Janeiro de 1803. Londres. Prisão de Newgate. George Foster está
prestes a morrer. Ele foi condenado à forca pelo assassinato da mulher e filha.
Foster jurou inocência. Os amigos testemunharam seu bom caráter. Ele tinha até
um álibi. Pobre, sem dinheiro, não teve a menor chance de defesa. O juiz
foi implacável em seu veredito.
Não muito
distante da prisão, Giovanni Aldini, um cientista italiano esperava a execução
com ansiedade. No começo do século XIX na Inglaterra, só os corpos dos piores
criminosos poderiam ser dissecados. Pela capital circulavam notícias horrendas
de pessoas que acordaram quando suas pernas, ou braços, eram serrados. Tempo
sinistro. Aldini era extremamente ambicioso. Ele havia
convencido seus colegas da universidade que, se eles lhe dessem um cadáver
intacto, ele traria o morto de volta à vida!
Depois de ficar
dependurado na forca durante uma hora, o corpo de Foster foi levado para o
Royal College of Surgeons, uma instituição de prestígio na época. Lá o
experimento macabro foi testemunhado por médicos, cientistas e membros do público.
Aldini ligou eletrodos aos pés, braços, peito e testa do defunto. Assim que a
corrente elétrica passou pelo corpo de Foster, ele começou a mexer a mandíbula
e se contorceu até que chegou a abrir o olho esquerdo. O contorcionismo
convulsivo durou até a bateria acabar. As testemunhas concluíram que ele não
havia voltado à vida. Aldini caiu em desgraça. Partiu para a Itália com o rabo
entre as pernas, culpando a bateria por seu fracasso. Sempre
a tecnologia...
O ambicioso Aldini |
A história, no
entanto, sobreviveu e animou os salões da sociedade inglesa. Numa dessas
reuniões estava uma menina chamada Mary Shelley. Escondida no topo da escada,
ela ouvia e absorvia as histórias dos adultos como terra seca bebe água. Anos
mais tarde, Mary criou seu personagem mais famoso: Victor Frankenstein.
A curiosa Mary Shelly, que tinha muita imaginação.
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É curioso que sempre que se discute um avanço da ciência, Frankenstein é tirado de seu descanso. Foi assim em julho de 1978, quando nasceu Louise Brown. O primeiro bebê de proveta. Durante nove anos, os pais de Louise tentaram sem sucesso produzir um filho à moda antiga. Eles eram os candidatos perfeitos para a nova técnica de reprodução.
Frankenstein de Mary Shelly |
É curioso que sempre que se discute um avanço da ciência, Frankenstein é tirado de seu descanso. Foi assim em julho de 1978, quando nasceu Louise Brown. O primeiro bebê de proveta. Durante nove anos, os pais de Louise tentaram sem sucesso produzir um filho à moda antiga. Eles eram os candidatos perfeitos para a nova técnica de reprodução.
Na época em que
se discutia a possibilidade de fertilização em vitro, um cientista americano chamado
Leon Kass, que mais tarde seria conselheiro do governo Bush para bioética, foi
radicalmente contra. Ele argumentava que o risco de produzir bebês com sérias
anomalias seria enorme.
De 1978 para cá,
mais de três milhões de crianças, que foram concebidas em tubos de ensaio,
vieram ao mundo. O número de anomalias é o mesmo que em crianças concebidas
naturalmente. A tecnologia trouxe muita alegria para casais que não podiam ter
filhos. Mesmo assim, ainda hoje o assunto gera polêmica.
A Igreja nunca
achou graça nessa história de bebê de proveta. Condena o uso de tecnologia para
substituir o ato sexual com fins reprodutivos. Em 2008, a Igreja Católica
publicou o Dignitas Personae, um documento da Congregação da Doutrina e Fé
enumerando as razões pelas quais se opõe à fertilização em vitro. Uma delas é
que muitos embriões são criados no processo e poucos sobrevivem. Os cientistas rebatem
o argumento dizendo que a maioria dos embriões concebidos durante a relação
sexual falha em sua missão de se implantar no útero. Em outras palavras, não
vingam e a mulher sequer soube que estava ‘grávida’. Também no processo natural
muitos embriões são criados e poucos sobrevivem.
