quinta-feira, 16 de julho de 2015

Fator Cultural




“ Existem dois tipos de pessoas: As que usam Chanel e as que batizam a filha com o nome Chanel”.

 A piadinha eu ouvi no rádio e fazia parte de um programa para revelar novos talentos cômicos. Politicamente incorreta até a raiz, a frase expõe a divisão de classes nesta Ilha. Os ingleses preferem fazer de conta que ela não existe. Falar de conflitos, expor diferenças não é de bom tom. Mas que as diferenças existem, ah sim, elas existem. Uma amiga brasileira teve a filha aqui na Inglaterra. Queria furar a orelha da menina, mas foi aconselhada por uma amiga inglesa a desistir da ideia. "Furar orelha de criança é coisa de cigano", ela teria dito. Na visão de alguns ingleses, furam as orelhas das bebezinhas as mães ‘working class’, de classe baixa para você e eu.

As escolas primárias também olham torto para  meninas de brincos. Em muitas delas o uso do acessório é proibido, em outras, as alunas são obrigadas a tirar os brincos na hora da educação física. Surgem histórias e mais histórias horripilantes de orelhas que ficaram infeccionadas por causa dos famigerados brincos. Pais e educadores indignados circulam petições pedindo uma lei que ponha fim ao que eles consideram abuso infantil.
 



 



 

O tema da orelha furada volta e meia aparece nas discussões de grupos de brasileiras que moram no exterior. Não vejo muita referência às divisões de classe, mas é comum por aqui dizer que furar orelha de bebê é uma forma de tortura. Algumas brasileiras dizem que é exagero e que no Brasil as meninas já saem da maternidade com os brinquinhos. Faz parte da cultura.

 

Tortura para a vida toda
 

 Há os que vão mais longe e comparam os furinhos nos lóbulos com a mutilação genital de meninas. Vi essa comparação várias vezes. Este é um assunto muito mais sério. No entanto, para alguns trata-se de mais uma questão cultural. Para as vítimas, é uma tortura que dura uma vida (provoca infecções, problemas renais, aumenta o risco de abortos, de infertilidade, de morte pós-parto, dor ao urinar e principalmente dor durante o ato sexual).


A rede de notícias CNN cobriu o tema pelo menos uma vez em que eu estava de plantão. As tevês compravam o conteúdo da rede americana e podíamos reproduzir as histórias. Nunca me esqueci daquela reportagem. Mostrava uma menina de uns sete, oito anos sendo levada para a ‘operação’. Contaram para ela que ela ia ter uma surpresa e ela foi toda feliz.  Com a câmera ao lado da criança, o cinegrafista registrou o momento em que a navalha cortava sua carne. A menina urrava e, embora segurada por várias mulheres, esperneava de dor. Uma cena que não consegui deletar da cabeça, mesmo sendo uma realidade tão distante da brasileira.




 

 

Aqui na Ilha a história é diferente. Estima-se que 66 mil mulheres e adolescentes vivam neste país sofrendo as consequências da FGM (em inglês Female Genital Mutilation) a mutilação genital feminina. A maioria, primeira ou segunda gerações de imigrantes vindos de países africanos, do Oriente Médio e Ásia. Muitas meninas são levadas para o país de origem de seus pais nas férias de verão. Lá elas são cortadas a seco (sem nenhum anestésico) em geral por outras mulheres, que usam de facas a cacos de vidro. Mas a prática também acontece aqui na terra da Rainha.
 

