A mulher arrasta os pés pelo corredor longo de portas fechadas. A luz fria engana; é dia ou noite? O cheiro de desinfetante e drogas arranha o nariz. O som de gritos, choros e gemidos atravessa as portas e fura os ouvidos. O coração bate acelerado. Dois passos adiante, andando eficientemente, segue outra mulher, imune à luz, ao odor e ao barulho. Nestas horas a ironia é irresistível.‘Vocês dão beliscão nelas?’ Pergunta a mulher que se arrasta. A outra dá uma piscadela antes de abrir a porta de um quarto vazio. As duas entram. Pouco depois é a vez de a mulher gritar, gemer e chorar. Falam por aí que a dor do parto é uma das mais doídas.
Não sei de
você, mas sou daquelas que se emociona com cena de bebê nascendo em livros,
filmes e novelas. Pode ser o filme mais podre, com os atores mais canastrões do
planeta. Não importa. Fico comovida do mesmo jeito. Deve ter mais gente como
eu. Digo isso porque desde janeiro de 2012 o ‘Call the Midwife’ (exibido no
Brasil pelo canal BBC HD com o nome de Chame a Parteira) é um dos maiores
sucessos da tevê britânica. No ano passado, alcançou uma audiência consolidada
no Reino Unido de quase onze milhões de telespectadores, batendo o famoso
Downton Abbey da concorrência. A série, já na quarta temporada, mostra o drama
de parteiras no pós-guerra, num dos bairros mais pobres de Londres.
Call the Midwife |
A palavra ‘midwife’ vem do inglês antigo, quando ‘mid’ era ‘com’. Então ‘midwife’ significa com a esposa, com a parturiente. Em português, parteira. A palavra parteira ainda me remete à ideia de uma mulher mais experiente, embora sem treinamento formal, numa comunidade rural e sem recursos, que ajuda outras mulheres a terem os filhos em casa. A parteira daqui é muito diferente dessa imagem romantizada.
As
midwives atendem à maioria dos partos no Reino Unido. Elas são enfermeiras
treinadas em obstetrícia. Mas não são enfermeiras, são midwives, que é outra
especialidade. Para se chegar lá, é preciso fazer um curso universitário que
varia de três a quatro anos de duração. Quem já tem diploma em enfermagem, pode
fazer uma especialização. A profissão é tão valorizada na Inglaterra, que o
governo paga as mensalidades da faculdade e oferece uma ajuda de custo às
estudantes (a grande maioria mulheres, mas não exclusivamente). Universidade aqui
é paga.
As midwives
são responsáveis pelo pré-natal. Se a gravidez é normal, de baixo risco, a mulher
não se consulta com o ginecologista, só a midwife. Ela também faz o parto, no
hospital ou em casa e cuida do pós-natal, até 28 dias depois do nascimento.
Algumas delas ainda trabalham em clínicas de planejamento familiar. Em
dezembro do ano passado, o National Institute for Health and Care Excelence
(Instituto de Excelência em Saúde e Cuidados, em tradução livre) publicou uma
recomendação relativa aos partos. Em resumo, diz que os centros conduzidos por
midwives são ainda mais seguros do que os hospitais, em se tratando de gravidez
de baixo risco. Ressalta que o número de anestesias, cortes cirúrgicos no
períneo e uso de instrumentos (fórceps) nos partos é significativamente menor.
O número de partos que resultam em cesarianas é o mesmo dos hospitais.
É mais
seguro mesmo? A verba alocada ao NHS, o serviço nacional de saúde do Reino
Unido, não paga apenas o salário dos profissionais envolvidos, medicamentos,
manutenção e equipamento. Boa parte do dinheiro acaba sendo gasta em
compensações. O setor que recebe a maior fatia deste montante é o de
ginecologia e obstetrícia. O NHS pagou mais de três bilhões de libras em
indenizações por barbeiragens em partos entre os anos de 2000 e 2010. Isso soma
doze bilhões de reais! Um número que cabe redondinho nas manchetes de jornais.
Um escândalo da saúde pública. Mas com números, todo cuidado é pouco. Todo mundo sabe que, quando bem torturados, os números contam qualquer história. Então
é melhor olhar essa história com calma.
