quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Je Suis Charlie








Logo que vim para Inglaterra, passei alguns meses numa república. Lá morava um irlandês, que mal tive a chance de conhecer. Ele chegava tarde da noite, calibrado e tropeçando pela escada. As poucas vezes em que o vi no fim-de-semana, ele estava emburrado, de cara inchada e se queixando de dor por causa de uma gota. Morava lá também um moçambicano. Ricardo era filho de portugueses, que tiveram que imigrar para a África do Sul, para fugir da guerra civil em Moçambique. Ele era boa praça. No menor quarto de todos, mal cabia uma cama de solteiro, vivia Miss Khan. A única inglesa da casa. Ela também era filha de paquistaneses. É sobre ela que quero falar.

K., como ela gostava de ser chamada, era inteligente e, ao contrário do irlandês, muito bem-humorada. Trabalhava no setor de informática da agência de notícias Reuters. Os pais dela eram daqueles mulçumanos que fazem peregrinação a Meca todos os anos. Eu, como todo imigrante que conheço, sofro da Síndrome de Tarzan. Depois de um tempo morando fora e adquirindo novos valores, não pertencemos 100% nem à selva, nem à cidade. No meu caso, nunca vou ser inglesa, mas também não sou a mesma brasileira que deixou o Brasil há doze anos. É claro que esse mal acomete as pessoas em graus diferentes, mas cedo ou tarde ele aparece. No caso de K, que é inglesa por direito de nascimento, a síndrome de Tarzan era sua essência.


K. nasceu na Inglaterra e frequentava uma escola inglesa. As mulheres da família nunca saíam com a cabeça descoberta. Ela foi criada num mundo dividido, onde os valores sociais e religiosos da família eram muito diferentes do que ela vivia fora de casa. Aos treze anos, ela foi levada pela primeira vez ao Paquistão. Chegando lá, ela foi informada de que iria se casar. Antes das férias terminarem, ela estava casada com um estranho, quinze anos mais velho do que ela. Ela me contou essa história, que provavelmente já havia contado a outras tantas pessoas. Mesmo assim, pelo tom da voz, a expressão do rosto e as mãos tensas deu para perceber que foram dias de absoluto terror, que ainda a atormentavam. Ela me disse que nem sabia como se faz bebês. Apesar de apavorada, K. enrolou a família toda (palavra dela, não minha). Convenceu os pais e o marido que tinha que voltar e terminar os estudos. Chegando aqui, ela fugiu de casa e chegou a viver nas ruas. Quando a conheci, ela tinha vinte e poucos anos e mantinha um relacionamento civilizado com a família.


Miss Khan foi ao meu casamento no Brasil. Achou o Rio de Janeiro o lugar mais espetacular do planeta. Ficou encantada pelo Brasil. Mas apesar dos dias quentes, em momento algum usou manga curta ou exibiu as pernas. K queria muito encontrar um amor. Vivia frequentando os 'speed dating’. Speed dating é um negócio estranhíssimo. Funciona assim, um bar organiza o evento, homens e mulheres interessados em descolar um namoro comparecem. As mulheres ficam assentadas. Na frente delas uma cadeira. A cada quinze minutos um apito toca, troca-se o pretendente e eles conversam. Ao final da dança das cadeiras, homens e mulheres informam aos organizadores os nomes de quem causou boa impressão. Se o homem e a mulher estiverem mutualmente interessados, podem trocar números de telefone e quem sabe sai coelho deste mato. K era bonita, mas não tinha muita sorte nestes encontros. O problema estava estampado na cara: ela era paquistanesa, de pele escura, cabelos negros, olhos amendoados e rosto quadrado. Um tipo que não agradava aos frequentadores. Ela tampouco estava interessada nos rapazes paquistaneses, que a fariam usar um véu na cabeça e exigiriam submissão, o que ela dizia não gostar. Além do mais, esses rapazes não aprovariam o estilo de vida livre que ela levava. K. conciliava a selva e a cidade do jeito que conseguia. Não comia carne de porco, não porque a religião não permitia, mas porque decidiu ser vegetariana. Não usava as roupas tradicionais, que as outras mulheres de sua família usavam, mas também não deixava os braços de fora. Perdemos contato e nos vimos só uma vez, anos mais tarde. Ela tinha engordado uns vinte quilos, não era mais tão alegre e continuava procurando um companheiro.


Quando minha filha era pequena, frequentávamos um grupo de contação de histórias na biblioteca do bairro. Era como entrar numa reunião da ONU. Mulheres do mundo todo e seus bebês. A biblioteca era um lugar ótimo para as mães se socializarem. Foi lá que conheci uma das minhas melhores amigas. Havia algumas mulçumanas no grupo. Entretanto, elas só conversavam entre si, não se misturavam. Toda vez em que puxei assunto com uma delas, fui bem recebida, mas a conversa nunca avançava. Ficava pensando se elas eram mais reservadas porque é uma forma de defesa, uma vez que são vítimas de preconceito. Será que era uma questão de autoestima? Sentiam-se menos do que as outras? Poderia ser que elas não aprovassem as conversas e os modos ocidentais das outras mães. Não saberia responder a essas especulações.


No meu post de natal (http://mariaeduardajohnston.blogspot.co.uk/2014/12/sem-trincheiras.html) , contei as histórias das francesas racistas num trem, fazendo caretas para uma mulher mulçumana e de um taxista argelino e seu ódio pelos franceses. Um dia depois do ataque que matou doze pessoas em Paris, as fotos dos suspeitos, dois franceses de origem argelina, estão em todos os jornais. Existe um temor de que os eventos das últimas horas na França fortaleçam ainda mais a candidata Marine Le Pen, da Frente Nacional de extrema direita e que bote ainda mais lenha na fogueira das manifestações xenófobas, que se alastram pela Europa.


O problema do terrorismo é que, gostemos ou não, pelo menos a curto prazo ele funciona. As manifestações de resistência e solidariedade em várias cidades da Europa e principalmente em Paris são comoventes. As pessoas apontando canetas e cartazes de apoio à revista são de arrepiar, assim como as charges que se multiplicam na internet.



 Entretanto, o fato é que, exceto um jornal alemão do qual tive notícia*, quase nenhum jornal europeu está disposto a publicar as charges satíricas da Charlie Hebdo. Certamente nenhum nesta ilha. Ninguém quer cutucar os mulçumanos fundamentalistas, colocar a vida de cidadãos e nações em risco. Neste sentido, a chacina parece ter sido bem sucedida. Do mesmo modo, os jornalistas mortos no ataque de ontem foram muito corajosos. Sabiam dos riscos e não abaixaram a cabeça. Li argumentos que sugerem que eles de certa forma mereceram, porque foram semear vento e acabaram colhendo tempestade. Um absurdo tão grande quanto dizer que uma mulher mereceu ser estuprada porque usou saia curta.


Aprecie esta charge culturalmente, etnicamente, religiosamente e politicamente correta  com responsabilidade. Obrigado.
 
 
 

 O massacre de ontem foi como o epicentro de um terremoto que reverberou por toda Europa e sacudiu o chão também do lado de cá do Canal da Mancha. Trouxe memórias dos ataques em Londres em julho de 2005. Mais uma vez se diz que o que está em jogo é um estilo de vida e a liberdade de expressão. Hoje ouvi um político inglês dizer que temos que lutar por essa liberdade. O ‘x’ da questão é o quanto da nossa liberdade pessoal estamos dispostos a perder para garantir a liberdade? Leis antiterrorismo, mecanismos de controle e mais invasão na vida do cidadão para garantir a segurança. Será esse o preço?


Como em toda tragédia, os políticos vão tentar capitalizar da melhor maneira que conseguirem. Aqui, na França, no resto da Europa, nos Estados Unidos e em todos os países que de alguma forma se sentem ameaçados pelo terrorismo islâmico. Promover mais divisão, exclusão, forçar uma visão única de vida é a solução?  Ou só agrava ainda mais as síndromes do mundo?


 * Três dias após a publicação deste post, o jornal alemão foi atacado. http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2015/01/11/sede-de-jornal-alemao-com-conteudo-da-charlie-hebdo-e-atacado-na-alemanha.htm

4 comentários:

  1. Síndrome de Tarzan. Até que enfim alguém define o que eu sinto há muito tempo. Do jeito que a coisa anda, quem está certo é o cara que escreveu há décadas para a Broadway a comédia "Stop the world, I want to get off"...

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  2. Acho que todo mundo passa por isso, Vicente. Bjs

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