quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Testemunha Ocular

 
Belo Horizonte, anos 80


Eu estava no carro com a minha mãe numa movimentada avenida de Belo Horizonte. Ela ia ao volante. O sinal tinha acabado de abrir. De repente, alguma coisa caiu do carro que seguia à nossa frente. Minha mãe, muito mais experiente, viu de cara que não era um pacote e sim um corpo. Parou o carro no acostamento. Do outro lado da pista junto ao canteiro central, um motorista jovem parecia desesperado do lado de fora do carro, com as mãos na cabeça.  

Estatelada no asfalto, uma velha. O corpo estava desconjuntado de uma forma impossível e macabramente ridícula. Origami de ossos. Seus seios murchos se derretiam no chão, junto com todas as rugas. Havia uma poça espessa como esmalte vermelho berrante. O sangue tinha desistido de escorrer. Parecia impensável que, apenas alguns segundos atrás, tivesse existido vida no que então era uma carcaça tão morta, absurdamente imóvel..


O motorista veio falar com a minha mãe. Estava fora de si e pediu que ela o levasse até a casa dele, que ficava ali perto, para buscar seus pais. Sei lá porque, ele entrou no banco de passageiro e eu saí. Um detalhe importante deste atropelamento é que ele aconteceu em frente a uma favela enorme. Um tsunami de piranhas humanas desceu o morro e depenou o carro do atropelador com uma fome ancestral. Do carro só sobrou a carcaça. 

O tempo esquentou. Uma mulher muito nervosa gritava que tinha visto o motorista entrar no prédio que, dia sim e dia também, encarava a favela num deboche de quem estava alguns degraus acima na escala social. Alguém cobriu o corpo da velhinha com jornais. Um fotógrafo materializado do além  disparava sua câmera sem cerimônia. O porteiro do prédio abandonou sua guarita. A polícia chegou e começou a distribuir golpes de cassetete como quem bate um bife para ele ficar mais macio. Notei que minha mãe estava de volta com o rapaz. Depois de prestarmos depoimento, seguimos viagem abastecidas de adrenalina e tristeza.

Os acontecimentos daquela manhã foram de uma violência que eu nunca tinha vivenciado. Uma coisa que me impressionou muito foram as versões que as “testemunhas” compartilhavam, sem que ninguém tivesse perguntado. Diziam que o motorista estava escondido no prédio. Que ele havia acelerado o carro quando viu a velhinha. Que teria desviado para acertar a velha de propósito, como se gostasse de jogar boliche humano.



 
 

22 de julho de 2005
 

Londres ainda estava inquieta por causa dos ataques terroristas do dia sete de julho. Quatro homens-bomba haviam matado 52 pessoas e ferido mais de 700. Os nervos estavam à flor da pele. Na tevê, surgiam as primeiras notícias de que a Polícia Metropolitana da Capital havia matado um suspeito dentro de um vagão de trem na estação de Stockwell. Como dois e dois são quatro, a conclusão lógica era que os policias tinham evitado mais um atentado. Me lembro claramente das primeiras versões: “ A vítima teria pulado as catracas, tentando escapar da perseguição policial”. Mais de uma testemunha descreveu o morto como “um tipo mulçumano”.  

Logo outra história começou a se desenhar. De fato, o ‘elemento abatido’ não era um caucasiano alto, loiro e de olhos azuis. Entretanto, não se tratava tampouco de um terrorista, muito menos islâmico. Hoje todo mundo sabe que era o brasileiro Jean Charles de Menezes, que foi confundido com um suspeito.  
 
 
Jean Charles de Menezes
 

Mais uma vez, os preconceitos das testemunhas e da própria polícia ‘embaçaram’ seus julgamentos. Eles viram o que quiseram ver. 
 

31 de dezembro de 2015 – Colônia na Alemanha
 

Gangues assaltam e molestam mulheres alemãs na festa de comemoração do ano novo, próximo à estação de trem da cidade. A polícia recebeu mais de 90 queixas-crime. A correspondente da BBC na Alemanha diz em seu texto que: “pelo menos uma mulher foi estuprada”. Como assim pelo menos uma? Que notícia é essa?  As vítimas afirmam que os agressores eram "árabes ou do Norte da África". 
 
 A notícia do arrastão com retoques de crime sexual tem repercutido massivamente aqui na Ilha. Primeiro, pela natureza e tamanho dos ataques, que aparentemente são incomuns por lá. Mas tem chamado atenção a declaração da prefeita da cidade de Colônia, que sugeriu que as mulheres andassem acompanhadas de homens em grandes eventos públicos como o do réveillon.  

Dá vontade de gritar cada vez que vejo alguém comentar que uma mulher mereceu ser abusada/estuprada, porque ‘deu mole’, se vestiu de maneira inapropriada e por aí vai. O culpado é o agressor e não a vítima e não tem o que discutir. 


Testemunha Ocular

Estima-se que um milhão de refugiados tenha entrado na Alemanha, só no ano passado. A população do país é de 82.652 milhões de pessoas. Quando eu estava grávida, participei de um grupo de pré-natal. Um dos casais dizia categoricamente que a chegada do filho não iria mudar a vida deles. A criança teria que se adaptar à rotina dos pais. Gostaria de me encontrar com eles hoje em dia e perguntar como vai o plano deles. Não dá para receber tanta gente em seu país, pessoas vindas de culturas diversas e esperar que a vida não vá mudar. A prefeita de Colônia tem sido muito criticada por sua declaração. Do jeito que enxergo o comentário, ela está sendo pragmática. Levanta a mão quem acha que é sensato (usei a palavra sensato e não justo ou correto) passear por áreas de alta criminalidade usando relógio caro e joias chamativas? 

Ah, mas isso não está certo. Quem chega tem que respeitar as regras do lugar, certo? Certíssimo. Justíssimo. Mas o buraco é mais embaixo. Quem é que vive num mundo ideal? Me apresente esse lugar, porque ainda não conheci. Então, o negócio é fechar as portas e não deixar mais ‘essa gente’ entrar!  Será? 
 

Angela Merkel



A chanceler alemã Angela Merkel não abriu as fronteiras de seu país aos refugiados porque é boazinha. O país precisa dos imigrantes, como aliás o Reino Unido também http://mariaeduardajohnston.blogspot.co.uk/2015/09/precisamos-falar-sobre-imigracao.html . Mas não é só a questão econômica. A situação dos refugiados, sírios, afegãos e africanos é desesperadora. Não dá para virar as costas e ignorar o drama dessas pessoas. http://mariaeduardajohnston.blogspot.co.uk/2015/09/questao-moral.html É fácil? Claro que não é. Para ninguém. Mas não tem volta. Não dá para declarar que a política de imigração foi um fracasso, quando os primeiros problemas aparecem. 


Pelo que acompanho das notícias na Alemanha, a questão da imigração é muito polarizada. Há aqueles que apostam no fracasso do programa. As 90 vítimas dos ataques no ano novo estão enganadas quando dizem que os agressores eram estrangeiros? Pode ser que quem está jogando contra esteja por trás dos ataques? Ou será que bandidinhos se valeram da atual tensão no país para assaltar as mulheres? Quem sabe as testemunhas estão certas? Foram mesmo os refugiados mulçumanos "que não respeitam as mulheres". Não sei. Ninguém sabe. Por isso, é tão importante que os fatos sejam apurados corretamente e que os culpados respondam por seus crimes. O que sei é cada um de nós é testemunha do que promete ser um dos maiores desafios deste ano nesta parte do globo: a integração de culturas.


Cada um vai ter uma versão para contar.

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