As compensações relativas aos partos são maiores porque as vítimas que, por exemplo, sofreram falta de oxigenação cerebral durante o nascimento, vão precisar de cuidados pela vida toda. Em muitos casos nunca vão conseguir trabalhar e serão dependentes. O que quer dizer que o valor pago a cada um dos processos é maior do que em outras áreas. Além disso, o número de ações cresceu, porque aumentou o número de partos. Mas não foi somente o número de nascimentos que subiu, aumentaram também os escritórios de advocacia que trabalham na base do ‘no win, no fee’, se não ganhar a causa, não paga nada. O que estimula mais pessoas a entrarem com processos judiciais e cria uma cultura mais litigiosa. O fato é que menos de um em cada mil nascimentos resulta em um destes processos. É claro que para as famílias afetadas, esses números não significam absolutamente nada. Entretanto, o NHS garante que o Reino Unido é um dos lugares mais seguros do mundo para se dar à luz, embora reconheça que por vezes a falta de parteiras e profissionais experientes pode gerar complicações e até mortes.
A brasileira
Tatiane Del Campo é fã de carteirinha das midwives e do modelo inglês. Ela teve
os dois filhos aqui. Disse que a informação que recebeu durante a gravidez foi
fundamental. Sabia o que esperar. Perto do dia esperado para o nascimento de
seu segundo filho, a mãe dela veio ajudar. A bolsa rompeu e a dona Paula
começou a insistir para que a filha fosse para o hospital. Tatiane disse para a
mãe relaxar. Em Roma, faça como os romanos. Explicou que, só quando as
contrações são intensas, a mulher fica na maternidade. Se chegar lá antes da
hora, a gestante é mandada de volta para casa. Tatiane levou o conselho ao
pé da letra, controlou a frequência das contrações e até saiu para dar uma
volta no quarteirão, para o horror da avó da criança. Voltou para casa e tomou
um loooongo banho de chuveiro (falta d’água não era problema). Sentiu uma
contração mais forte. Estava na hora. Ligou para o hospital e foi aconselhada a
esperar por uma ambulância. Ela não queria ter filho em casa. Correu com o
marido para o hospital. Dois minutos depois de dar entrada, nasceu o Gabriel.
Tatiane virou lenda na maternidade, a parturiente mais rápida deste lado da
ilha. Um recorde aplaudido com bom humor pelas midwives de plantão e que ela
conta com um sorriso orgulhoso.
Os recordistas Tatiane e Gabriel |
Ao contrário
de Tatiane, Siobhan Mc Brien não quis ter o terceiro filho no hospital. Os dois
primeiros haviam nascido de parto normal, sem anestesia numa maternidade.
Quando ficou grávida do terceiro, um surto de infecção hospitalar ocupava as
manchetes dos jornais. Siobhan, que já não gostava de hospital, procurou sua
médica generalista. Ela incentivou o parto em casa e indicou uma midwife, que
fez todo o acompanhamento do pré-natal. Quando entrou em trabalho de parto, a
midwife foi até a casa dela com uma estudante, que nunca tinha ajudado num
parto. Siobhan conta que foi uma experiência única e inesquecível. Teve a filha
em seu quarto, acompanhada do marido e das parteiras. Assim que Beth nasceu, a
estudante chorou de emoção.
Beth nasceu em casa |
Antes do nascimento de
Beth, Siobhan pensou em ter a segunda filha em casa, mas
morava em outro bairro e o médico local não gostava da ideia. Para ela, ainda
existe muita resistência quanto ao parto em casa. Ela disse que não teve medo e
que, se houvesse alguma complicação, o hospital era perto de casa. Um estudo
conduzido na Holanda e publicado em 2013, revela que o número de complicações sérias
em partos feitos em casa é menor do que nos realizados em maternidades. Um em
cada mil em casa. Dois ponto três em cada mil nascimentos em hospitais.
Óbvio que nem
todos os partos são naturais. Um em cada quatro nascimentos no Reino Unido
acontece por cesariana,
que é classificada como uma cirurgia de grande porte. Um aumento de 25% desde a década de 70. O governo considera
um número alto. Quer reduzi-lo. Tanto que uma das recomendações publicadas no site
do NHS é que, se a mulher insistir em ter uma cesariana porque está ansiosa com
a perspectiva de um parto normal, então ela deve ser encaminhada a um
profissional da área de saúde mental.