A FGM é ilegal no Reino Unido desde 1985. Entretanto, nestes trinta anos ninguém foi condenado. No começo deste ano, um médico acusado de mutilar uma paciente somaliana (que havia sido previamente mutilada quando criança) foi inocentado pela Justiça. A paciente sofreu complicações ao dar à luz, porque seus órgãos genitais haviam sido cortados e costurados, impedindo que o bebê nascesse naturalmente. O Dr. Dhanuson Dharmasena (nascido no Sri Lanka, onde a prática da mutilação é comum), um residente recém-formado em obstetrícia, foi chamado para ajudar. Ele fez um corte e o menino nasceu com ajuda de fórceps. Seu erro foi ter costurado a mulher da forma como se faz nas mutilações sexuais. Ele se defendeu dizendo que não sabia das regras (o hospital onde ele trabalhava atende anualmente em média 130 mulheres, que têm dificuldades durante o parto, devido às FGM). Ele disse que a parturiente sangrava muito e que se ele não tivesse intervindo, ela teria morrido. Ficou assim o único caso que foi a julgamento por aqui.


 
Não é fácil indiciar os culpados por este tipo de crime. As famílias envolvidas não falam sobre o assunto. A paciente somaliana, por exemplo, declarou que sofria muito por estar no centro do processo. Seu nome foi preservado, graças à uma decisão judicial. Mas em sua comunidade, todo mundo sabe quem é quem.



Em alguns países a sexualidade feminina é mais do que um tabu. As meninas são mutiladas para que não tenham libido e portanto não envergonhem suas famílias e seus maridos. O que eles chamam de honra, é  questão de vida ou morte.

 


Crimes de honra



Shafilea Ahmed era uma moça bonita. Nascida e criada na Inglaterra. Filha de imigrantes paquistaneses. Aos dezessete anos, ela queria viver como suas amigas da mesma idade. Sonhava com festas, maquiagem e rapazes. Seus pais não se conformavam e torturavam a garota, para que ela vivesse de acordo com a cultura paquistanesa. Ela estava muito aculturada para o gosto deles. Eles a levaram para o Paquistão e quando ameaçaram deixá-la  por lá, ela entrou em desespero e chegou a tomar água sanitária. De volta à essa Ilha, Shafilea procurou o governo local, para que arranjassem uma acomodação para ela. Ela temia que seus pais a obrigassem a se casar contra sua vontade. Apesar de seus esforços, ela nunca chegou a sair de casa. Seus pais a sufocaram com um saco de plástico e tentaram se livrar do corpo da filha. O chamado ‘crime de honra’ aconteceu em 2003 e os assassinos vão passar muito tempo na prisão.





Shafilea Armed



 



Infelizmente, este não é um caso único. Foram registradas mais de onze mil ocorrências de crimes de honra entre 2010 e 2014. Os atos criminosos muitas vezes são acobertados por famílias e comunidades, preocupadas em defender suas reputações. As maiores vítimas, como sempre, são as mulheres. Estes crimes incluem abuso emocional, raptos, torturas físicas e até assassinatos. Existem várias ONGs trabalhando para reverter este quadro. Quem conhece o assunto acredita que o número de abusos seja muito maior do que os reportados, porque as vítimas têm medo das consequências para suas famílias, caso decidam falar.



 

Os ingleses têm o saudável hábito de relembrar. Não para lamber as feridas, mas para que as pessoas não se esqueçam do sofrimento e do sacrifício humano de alguns e, se possível, para que se possa aprender uma lição ou duas. Por causa disso, terça que vem será celebrado o primeiro Dia pela Memória das Vítimas de Crimes de Honra. A data não foi escolhida ao acaso. Se estivesse viva, Shafilea estaria completando 29 anos no dia 21 de julho.
 
 
 
 
 

                                                                    

Vamos por um minuto nos esquecer do que os ingleses falam sobre furar as orelhas de bebezinhas. Por que mesmo fazemos isso com nossas meninas? Já paramos para pensar no assunto? Porque é cultural e é assim que se faz. Pode ser um argumento. Não dá para comparar um brinco com uma mutilação genital e muito menos com crimes contra a honra. Entretanto, nos três casos existe um fio condutor comum. O tal do fator cultural. O que é aceitável em uma sociedade, pode não ser em outras. Que bom seria se estivéssemos dispostos a pensar para valer em quais valores e práticas deveríamos manter e quais estariam melhor na lata do lixo. Enxergar além do próprio quintal pode ajudar. Ou não.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário