Cena 1
Do final de minha infância à maior parte da adolescência, estudei num colégio católico de freis franciscanos, muitos holandeses. Eles eram politicamente liberais. Em pleno regime militar, os alunos do científico encenavam peças de teatro, censuradas pelos ditadores do dia. Ainda assim, era uma escola católica. Meus colegas devem se lembrar de um filme que, se não me engano, era americano e distribuído pelas Paulinas. Todo ano eles repetiam para gente ver. Eu me lembro muito bem. Era sobre aborto. Alertava para as consequências terríveis para o corpo e a mente da mulher, sobre o risco de infertilidade. Duas cenas do filme nunca me saíram da cabeça: na primeira um médico auscultava o coração de um feto morto e depois jogava o corpinho numa lixeira. A cena é cortada para outra que mostra em close um saco de lixo cheio de bebezinhos mortos. Tá achando pesado? Espere pela próxima cena: um montinho de carne moída, vermelho vivo, com uma minúscula mãozinha de bebê em cima. Segundo o narrador, o resultado do método de sucção.
Cena 2
Uma amiga
brasileira foi ver o médico generalista na Inglaterra. Disse que achava que
estava grávida. O teste caseiro indicava positivo. O médico então perguntou: o
que a senhora quer fazer agora? Ela, que é crente, ficou ofendida com a
pergunta. Para o médico, a dúvida era legítima. Desde 1967 o aborto é legal na
Inglaterra, País de Gales e Escócia. Os abortos são realizados em hospitais ou
clínicas especializadas. Dois médicos têm que concordar que a interrupção da
gravidez vai causar menos traumas para a saúde física e mental da mulher do que
continuar com a gravidez. Com pouca variação, anualmente cerca de 185 mil
mulheres na Inglaterra e País de Gales abortaram nos últimos anos. Apesar da recessão econômica, um
número historicamente baixo.
Aborto é um tema muito delicado. Os ingleses têm horror a fazer cena, armar barraco. Eles são famosos pelo ‘stiff upper lip’*. Devem demonstrar força e dignidade na adversidade e conter as emoções. Na Inglaterra, os opositores do aborto são bem mais discretos do que nos Estados Unidos. Eles existem em menor número, são mais tímidos, mas começam a incomodar. Um pequeno grupo resolveu protestar do lado de fora de uma clínica ao sul de Londres com cartazes e fotos, que lembram o terrível filme das Paulinas. Eles também filmaram as mulheres, que procuravam a clínica. Um funcionário da clínica resolveu questionar os manifestantes. Argumentou que filmar as pacientes era uma forma de intimidação sem tamanho e que feria o direito de privacidade delas. Uma mulher grávida, que passava pelo local, partiu para cima dos manifestantes e deu uma lição de moral. Acusou-os de tentarem fazer com que as mulheres se sentissem culpadas. Disse que eles desconheciam as razões que levam uma mulher a fazer aborto e os chamou de hipócritas. Como vivemos na era digital, o bate-boca foi registrado, publicado no Youtube e visto por milhares de pessoas, esquentando o debate. Os comentários que vi na tevê e internet diziam mais ou menos a mesma coisa: não queremos aqui na Inglaterra as cenas que os americanos adoram fazer. Não gostamos de escândalos.
Cena
3
Nos anos 90,
uma amiga irlandesa e católica, engoliu a vergonha e foi ver seu médico em
Londres. Ele também irlandês. Aos vinte e poucos anos, ela arrumou um namorado
e queria tomar a pílula. O médico lhe entregou um folheto colorido e
recomendou: coloque-o entre suas pernas e não o deixe cair. É o melhor método
anticoncepcional que existe. Parece cena de filme das décadas de 40, 50, mas
foi outro dia mesmo. Os católicos irlandeses fazem os freis de minha escola
primária parecerem mais feministas do que Simone de Beauvoir.
Além das
pautas previsíveis de natal, outro assunto mobilizou a atenção do público
inglês no fim do ano: o caso de uma irlandesa grávida, que teve morte cerebral
causada por um coágulo. A família da mulher queria desligar os aparelhos que a
mantinham viva. Os médicos achavam que era um direito da família, mas temiam
processos judiciais, movidos por grupos pró-vida. O aborto é ilegal na Irlanda.
Quando sofreu o derrame, a mulher estava na décima oitava semana de gestação.
Ao ser ligado aos aparelhos, seu corpo se transformou em uma incubadora. Foram
semanas de agonia para a família, até que a Justiça decidisse que os aparelhos
poderiam ser desligados, uma vez que as chances do bebê nascer com vida e
saudável eram muito remotas. A decisão inédita foi considerada audaciosa e
polêmica.
Não consegui
encontrar estatísticas sobre o número de abortos ilegais na Irlanda. Contudo,
entre 1980 e 2000, consta dos registros oficiais que 147.912 irlandesas saíram
de seu país para recorrer a abortos legais em outros países europeus. A
população irlandesa é de 4 milhões 580 mil habitantes. A título de
comparação, a cidade do Rio tem quase 2 milhões de habitantes a mais do
que a Irlanda. Estima-se que número de mulheres, que deixaram o país para se
submeterem a abortos legalizados, seja muito maior, já que nem todos os casos
foram registrados. Todos os dias, em média doze mulheres cruzam o oceano que
separa o Reino Unido da Irlanda para se submeterem a abortos legalizados. Sem
condições de bancar a viagem, outras tantas compram pílulas abortivas na
internet.
Cena
4
Existe a percepção entre os católicos irlandeses de que caso o aborto
seja legalizado, as mulheres vão fazer fila para interromper a gravidez.
Entretanto, um estudo da Organização Mundial de Saúde** indica que o número de
abortos em países onde a prática é legal é estatisticamente igual ao número de
abortos em países onde é crime interromper a gravidez. Trocando em miúdos: o
número de abortos vai ser o mesmo, se a prática for proibida ou não por lei. Condenar
criminalmente a mulher não resolve o problema do direito à vida de quem não
nasceu.
É bem distante desta ilha, mas só para ampliar
a discussão, vale a pena olhar para outro país que um dia foi colônia inglesa:
a África do Sul. Lá o aborto é considerado legal desde 1996. É praticamente
impossível validar ou negar o que a pesquisa da OMS parece indicar. Entretanto,
é consenso que, desde a legalização, houve um decréscimo de 90% no número de mortes de mulheres
que abortaram.
Cena 5
Durante um
exame de pré-natal, uma amiga descobriu que havia um risco alto de que o bebê
nascesse com Síndrome de Down. Ela foi informada sobre complicações e
ofereceram um exame genético, que daria mais exatidão ao diagnóstico. Ela
recusou o exame, porque não queria colocar a vida da criança em perigo. Para
ela, interromper a gravidez não era uma possibilidade. Ela e o marido estavam
decididos a ter o filho, viesse ele como viesse.
O mesmo
exame em outra amiga apontou que, se a gravidez fosse até o fim, o bebê
nasceria com sérios problemas genéticos e precisaria de muitos cuidados médicos.
A família resolveu interromper a gravidez.
Nunca passei
por nada semelhante. Nunca tive que considerar a possibilidade de um aborto. Posso imaginar o sofrimento de
minhas amigas, mas não vivi na carne o que elas passaram. De uma coisa tenho
certeza: elas não merecem ser julgadas pelas decisões difíceis que tomaram. Nem
uma, nem a outra.
* Tradução
literal: lábio superior rígido. O que a expressão quer dizer é manter-se
impassível diante de situações que tenham uma grande carga emocional.
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