As cesarianas podem ser planejadas ou de emergência, dependendo de cada caso. Se correr tudo bem, a mãe e o bebê passam duas noites no hospital. Tatiane e Gabriel voltaram para casa duas horas após o parto. Nos partos normais, se não houver nenhuma complicação, mãe e bebê vão para casa no mesmo dia. Depois disso, são acompanhadas em casa por parteiras e ‘health visitors’, agentes de saúde. Elas dão aconselhamento sobre como cuidar do bebê, amamentação e checam se a mãe corre risco de depressão pós-parto.
Quando a
grávida vai para o primeiro exame de pré-natal na Inglaterra, ela sai carregada
de folhetos informativos, um livreto sobre gravidez e parto e cupons. Um dos cupons é para receber uma caixa cheia
de fraldas, amostras grátis e outros brindes. É uma delícia o dia em que a
caixa chega em casa. Parece que a gravidez fica ainda mais real. A futura mãe é
aconselhada a tomar parte em cursos de pré-natal, no hospital ou os promovidos
pelo NCT (National Childbirth Trust) , que é a maior organização de caridade
direcionada aos pais. Nestes cursos, a gestante aprende sobre a gravidez e o
parto, além de cuidados com o recém-nascido. Fiz o do NCT, que quando nada é
uma oportunidade de se conhecer outras pessoas que estão no mesmo barco.
Durante o curso, eles batem muito na tecla do parto natural. Falam de como os anestésicos
podem ser prejudiciais para o bebê. Também recomendam fazer um plano de
nascimento e entregá-lo à midwife na hora do parto. Marinheira de primeira
viagem e caxias, fiz tudo isso. No plano, meu marido dizia que gostaria de
cortar o cordão umbilical. Na hora H, o plano foi ‘pras cucuias’, ninguém se
lembrou dele. Lição um de maternidade: esqueça os planos.
Esta foi uma lição que a brasileira Luciana Auler aprendeu a duras penas. Entrou na maternidade com muitas expectativas e seu plano bonitinho debaixo do braço. Estava determinada a ter o parto na piscina e sem anestesia. A história é longa, ela foi para a maternidade às 7:30 da manhã. Lucas nasceu às 9:30 da noite, de cesariana. Luciana é muito grata aos cuidados que recebeu, mas se sentiu como se tivesse falhado. Todos eram muito gentis com ela, mas ela se sentia julgada. O segundo filho ela foi ter no Brasil.
Luciana, que tinha tudo planejado e Lucas |
Como Luciana, conheço Tracey e Katie, que queriam muito um parto normal. Tracey passou quarenta! horas em trabalho de parto, Katie trinta e oito . As duas tiveram filhos por cesariana.
Foi um
alívio quando saiu o anúncio de que o parto de Kate Middleton , mãe do mais
novo herdeiro real, tinha sido normal. Como se sabe, o bom exemplo deve vir de
cima. Se ela tivesse passado por uma cesariana, não teria caído bem. Por aqui as
revistas femininas (e nada feministas) castigam as celebridades que têm
filhos de cesariana. Essas mulheres são taxadas de ‘too posh to push’ - chiques,
importantes demais para fazer força (na hora do parto).
Call the Midwife |
Informação
honesta, profissionais bem treinados e planejamento são fundamentais. É inegável.
Como disse a Tatiane, existe aqui uma cultura que não só favorece como estimula
o parto natural. O importante é que a mulher, esteja em que país estiver, não
se sinta coagida, fracassada, pressionada e muito menos julgada pela forma como
trouxe uma nova vida a este mundo.
Sou Midwife em Londres e tenho grupos de apoio a brasileiras gestantes aqui! Seu texto está super informativo!
ResponderExcluirÓtimo!
Que bom que tenha gostado, Suzan. Obrigada.
ExcluirSuzan, te mandei uma mensagem agora pelo Facebook. Deve ter ido pra pasta "Outros". Dá uma olhadinha ? Abs, Sérgio
ExcluirOlá, Maria Eduarda: Gostei muito deste e de outros textos do seu blog. O Coletivo Memória e Cidadania, do qual faço parte, estará lançando, neste domingo, dia primeiro de fevereiro de 2015, o Portal Leia Brasília. O projeto editorial está baseado na Memória, Cidadania, Cultura e Sustentabilidade. Posso publicar, este e outros textos, no portal, citando a fonte? Você gostaria de ser uma das colaboradoras do Portal?
ResponderExcluiro
Meu email para contato é portalleiabrasilia@gmail.com.
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