sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Três tons de voyeurismo




Ele deveria ter virado para a direita. Virou para esquerda. Encontrou uma serra no caminho e se desintegrou. Era o avião que transportava os rapazes da banda ‘Mamonas Assassinas’. O ano, 1996. O impacto da batida na Cantareira foi tão violento, que o Learjet se despedaçou. Quem estava dentro dele também.


Tragédia que é tragédia acontece quando é o plantão da gente. É assim que pensam os jornalistas. Naquele fim de semana de março, eu estava de plantão na tevê. ‘Pelados em Santos’ e ‘Robocop Gay’ não estavam exatamente entre os top 10 lá de casa, mas os meninos da banda de rock cômico eram simpáticos. E jovens. Estavam no auge do sucesso. A notícia da morte tão violenta foi um choque até para os mais cínicos.


De volta ao plantão. Respirei aliviada quando soube que um colega e, não eu, iria editar a matéria. Acompanhei o editor-chefe distribuir as reportagens do dia, como quem vê um jogo de roleta-russa. Não faço a menor ideia do que editei naquele fim-de-semana, mas não me esqueço do furor que a fita com as imagens brutas, sem edição, provocou na redação. O cinegrafista, sei lá por qual motivo, filmou sessenta minutos de pedaços de corpos espalhados pela mata. As imagens, ouvi dizer, fariam um professor de anatomia vomitar. O cameraman era experiente, ele sabia que as imagens jamais iriam ao ar, mesmo assim registrou tudo o que viu, como se a câmera fosse um escudo que protegesse seus olhos contra o horror ao seu redor.


Nos dias que se seguiram ao acidente, o editor de imagens, que havia copiado as piores cenas fazendo um ‘melhores momentos’ às avessas, ficou famoso na tevê. Tinha fila na ilha de edição dele. Vinha gente do departamento comercial, da segurança, da cozinha, da maquiagem. Todos interessados em ver a carnificina explícita. Uma demonstração sem pudor do voyeurismo mórbido. O mesmo que faz motoristas diminuírem a marcha do carro, para ver melhor o acidente na estrada.


‘Cinquenta tons de cinza’ estreia hoje na Inglaterra, em tempo para o dia dos namorados, que é comemorado no quatorze de fevereiro. A lotação dos cinemas para este fim-de-semana está esgotada. O filme é baseado num livro que tem o mesmo nome e que por aqui foi apelidado de ‘o pornô da mamãe’.






O corpo de bombeiros de Londres está se preparando para um final de semana agitado. Teme um aumento nas chamadas daqueles que, inspirados pelo filme, se atrapalhem com algemas e outros apetrechos sexuais. De abril de 2013 até hoje, atenderam a 393 pedidos de socorro do gênero. Em uma ocasião, receberam a ligação de uma mulher, cujo marido tinha ficado preso a um cinto de castidade. Em outras, foram resgatar homens e suas genitálias em perigo. Algumas presas em torradeiras, outras em aspiradores de pó. O que, convenhamos, deve ter rendido umas boas risadas na sede dos bombeiros.


Levantar lençóis e dar uma espiadinha lá embaixo faz sucesso e não é de hoje. Jorge Amado que o diga. O voyeurismo, que existe no leitor e no espectador, faz vender histórias. Desperta todo o tipo de desejo, os esperados e os de repulsa. Na pré-estreia do filme ontem no centro de Londres, um grupo não foi atrás de autógrafos dos astros de Hollywood. Foi protestar. Carregando cartazes indignados estavam profissionais, que atuam na linha de frente do combate à violência sexual. Para os manifestantes (na maioria mulheres), o filme promove a glamourização de um comportamento sexual perverso e incita à violência. Elas se dizem preocupadas principalmente com as jovens inexperientes, que passam a considerar o tipo de comportamento retratado no filme (e no livro) como sexy e romântico, expondo-as assim a situações de risco.


Na semana do ‘Cinquenta tons de cinza’ outra notícia passou quase batida: graças à Corte Criminal de Justiça a vingança pornográfica agora é crime na Inglaterra e País de Gales. As câmeras dos celulares nos tornaram viciados em registrar imagens. Não basta ir a um show, ou a um evento esportivo, temos que registrar e compartilhar e experiência. Antes se dizia que comemos primeiro com os olhos. Hoje comemos primeiro através da lente da câmera. Registramos um café na cama, os primeiros passos de nossos filhos e as gracinhas que eles fazem. A câmera está em todos os cômodos de nossas vidas. Incluindo o quarto.


Nossos olhos, cada vez mais acostumados a ver o mundo através de lentes e filtros, encontraram uma nova brincadeira. Alguns casais, principalmente os que cresceram íntimos da tecnologia, gostam de se filmar. Enquanto se trata de um jogo consentido entre as partes envolvidas, não é da conta de ninguém. O problema é quando uma parte não tem esportiva. Não aceita bem o fim de um relacionamento e deixa o bicho cabeludo da vingança tomar conta. Aí é só apertar um botão e, num instante, o que era privado vira público, muito público. As imagens são rapidamente capturadas por sites de pornografia e se reproduzem na internet mais rápido do que coelhos.

As mulheres são as maiores vítimas deste tipo de crime. Uma vez lá, é impossível retirar as imagens da rede. Li outro dia o caso de uma professora, que perdeu o emprego e não é mais empregável graças a uma vingança pornográfica. Toda vez em que ela pleiteia um emprego, o possível empregador pesquisa na internet e dá de cara com as imagens, que nunca deveriam ter saído do quarto.

http://www.bbc.co.uk/news/uk-31429026


A nova lei prevê que o responsável pela divulgação das imagens seja condenado a uma pena que pode chegar a dois anos de prisão. Os críticos dizem que se a polícia tiver recursos suficientes para investigar todos os casos, vai faltar lugar nas prisões. Recomendam que as pessoas devam ser educadas sobre o perigo de se exporem. Qualquer pai de criança pequena sabe que esta é uma tarefa difícil, nesta época em que o que é público e o que é privado é um conceito muito embaçado. As gracinhas de nossos filhos são públicas ou privadas? Como eles entendem esta diferenciação? Como nós entendemos os limites? Muitos de nós ainda não temos uma compreensão clara das implicações que a internet pode ter na vida de nossos filhos e nas nossas também.


Até outro dia, se alguém tivesse dito a palavra ‘selfie’, eu ia achar que se tratava de uma nova modalidade de restaurante ‘self service’. Hoje fazer essa piadinha pega até mal. Os ‘selfies’ estão aí e aqui. Em bares, festas, nascimentos, acidentes e até funerais. Não é mesmo, Mr Obama? Se o acidente dos Mamonas fosse hoje, as imagens, pra lá de explícitas, teriam sido capturadas por membros da equipe de resgate e curiosos.  Seriam compartilhadas exaustivamente na internet e meus colegas não precisariam fazer fila na ilha de edição.


No fim das contas, as imagens que registramos diariamente dizem muito mais sobre nós do que sobre o que retratamos. Na era do voyeurismo sem pudor, não dá para dormir no ponto.



Nenhum comentário:

Postar um comentário