Logo que
vim para Inglaterra, passei alguns meses numa república. Lá morava um irlandês,
que mal tive a chance de conhecer. Ele chegava tarde da noite, calibrado e
tropeçando pela escada. As poucas vezes em que o vi no fim-de-semana, ele
estava emburrado, de cara inchada e se queixando de dor por causa de uma gota.
Morava lá também um moçambicano. Ricardo era filho de portugueses, que tiveram
que imigrar para a África do Sul, para fugir da guerra civil em Moçambique. Ele
era boa praça. No menor quarto de todos, mal cabia uma cama de solteiro, vivia
Miss Khan. A única inglesa da casa. Ela também era filha de
paquistaneses. É sobre ela que quero falar.
K., como
ela gostava de ser chamada, era inteligente e, ao contrário do irlandês, muito
bem-humorada. Trabalhava no setor de informática da agência de notícias
Reuters. Os pais dela eram daqueles mulçumanos que fazem peregrinação a Meca
todos os anos. Eu, como todo imigrante que conheço, sofro da Síndrome de
Tarzan. Depois de um tempo morando fora e adquirindo novos valores, não
pertencemos 100% nem à selva, nem à cidade. No meu caso, nunca vou ser inglesa,
mas também não sou a mesma brasileira que deixou o Brasil há doze anos. É claro
que esse mal acomete as pessoas em graus diferentes, mas cedo ou tarde ele
aparece. No caso de K, que é inglesa por direito de nascimento, a
síndrome de Tarzan era sua essência.
K. nasceu
na Inglaterra e frequentava uma escola inglesa. As mulheres da família nunca
saíam com a cabeça descoberta. Ela foi criada num mundo dividido, onde os
valores sociais e religiosos da família eram muito diferentes do que ela vivia
fora de casa. Aos treze anos, ela foi levada pela primeira vez ao Paquistão.
Chegando lá, ela foi informada de que iria se casar. Antes das férias
terminarem, ela estava casada com um estranho, quinze anos mais velho do que
ela. Ela me contou essa história, que provavelmente já havia contado a outras
tantas pessoas. Mesmo assim, pelo tom da voz, a expressão do rosto e as mãos
tensas deu para perceber que foram dias de absoluto terror, que ainda a
atormentavam. Ela me disse que nem sabia como se faz bebês. Apesar de
apavorada, K. enrolou a família toda (palavra dela, não minha). Convenceu os pais
e o marido que tinha que voltar e terminar os estudos. Chegando aqui, ela fugiu
de casa e chegou a viver nas ruas. Quando a conheci, ela tinha vinte e poucos
anos e mantinha um relacionamento civilizado com a família.
Miss Khan
foi ao meu casamento no Brasil. Achou o Rio de Janeiro o lugar mais espetacular
do planeta. Ficou encantada pelo Brasil. Mas apesar dos dias quentes, em momento
algum usou manga curta ou exibiu as pernas. K queria muito encontrar um amor. Vivia
frequentando os 'speed dating’. Speed dating é um negócio estranhíssimo. Funciona
assim, um bar organiza o evento, homens e mulheres interessados em descolar um
namoro comparecem. As mulheres ficam assentadas. Na frente delas uma cadeira. A
cada quinze minutos um apito toca, troca-se o pretendente e eles
conversam. Ao final da dança das cadeiras, homens e mulheres informam aos
organizadores os nomes de quem causou boa impressão. Se o homem e a mulher
estiverem mutualmente interessados, podem trocar números de telefone e quem
sabe sai coelho deste mato. K era bonita, mas não tinha muita sorte
nestes encontros. O problema estava estampado na cara: ela era paquistanesa, de
pele escura, cabelos negros, olhos amendoados e rosto quadrado. Um tipo que não
agradava aos frequentadores. Ela tampouco estava interessada nos rapazes
paquistaneses, que a fariam usar um véu na cabeça e exigiriam submissão, o que
ela dizia não gostar. Além do mais, esses rapazes não aprovariam o estilo de
vida livre que ela levava. K. conciliava a selva e a cidade do jeito que
conseguia. Não comia carne de porco, não porque a religião não permitia, mas
porque decidiu ser vegetariana. Não usava as roupas tradicionais, que as outras
mulheres de sua família usavam, mas também não deixava os braços de fora. Perdemos contato e nos vimos só uma vez, anos mais tarde. Ela tinha engordado uns
vinte quilos, não era mais tão alegre e continuava procurando um companheiro.
