Na estação Liverpool Street em
Londres, uma estátua de bronze chama atenção. A cena retratada é doce: cinco
crianças com expressões de deslumbramento nos rostos. Uma delas carrega um
ursinho de pelúcia. Mas a história por trás da obra de arte é muito dura.
Durante nove meses entre 1938 e 39, cerca de dez mil crianças judias foram
mandadas sozinhas (sem os pais) para esta Ilha. Chegavam num trem apelidado de ‘Kindertransport’
(transporte de crianças). A maioria vinha de países como Alemanha, Áustria e
Polônia. Elas seriam hospedadas em casas de famílias inglesas durante a Segunda
Guerra Mundial. As crianças foram recebidas num clima de ambiguidade. O jornal
Daily Mail (que continua conservador até hoje) denunciou, na ocasião, o que considerava um
grande erro histórico. Afinal, segundo a publicação, este era um país cristão e
o problema dos judeus não dizia respeito às pessoas da Grã-Bretanha.
Kindertransport Liverpool St Station |
Esta postura “ema-ema-ema,
cada um com seu problema” prevalece em grande parte da sociedade civil deste
país e em tantos outros países europeus, no que diz respeito ao êxodo maciço de
pessoas, principalmente da Síria, norte da África e Afeganistão. A questão é que três em cada quatro eleitores
britânicos acham que esse país já recebe estrangeiros demais. Semana passada
saíram os números da imigração nesta Ilha. As estatísticas mostram que entrou
mais gente do que saiu: a diferença entre os que deixaram o país e os que
imigraram para cá é de 318 mil no último ano. Apenas dois mil a menos que em
2005, quando o Reino Unido abriu suas portas para oito novos membros da
Comunidade Europeia. Só para colocar estes números em perspectiva: o Reino
Unido (Inglaterra, País de Gales e Escócia) tem uma área em quilômetros
quadrados que é menos do que a metade do estado de Minas Gerais.
O ponto é que a questão
da imigração e a dos refugiados são percebidas pela maioria da população como a
mesma coisa. O tema da imigração é vasto, dá muito pano para manga em vários
posts. Para que este não fique longo demais, resolvi tentar me concentrar na
questão dos refugiados. Os jornais usam as palavras ‘imigrantes’ e ‘refugiados’
como se as duas coisas fossem sinônimas, o que não são.
Em 1951, depois da
Segunda Guerra Mundial, uma convenção criou o Estatuto dos Refugiados. O
documento da ONU recebeu uma emenda em 1967, quando aumentou os direitos daqueles que procuram asilo em outros países. Cento e quarenta e oito países, incluindo o Brasil, são signatários
dos dois documentos. Os Estados Unidos não concordaram com a reforma de 1967,
para eles vale o que está escrito apenas na versão inicial.
Refugiado, ao
contrário do imigrante, foge de seu país de origem para tentar escapar da
guerra ou perseguições que colocam sua vida em risco (sejam elas religiosas,
raciais ou políticas). O risco tem que ser comprovado. E, uma vez admitido, não pode ser mandado de volta para seu país.
O drama dos refugiados sírios, retratado pelo fotojornalista Valnei Nunes* |
Os sírios teoricamente têm o status de refugiados, porque a guerra civil em seu país, que já dura quatro anos, matou pelo menos 300 mil pessoas. Desabrigou mais de 11 milhões de cidadãos. Quatro milhões deles já deixaram o país e têm uma existência de pobreza e falta de perspectiva de futuro em campos espalhados nos vizinhos, Líbano, Turquia e Jordânia.
Os números são
alarmantes, na mesma proporção em que são desprovidos de alma. Como se a
matemática tornasse banal o desespero e o medo de quem vive o horror da
guerra. Estamos acostumando nossos olhares a ver aquelas pessoas como pobres
vítimas da miséria, nos esquecendo de que um dia cada um deles teve uma vida de
normalidade. Que saiam para o trabalho. Que suas crianças frequentavam escolas.
E, que principalmente agora tudo é incerteza.
Campo de refugiados - Foto: Valnei Nunes |
Há também os que se
arriscam pelo Mediterrâneo, na esperança de reconstruírem suas vidas em solo
europeu. A crise ficou mais evidenciada no início da primavera e no verão,
quando o tempo menos inclemente favorece a travessia. Toda semana, assistimos na
tevê histórias de naufrágios e pessoas se afogando em proporções bíblicas. Vimos
equipes de resgates usando máscaras nos rostos para suportar o mau cheiro da
pobreza e da degradação humana.
Ninguém é imune a estas
imagens. Mas precisou de uma ainda mais forte para que líderes como o
primeiro-ministro David Cameron recuassem em seus discursos linha dura: a foto
do menininho sírio de três anos, que morreu afogado junto com sua mãe e irmão
ao tentar chegar na Grécia. Até então, o governo britânico vinha dizendo que
não iria receber sua cota dos refugiados que chegam aos milhares e se espalham
pela Europa. Ontem virou o disco, disse que este país vai cumprir seu papel de
responsabilidade na crise humanitária. Anunciou
hoje que vai receber milhares de refugiados sírios. Quantos, ainda não se sabe ao certo.
O discurso oficial que
vem sido repetido exaustivamente nos últimos dias na mídia é que este país
manda mais dinheiro do que todos os outros membros da Comunidade Europeia
para manter os campos de refugiados sírios. Eles entendem que receber os
cidadãos expulsos pela guerra não resolve o problema. Não gostam da
posição adotada pela chanceler alemã Angela Merkel de abrir as portas de seu
país aos refugiados. Segundo o governo de David Cameron, isto só incentiva
outros refugiados a optar pelo mesmo caminho e assim agravar a crise em solo
europeu.
Refugiados na Turquia - Foto: Valnei Nunes |
Resolvi não usar neste post a
imagem tão repetida nos últimos dias de Aylan Kurdi com o rostinho enfiado na
areia da praia, ou a de seu corpo sendo carregado por um policial. As imagens têm
poder, mas nesta era midiática, os reflexos duram apenas o tempo de um novo viral. Ouvindo
o rádio hoje, fiquei comovida ao saber que grupos de pessoas aqui na Ilha estão
se organizando para receber refugiados em suas casas. Por mais que este gesto seja uma gota no oceano do miserê humano que estamos presenciando, ele restaura
um caquinho de fé na capacidade humana de se compadecer e de ser capaz de se
colocar de fato no lugar do outro. Que os trilhos da Europa se abram para
outros ‘Kindertransport’.
*Valnei Nunes esteve
num campo de refugiados sírios na fronteira com a Turquia e gentilmente cedeu algumas de suas fotos para este post. Para conhecer mais
sobre seu trabalho: http://www.valneinunes.com/
Outro post cheio de lucidez e humanidade. Obrigada Maria Eduarda!
ResponderExcluirObrigada, Aline.
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