Tenho uma conhecida que quis batizar os filhos, numa igreja católica no condado de Kent ao sul da Inglaterra. O padre se recusou a batizá-los, porque eles eram bebês de proveta. Foi a última vez em que ela viu o padre ou a igreja em questão.
Fertilização em vitro condenada pela Igreja |
No ano 2000, quando se anunciou o mapeamento
genoma humano, editei uma série de reportagens sobre o assunto. Lembro-me
claramente das manchetes da época. Desvendado o alfabeto da vida era uma delas.
O tom de muitas reportagens era alarmista. Usavam sem miséria a expressão ‘brincando
de Deus’. Temia-se que a nova descoberta iria abrir as portas para bebês geneticamente
alterados. Os pais poderiam selecionar o sexo e até a cor dos olhos dos filhos, criando-se Frankensteins genéticos.
Quinze anos mais
tarde, a possibilidade de se criar um bebê geneticamente modificado é real.
Cientistas ingleses desenvolveram uma tecnologia que trucida a matemática da
genética, como conhecíamos até hoje. Esqueça a equação um óvulo + um espermatozoide
= embrião. A nova técnica propõe criar uma vida humana com dois óvulos e um
espermatozoide. Isso se o Parlamento inglês aprovar uma lei que abre
caminho para o bebê de três pais*.
E o que Maria ganha com isso?
Maria eu não sei.
Mas para muitos casais a nova tecnologia vai trazer tanta alegria quanto aos
pais dos milhões de bebês de proveta. Algumas crianças nascem com uma doença
genética gravíssima e incurável porque a mitocôndria, presente nas células, é
incapaz de transformar comida em energia. A mitocôndria que não funciona bem é
passada pela mãe e os filhos afetados sofrem danos cerebrais, musculares, cardíacos
e cegueira.
A nova tecnologia
usa o óvulo da mãe, mas substitui a mitocôndria que não funciona bem por outra,
retirada do óvulo de uma doadora. Apenas 0,1% do material genético da doadora
passa para o bebê. O Parlamento Britânico deve votar hoje se aprova ou não o
uso da tecnologia. Posso apostar que Sharon Bernardi vai acompanhar a votação de
perto. Ela perdeu sete filhos para a doença. http://www.bbc.co.uk/news/health-23095000
Hoje de manhã
ouvi um parlamentar do partido conservador dizer no rádio que vai votar contra.
O argumento dele é que não se pode abrir a porta para a manipulação genética de
embriões porque, ‘daqui a pouco os pais vão querer escolher a cor dos olhos dos
filhos’. Sei não, já ouvi esta frase antes em algum lugar. Os anglicanos e
católicos também têm trabalhado duro no lobby contrário à aprovação da lei. Se
dizem solidários com os pais, mas que questões éticas precisam ser melhor
pensadas e querem garantias de que a técnica vai funcionar. Pedem mais tempo.
Os avanços
científicos costumam vir acompanhados de polêmicas e questões éticas, que são
importantes e não podem ser desprezadas. Numa das entrevistas que ouvi sobre o
assunto, uma mulher dizia que tinha pena das famílias afetadas pela doença
genética, mas que a natureza devia seguir seu curso. Ainda bem que nem todo
mundo pensa assim. Porque se não fosse pelo antibiótico, só para citar um
exemplo, a natureza teria dado cabo de muita gente e talvez eu ou você não estivéssemos
aqui hoje pensando sobre o assunto.
Só mais uma coisa
antes de eu ir. Será que é hora de parar de ‘brincar de Frankenstein’? Hoje em
dia é fácil rir de Aldini e sua tentativa rocambolesca de trazer um homem de volta à vida. Seus
planos eram audaciosos demais, mas não de todo estúpidos. O desfibrilador,
aquele aparelho que dá choques no coração que bate fora do ritmo, não traz
ninguém de volta, mas adia a ida de muitos pacientes para o além.
Ganha um doce quem advinhar de onde veio a ideia de criar o equipamento.
Ganha um doce quem advinhar de onde veio a ideia de criar o equipamento.
* A lei foi aprovada por 382 parlamentares. 128 votaram contra.
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