Ele deveria ter
virado para a direita. Virou para esquerda. Encontrou uma serra no caminho e se
desintegrou. Era o avião que transportava os rapazes da banda ‘Mamonas
Assassinas’. O ano, 1996. O impacto da batida na Cantareira foi tão violento,
que o Learjet se despedaçou. Quem estava dentro dele também.
Tragédia que é
tragédia acontece quando é o plantão da gente. É assim que pensam os
jornalistas. Naquele fim de semana de março, eu estava de plantão na tevê. ‘Pelados
em Santos’ e ‘Robocop Gay’ não estavam exatamente entre os top 10 lá de casa,
mas os meninos da banda de rock cômico eram simpáticos. E jovens. Estavam no
auge do sucesso. A notícia da morte tão violenta foi um choque até para os mais
cínicos.
De volta ao
plantão. Respirei aliviada quando soube que um colega e, não eu, iria editar a
matéria. Acompanhei o editor-chefe distribuir as reportagens do dia, como quem
vê um jogo de roleta-russa. Não faço a menor ideia do que editei naquele
fim-de-semana, mas não me esqueço do furor que a fita com as imagens brutas,
sem edição, provocou na redação. O cinegrafista, sei lá por qual motivo, filmou
sessenta minutos de pedaços de corpos espalhados pela mata. As imagens, ouvi
dizer, fariam um professor de anatomia vomitar. O cameraman era experiente, ele
sabia que as imagens jamais iriam ao ar, mesmo assim registrou tudo o que viu,
como se a câmera fosse um escudo que protegesse seus olhos contra o horror ao
seu redor.
Nos dias que se
seguiram ao acidente, o editor de imagens, que havia copiado as piores cenas
fazendo um ‘melhores momentos’ às avessas, ficou famoso na tevê. Tinha fila na
ilha de edição dele. Vinha gente do departamento comercial, da segurança, da
cozinha, da maquiagem. Todos interessados em ver a carnificina explícita. Uma
demonstração sem pudor do voyeurismo mórbido. O mesmo que faz motoristas diminuírem
a marcha do carro, para ver melhor o acidente na estrada.
‘Cinquenta tons
de cinza’ estreia hoje na Inglaterra, em tempo para o dia dos namorados, que é
comemorado no quatorze de fevereiro. A lotação dos cinemas para este
fim-de-semana está esgotada. O filme é baseado num livro que tem o mesmo nome e
que por aqui foi apelidado de ‘o pornô da mamãe’.
O corpo de bombeiros
de Londres está se preparando para um final de semana agitado. Teme um aumento
nas chamadas daqueles que, inspirados pelo filme, se atrapalhem com algemas e
outros apetrechos sexuais. De abril de 2013 até hoje, atenderam a 393 pedidos
de socorro do gênero. Em uma ocasião, receberam a ligação de uma mulher, cujo
marido tinha ficado preso a um cinto de castidade. Em outras, foram resgatar
homens e suas genitálias em perigo. Algumas presas em torradeiras, outras em
aspiradores de pó. O que, convenhamos, deve ter rendido umas boas risadas na
sede dos bombeiros.
Levantar lençóis
e dar uma espiadinha lá embaixo faz sucesso e não é de hoje. Jorge Amado que o
diga. O voyeurismo, que existe no leitor e no espectador, faz vender histórias.
Desperta todo o tipo de desejo, os esperados e os de repulsa. Na pré-estreia do
filme ontem no centro de Londres, um grupo não foi atrás de autógrafos dos
astros de Hollywood. Foi protestar. Carregando cartazes indignados estavam profissionais,
que atuam na linha de frente do combate à violência sexual. Para os
manifestantes (na maioria mulheres), o filme promove a glamourização de um
comportamento sexual perverso e incita à violência. Elas se dizem preocupadas
principalmente com as jovens inexperientes, que passam a considerar o tipo de
comportamento retratado no filme (e no livro) como sexy e romântico, expondo-as
assim a situações de risco.
Na semana do ‘Cinquenta
tons de cinza’ outra notícia passou quase batida: graças à Corte Criminal de
Justiça a vingança pornográfica agora é crime na Inglaterra e País de Gales. As
câmeras dos celulares nos tornaram viciados em registrar imagens. Não basta ir
a um show, ou a um evento esportivo, temos que registrar e compartilhar e
experiência. Antes se dizia que comemos primeiro com os olhos. Hoje comemos
primeiro através da lente da câmera. Registramos um café na cama, os primeiros passos
de nossos filhos e as gracinhas que eles fazem. A câmera está em todos os
cômodos de nossas vidas. Incluindo o quarto.
Nossos olhos,
cada vez mais acostumados a ver o mundo através de lentes e filtros,
encontraram uma nova brincadeira. Alguns casais, principalmente os que
cresceram íntimos da tecnologia, gostam de se filmar. Enquanto se trata de um
jogo consentido entre as partes envolvidas, não é da conta de ninguém. O
problema é quando uma parte não tem esportiva. Não aceita bem o fim de um
relacionamento e deixa o bicho cabeludo da vingança tomar conta. Aí é só
apertar um botão e, num instante, o que era privado vira público, muito
público. As imagens são rapidamente capturadas por sites de pornografia e se
reproduzem na internet mais rápido do que coelhos.
As mulheres são
as maiores vítimas deste tipo de crime. Uma vez lá, é impossível retirar as
imagens da rede. Li outro dia o caso de uma professora, que perdeu o emprego e
não é mais empregável graças a uma vingança pornográfica. Toda vez em que ela
pleiteia um emprego, o possível empregador pesquisa na internet e dá de cara
com as imagens, que nunca deveriam ter saído do quarto.
http://www.bbc.co.uk/news/uk-31429026
A nova lei prevê
que o responsável pela divulgação das imagens seja condenado a uma pena que
pode chegar a dois anos de prisão. Os críticos dizem que se a polícia tiver
recursos suficientes para investigar todos os casos, vai faltar lugar nas
prisões. Recomendam que as pessoas devam ser educadas sobre o perigo de se
exporem. Qualquer pai de criança pequena sabe que esta é uma tarefa difícil,
nesta época em que o que é público e o que é privado é um conceito muito
embaçado. As gracinhas de nossos filhos são públicas ou privadas? Como eles
entendem esta diferenciação? Como nós entendemos os limites? Muitos de nós ainda
não temos uma compreensão clara das implicações que a internet pode ter na vida
de nossos filhos e nas nossas também.
Até outro dia, se
alguém tivesse dito a palavra ‘selfie’, eu ia achar que se tratava de uma nova
modalidade de restaurante ‘self service’. Hoje fazer essa piadinha pega até mal.
Os ‘selfies’ estão aí e aqui. Em bares, festas, nascimentos, acidentes e até
funerais. Não é mesmo, Mr Obama? Se o acidente dos Mamonas fosse hoje, as
imagens, pra lá de explícitas, teriam sido capturadas por membros da equipe de
resgate e curiosos. Seriam
compartilhadas exaustivamente na internet e meus colegas não precisariam fazer
fila na ilha de edição.
No fim das contas, as imagens que
registramos diariamente dizem muito mais sobre nós do que sobre o que
retratamos. Na era do voyeurismo sem pudor, não dá para dormir no ponto.
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