A primeira gravidez de Aline terminou em choro. A segunda também. Quando perdeu o terceiro bebê, ela achou que ia ficar louca. Tinha pesadelos horrorosos. Se torturava pensando se havia feito alguma coisa errada, se havia desejado o que não devia. O monstro do pensamento mágico e alienado crescia acelerado. A maternidade era então um sonho doloroso e cada vez mais distante.
Os abortos espontâneos
são muito mais comuns do que se pensa. A maioria acontece sem que a mulher
sequer soubesse que estava grávida. Estima-se que uma em cada seis gestações
não vinguem. Entre dez e vinte por cento das mulheres que, assim como Aline,
sabiam que estavam grávidas, perdem os bebês.
Como diz uma amiga
cientista: o dia mais importante da sua vida não é dia em que você nasce, mas o
momento em que você começa a existir. Essa semana a BBC mostrou mais um documentário
primoroso. Em inglês chama-se “Countdown to Life: the extraordinary making of
you”. O programa começa como uma cena de cair o queixo da Cidade Maravilhosa,
mas show mesmo são as animações gráficas que mostram como cada um de nós começa
a ser quem somos.
Assistir do sofá a contagem regressiva da vida é um privilégio. A ciência avançou um bocado desde o ano 2000, quando foi anunciado o genoma humano. Mas quando a gente acha que sabe bastante, aparecem mais dúvidas. Por que tantos embriões são abortados? Como acontecem as abnormalidades genéticas? E mais crucial, será possível evitá-las?
Hoje, nas capas dos
jornais The Guardian e The Independent, uma história em comum; esta Ilha pode
estar bem perto de começar a realizar modificações genéticas em embriões
humanos. Cientistas britânicos pediram ao órgão governamental, que regulamenta
as questões de fertilização humana, uma licença para alterar geneticamente
embriões, doados por casais que recorrem às clínicas de fertilização
artificial.
Se tiverem o pedido
concedido, os britânicos vão estar em pé de igualdade com os chineses, os
únicos a utilizarem a tecnologia no momento. A intenção não é produzir bebês
geneticamente modificados e sim estudar os embriões, na esperança
de compreender melhor por que tantas gestações terminam em choro.
A técnica ‘Crispr/Cas9’
de edição genética é polêmica. Os cientistas britânicos reafirmam suas intenções: dizem que
não vão produzir um bebê geneticamente modificado. Seria ilegal, extremamente difícil e arriscado, eles argumentam.
Mas os Estados Unidos acham
que os chineses foram longe demais. Declararam uma moratória para o uso da
tecnologia nos laboratórios do país. Não sai um centavo de dólar do governo
federal para bancar pesquisas deste tipo. Eles querem mais tempo para pensar
no assunto.
Os cientistas daqui da
Ilha afirmam que as pesquisas são tão regulamentadas, que seria impossível
avançar o sinal e produzir bebês geneticamente modificados para atender à
vaidade dos pais, por exemplo. O que eles querem é compreender melhor os
primeiros estágios do desenvolvimento de uma nova vida humana e, quem sabe, até
reduzir o número de abortos em tratamentos de fertilização em vitro. Eles garantem que os embriões serão destruídos depois de quatorze dias de vida.
Quando penso neste
assunto me lembro do livro ‘ O físico’ de Noah Gordon (um erro besta de
tradução que transformou o título em inglês ‘The physician’ – o médico, em o físico).
Batatinhas à parte, a ficção se passa na Idade Média e mostra a saga de um
inglês na Pérsia, que vivia a idade de ouro da civilização árabe e judaica. No
mundo do século onze, eles ainda batiam um bolão nas ciências, astronomia,
matemática e a medicina era muito mais avançada do que o herói do livro
conhecia na Inglaterra. Li o livro faz bem mais de uma década. Mas se a memória
não me falha, numa das passagens o herói quase se dá mal, quando vai desenhar
um osso quebrado. Qualquer representação do corpo humano era considerada
heresia.
Já li em mais de um
lugar a teoria de que o fundamentalismo de alguns teólogos islâmicos (por volta
de 1055 a 1111) mudou o foco do estudo científico para o religioso, menos
questionador: as coisas que não compreendemos completamente são desígnios de
Deus. Deus sabe o que faz. Essa mudança coincide com o declínio da supremacia árabe no mundo das ciências.
Quem já teve o privilégio de passear por
Cambridge ou Oxford, se encanta com o fato de que tantas descobertas
científicas foram feitas em um espaço relativamente pequeno. Lei da gravidade.
Fibra ótica, DNA e tantas outras. É a curiosidade que move a ciência.
Ela não acerta todas. Tá certo que os erros não são de todo maus, já que podem indicar outros caminhos. Entretanto, em nome da ciência, a humanidade cometeu muita
barbaridade. O pulo do gato é encontrar o equilíbrio sem perder a
curiosidade e o pensamento crítico.
Alguns dirão que foi o
desejo de Deus, outros que só porque a ciência ainda não sabe explicar, não
significa que tenha sido milagre. Mas, contrariando todas as expectativas, fico
contente em revelar: Aline é hoje uma mãe orgulhosa de três meninas encantadoras, que foram
concebidas à moda antiga.
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