Na
páscoa de 2012, perdi uma amiga. Uma das pessoas mais interessantes que
conheci na Inglaterra. Foi embora, aos noventa e seis anos, contrariada. Tinha
resolvido que ia viver até os cem, para receber um telegrama de felicitações da
Rainha. Este post é para manter viva a memória de uma senhora muito especial,
que tinha a mania de gostar da vida e de ser independente.
Sessenta e cinco degraus separam a rua do
quarto miserável onde a família se espreme no tempo que separa as duas grandes
guerras. No corredor, um fogareiro; as meninas dividem a cama e uma cortina
fina e encardida protege a intimidade do casal. Lá em cima, luz de lampião. Luz
elétrica só no salão de bilhar, no andar térreo onde o pai trabalha e as
mulheres são proibidas de entrar.
Sessenta e cinco enormes
degraus, que só existem na memória de menina, que ela revisita há quase noventa
anos. Eles vieram abaixo para dar lugar à expansão da estação de Clapham, no
sul de Londres muitas décadas atrás.
Sessenta e cinco degraus que estão prestes a desabar mais uma vez, quando a memória se apagar para sempre. Marjorie está exausta, mas continua no comando, como nunca deixou de estar. Já é quase hora de partir. Os lábios tão secos já não conseguem mais cobrir a boca. Os dentes estão expostos e as rugas se fazem couro ressecado. O corpo magérrimo sustenta um fio frágil de vida. O presente não é bom. Ela abre a caixa de reminiscências. O passado é mais seguro. As histórias já ouvi várias vezes. Sempre na mesma sequência. Sempre com as mesmas palavras. Repetir, repetir, como uma criança, que pede para ouvir o mesmo Conto de Fadas todas as noites. O passado é mais seguro.
No quarto de hospital, só
uma cortina a separa da paciente na cama ao lado. Ela não se preocupa com
privacidade. Os assuntos terrenos já não são importantes. Com a voz fraca, me
conta as histórias uma última vez...
Marjorie está ao pé da
escada. Ela pensa se já está na hora de subir os sessenta e cinco degraus. Está
entediada e brinca de acender e apagar a luz. O interruptor é daqueles antigos.
Um fio que desce dependurado do teto. Ela aperta o botão, aperta de novo e de
novo. Até que leva um empurrão, que a faz subir os sessenta e cinco degraus,
sem parar para tomar fôlego. Ela chega ao topo convencida de que foi um dos
homens, que frequentava o salão de bilhar. Só anos depois, ela se dá conta que
tinha levado um choque elétrico, ela fala como se tivesse acabado de juntar os
pontos da história.
Menina cheia de energia,
confinada num cubículo, filha de mãe religiosa, severa e reservada e de pai
ausente, que sempre achava tempo e dinheiro para ir ao pub depois do trabalho,
Marjorie vivia se metendo em encrencas e acabou conquistando a fama de
incorrigível.
Quando tinha oito anos,
todas as crianças da rua só falavam de um refrigerante novo que tinha chegado
ao mercado. Marjorie sonhava em provar a novidade. Pedir para a mãe estava fora
de questão; a bebida custava seis centavos de libra! Outra menina da rua, Maggie
Smith, se ofereceu para comprar o refrigerante para Marjorie. Elas foram até a
casa da menina. A mãe dela estava na cozinha e as duas foram direto para o
quarto dos pais. Maggie levantou o colchão, tirou seis centavos de dentro de um
saco de moedas e deu o dinheiro para Marjorie.
Marjorie nunca me contou
que gosto tinha a bebida. Mas ficou com um sabor amargo na boca para sempre.
Invariavelmente ela terminava a história num tom de contrição dizendo: ‘ foi
neste dia que me tornei uma ladra’. Ah, os pecados que gente não perdoa...
A mãe de Marjorie
engravidava e perdia os bebês com a mesma facilidade. Ela queria muito um
menino. Marjorie sabia disso porque a irmã mais velha, Bernice, havia contado
para ela. ‘Minha mãe nunca conversava comigo, só com minha irmã mais velha e
com a mais nova’, ela me contou várias vezes. E depois ela continuava a
história; 'naquele tempo, você sabe, as mulheres tinham filho em casa. Um dia
minha mãe gritou muito. Depois apareceu a parteira com o bebê enrolado num pano
e minha mãe berrou de trás da cortina: Marjorie não pode ver. Só mostre para
Bernice'. Mais tarde, Bernice contou que o bebê estava preto.
Marjorie não tem ideia de
quantos filhos sua mãe perdeu. Ela se lembra de voltar para casa um dia e ver a
mãe assentada perto da janela, muito triste, com o olhar vago, a cabeça raspada
e todos os dentes arrancados. Um médico teria dito para a mãe dela que o único
jeito de salvar o bebê, que ela carregava, seria cortando todo o cabelo e
extraindo todos os dentes da boca. Marjorie faz uma pausa e revela pela
primeira vez que ainda guarda a trança da mãe em algum canto da casa, e que ela
não se lembra mais aonde. Depois suspira e acrescenta: ‘guardei este cabelo por
tantos anos e em breve ele não vai fazer sentido para mais ninguém'...
