa. Apesar de ele ser evangélico na defesa de seu ponto de vista.


Quando seus filhos eram pequenos, ele teve seu momento eureca, sua epifania. Acendeu uma luzinha no cérebro dele: por que eu tenho que usar roupas se elas me fazem suar? Por que tenho que ir contra a natureza e contra o que o meu corpo pede?


Até entendo o momento em que ele teve esta ideia. Quando minha filha tinha dois, três anos, travávamos inúmeras batalhas para que ela saísse de casaco na neve. Ela fazia birra, porque queria sair de camiseta e short. Imagino que um dos filhos de Stephen também tenha questionado o uso de roupas. O que ele argumenta hoje é que, se vestir para se proteger do frio é certo, por que então se despir quando está quente é errado? Gostaria de encontrá-lo para perguntar onde ele encontra tanto calor aqui na Ilha. Gostaria de ir lá dar um upgrade na minha vitamina ‘D’.


Land's End ao sul da Inglaterra


Entre 2003 e 2004, Stephen começou a ficar famoso. Sem nem uma peça de roupa, usando apenas botas, meias e uma mochila, ele cruzou o país de Land’s End (extremo sul) a John o’ Groats no topo da Escócia (o Oiapoque ao Chuí daqui, que tem mais ou menos a mesma distância de Brasília a Salvador). Começava ali a cruzada legal do homem que este país conhece como o ‘Andarilho Nu’.



Logo depois que resolveu que iria dedicar sua vida a andar sem roupa, Stephen foi detido inúmeras vezes por ‘Minor Public Order Offences’; pequenos delitos que não dão cadeia, mas rendem multa ao infrator que tem um comportamento considerado ameaçador, abusivo ou que causa assédio, alarme ou angústia a outra pessoa. As multas não fizeram Stephen mudar de ideia. Então, ele começou a ser preso pelo o que os britânicos chamam de ASBO (anti-social behaviour order), que foi introduzido pelo primeiro-ministro Tony Blair para criminalizar pequenos delitos e lidar principalmente com o problema de delinquentes jovens.


Da última vez em que foi julgado, o Andarilho Nu foi condenado a 30 meses de prisão. Demitiu seu advogado e resolveu que ia ser o seu representante legal. Quis aparecer no tribunal, adivinhe só, pelado. Não teve o desejo concedido e foi julgado à revelia. Mas entrou para história,quando em junho apareceu nu na corte, através de uma transmissão de vídeo, para apelar contra sua sentença. Ele também apelou à Corte Europeia de Direitos Humanos, com base na premissa de que seu encarceramento o estava privando da liberdade de expressão e do convívio com sua família.


Andarilho Nu






A teimosia de Stephen, ou a firmeza de suas convicções, é uma enorme dor de cabeça para a Justiça Britânica. De acordo com o ex-diretor da procuradoria pública, Lorde Macdonald, Stephen é um excêntrico que não faz mal a ninguém. O fato de ele ter passado tanto tempo na prisão (a maior parte na solitária porque se recusava usar o uniforme dos prisioneiros) é uma resposta draconiana, inapropriada e desproporcional ao seu comportamento. O lorde também acha um absurdo gastar tanto dinheiro público com o caso.
  
 

Na penúltima vez em que Stephen foi solto, ele deu apenas alguns passos fora da prisão. Ele estava nu mais uma vez e foi detido imediatamente por dois policiais que o esperavam do lado de cá do muro. Semana passada saiu vestido e no momento está a caminho de casa (a pé é claro) para rever os filhos adolescentes, que não teve a chance de ver crescer. Deu uma entrevista a um repórter da BBC enquanto andava. Disse que não sabe o que vai fazer no futuro. Queria apenas rever os filhos. Mas deu uma pista do que ia em sua cabeça quando deixou a entender que, se desistisse agora, nada teria valido a pena.
Também na semana passada, foi notícia uma escrivã americana, que foi presa porque se recusou a registrar o casamento entre dois homens nos Estados Unidos. Ela argumentou que era contra seus princípios. Será que é forçar muito a barra juntar a americana religiosa e o andarilho nu no mesmo balaio? Tenho muito mais simpatia por um do que pelo outro, devo dizer. Um deles me parece muito mais inofensivo. Mas até que consiga mudar a lei e tornar legal andar sem roupa por aí, o Andarilho Nu vai continuar tendo problemas com a Justiça.

 

Imagino que os filhos de Stephen gostariam que ele largasse o garfo. Se ele fosse meu pai, este seria meu desejo. Como não é , não consigo resolver se prefiro ver este talher na mesa ou na mão.


 










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