Quando
minha filha era pequena, frequentávamos um grupo de contação de histórias na
biblioteca do bairro. Era como entrar numa reunião da ONU. Mulheres do mundo
todo e seus bebês. A biblioteca era um lugar ótimo para as mães se socializarem.
Foi lá que conheci uma das minhas melhores amigas. Havia algumas mulçumanas no
grupo. Entretanto, elas só conversavam entre si, não se misturavam. Toda vez em
que puxei assunto com uma delas, fui bem recebida, mas a conversa nunca
avançava. Ficava pensando se elas eram mais reservadas porque é uma forma de
defesa, uma vez que são vítimas de preconceito. Será que era uma questão de autoestima?
Sentiam-se menos do que as outras? Poderia ser que elas não aprovassem as
conversas e os modos ocidentais das outras mães. Não saberia responder a essas
especulações.
No meu
post de natal (http://mariaeduardajohnston.blogspot.co.uk/2014/12/sem-trincheiras.html) , contei as histórias das francesas racistas num trem, fazendo
caretas para uma mulher mulçumana e de um taxista argelino e
seu ódio pelos franceses. Um dia depois do ataque que matou doze pessoas em
Paris, as fotos dos suspeitos, dois franceses de origem argelina, estão em
todos os jornais. Existe um temor de que os eventos das últimas horas na França
fortaleçam ainda mais a candidata Marine Le Pen, da Frente Nacional de extrema
direita e que bote ainda mais lenha na fogueira das manifestações xenófobas,
que se alastram pela Europa.
O
problema do terrorismo é que, gostemos ou não, pelo menos a curto prazo ele funciona. As manifestações
de resistência e solidariedade em várias cidades da Europa e principalmente em
Paris são comoventes. As pessoas apontando canetas e cartazes de apoio à
revista são de arrepiar, assim como as charges que se multiplicam na internet.
Entretanto, o fato é que, exceto um jornal
alemão do qual tive notícia*, quase nenhum jornal europeu está disposto a publicar as
charges satíricas da Charlie Hebdo. Certamente nenhum nesta ilha. Ninguém quer
cutucar os mulçumanos fundamentalistas, colocar a vida de cidadãos e nações em
risco. Neste sentido, a chacina parece ter sido bem sucedida. Do mesmo modo, os
jornalistas mortos no ataque de ontem foram muito corajosos. Sabiam dos riscos
e não abaixaram a cabeça. Li argumentos que sugerem que eles de certa forma
mereceram, porque foram semear vento e acabaram colhendo tempestade. Um absurdo
tão grande quanto dizer que uma mulher mereceu ser estuprada porque usou saia
curta.
Aprecie esta charge culturalmente, etnicamente, religiosamente e politicamente correta com responsabilidade. Obrigado. |
O massacre de ontem foi como o epicentro de um terremoto que reverberou por
toda Europa e sacudiu o chão também do lado de cá do Canal da Mancha. Trouxe
memórias dos ataques em Londres em julho de 2005. Mais uma vez se diz que o que
está em jogo é um estilo de vida e a liberdade de expressão. Hoje ouvi um
político inglês dizer que temos que lutar por essa liberdade. O ‘x’ da questão
é o quanto da nossa liberdade pessoal estamos dispostos a perder para garantir
a liberdade? Leis antiterrorismo, mecanismos de controle e mais invasão na vida
do cidadão para garantir a segurança. Será esse o preço?
Como em
toda tragédia, os políticos vão tentar capitalizar da melhor maneira que
conseguirem. Aqui, na França, no resto da Europa, nos Estados Unidos e em todos
os países que de alguma forma se sentem ameaçados pelo terrorismo islâmico. Promover
mais divisão, exclusão, forçar uma visão única de vida é a solução? Ou só agrava ainda mais as síndromes do
mundo?
* Três dias após a publicação deste post, o jornal alemão foi atacado. http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2015/01/11/sede-de-jornal-alemao-com-conteudo-da-charlie-hebdo-e-atacado-na-alemanha.htm
* Três dias após a publicação deste post, o jornal alemão foi atacado. http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2015/01/11/sede-de-jornal-alemao-com-conteudo-da-charlie-hebdo-e-atacado-na-alemanha.htm
Síndrome de Tarzan. Até que enfim alguém define o que eu sinto há muito tempo. Do jeito que a coisa anda, quem está certo é o cara que escreveu há décadas para a Broadway a comédia "Stop the world, I want to get off"...
ResponderExcluirAcho que todo mundo passa por isso, Vicente. Bjs
ResponderExcluirMuito bom, Duda. Beijos
ResponderExcluirObrigada. Fatima. Beijos.
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