Marjorie agora é adulta.
Ela consegue um emprego de desenhista de projetos. Era só trabalho, ela diz. O
chefe dela tem uma filha famosa, uma atriz e bailarina chamada Moira Shearer,
que estrelou um filme chamado The Red Shoes. O pai de Moira a leva ao ballet uma
noite. ‘Ele era um homem muito distinto. Estendeu os braços, com uma autoridade
que eu nunca tinha visto e chamou um táxi. Eu nunca tinha entrado num táxi’,
ela conta. ‘Jamais teria tido coragem de chamar um táxi’. Eles vão ver uma
apresentação de Margot Fontyen. Depois do espetáculo, vão os quatro comemorar:
Moira, o pai, Margot Fontyen e Marjorie vivendo seu dia de Cinderela.
Cena do filme 'The Red Shoes' |
O escritório, onde ela
trabalhava, ficava no andar acima do gabinete onde Churchill despachava. Ela
topou com o homem algumas vezes, até que a situação em Londres ficou perigosa
demais por causa dos bombardeios. Os anos da Segunda Guerra foram os anos
dourados da vida de Marjorie.
Marjorie foi levada para o
norte da Inglaterra, em Yorkshire, longe das bombas. Foi morar com uma
fazendeira amorosa, cujo marido tinha ido defender o país. Durante o dia, ela e
a família trabalhavam duro. À noite, as mulheres se assentavam na sala e ouviam
atentas as notícias de guerra pelo rádio. Elas rezavam para que o homem da casa
voltasse inteiro e respirando.
A casa era cheia de crianças
e de vida. Mesmo durante a guerra, na fazenda não faltava comida. Um dos
meninos costumava levar nozes para ela. Vinha com as mãozinhas imundas e um
sorriso no rosto. O outro menino havia perdido um olho num acidente na fazenda.
‘Antes de dormir, ele usava a ponta de uma caneta para retirar o olho de vidro
e colocar num copo. Trocamos cartas até a morte dele. Mesmo com um olho só, ele
viveu uma vida plena e feliz’.
Os vizinhos se juntaram e
compraram uma bicicleta para Marjorie. Foi o primeiro presente que ganhou na
vida e o mais valioso de todos, o que ela nunca esqueceu. A bicicleta foi seu
salvo-conduto para novas descobertas. Nos fins-de-semana, ela, que havia
passado a infância claustrofóbica sessenta e cinco degraus acima, experimentava
os espaços abertos e o ar livre. Saía pedalando assim que sol raiava e só
voltava antes de escurecer.
Marjorie recebeu quatro
propostas de casamento. A todas deu a mesma resposta: não seria apropriado.
Ainda mocinha ela saiu com um rapaz. ‘Ele foi um bruto. Voltei para casa e
minha mãe quis saber por que meu vestido estava amassado. Nunca contei’. A
experiência traumática foi decisiva. Mas também ela não era mulher de obedecer
a homem nenhum. Marjorie tinha alma que não se tranca.
Depois da guerra, ainda
jovem e independente, sem filhos e outras obrigações, ela passou alguns verões
nos Alpes suíços e austríacos, fazendo o que mais gostava, celebrando a
natureza. Tinha adquirido o gosto pelas montanhas e o ar puro. Os espaços
abertos combinavam com ela.
Hoje fui ao hospital me despedir.
Marjorie foi internada há menos de uma semana. Foi tudo rápido. Descobriram que
um câncer está lhe comendo o pâncreas. Até duas semanas atrás, ela estava bem,
se virando sozinha. Marjorie tinha horror de ir parar num asilo claustrofóbico,
cheio de regras, que não eram as dela.
Ela está partindo como
sempre viveu; em seus próprios termos. Dona de seu destino.
(Abril / 2012)
* Da Gaveta:
Toda redação de TV tem o que o jargão jornalístico chama de ‘matéria de gaveta’. Reportagens digamos, nem tão factuais assim, que o editor-chefe ama em dias fracos de notícias. O Da Ilha também tem suas histórias ‘da gaveta’. São impressões de quando eu ainda era novata no Reino da Rainha.
Maria Eduarda, eu tb tive um amigo, George que faleceu um pouco antes da Pascoa de 2012. Ele corria diariamente 5 milhas ate' os 95 anos e faleceu aos 108, lucido porem, meio confuso e esquecido. Tal qual a sua Marjorie, me contava estorias e historias de vida incriveis e posso imagina-los dialogando, com a fleuma britanica tipica dos ingleses daquela geracao . Adorei conhecer a sua excentrica amiga, atraves da tua narrativa igualmente unica e interessante.
ResponderExcluirTem gente que passa por aqui, sem sal nem açúcar. Tem também os Georges e as Marjories, que vêm temperar a vida. Sorte a nossa de ter conhecido essas pessoas tão especiais. Juraci, obrigada por sua leitura sempre tão atenta e carinhosa. Um abraço.
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