“ Outro dia mesmo levamos nossa gata ao veterinário para
ser sacrificada. Morte piedosa. Minha mulher está se acabando no hospital e não
podemos fazer nada”.
Foi o que meu vizinho me disse alguns anos atrás, quando
perguntei como estava sua esposa. Internada num ‘hospice’ (como são chamados os
hospitais para pacientes terminais no Reino Unido), ela morreria alguns dias
mais tarde de câncer. Fiquei totalmente desconcertada com a crueza e a
franqueza dele. Quis dar-lhe um abraço, mas não movi um músculo
sequer. Talvez tenha sido melhor assim. Ele não queria minha piedade, só precisava botar para fora o que estava em seu coração. Poucas vezes na vida vi um casal mais
apaixonado do que Harry e Martha.
Um
tabu de cada vez
Quando eu era criança, Margarida, que trabalhou primeiro
para minha avó e depois para minha mãe, adorava contar uma história para eu
dormir. Era tão ruim, mas tão ruim, que era boa. Era mais ou menos assim: “Um dia a gripe e
a aranha se encontraram. Duas senhoras infelizes e reclamonas. A aranha disse
que sua vida era uma tragédia. Ela morava na cidade e assim que terminava de
construir sua teia, vinha uma pessoa limpar e destruía tudo. O trabalho não
acabava nunca. Dona gripe conseguiu ser mais dramática: a
vida no campo é ainda mais insuportável. Eu pego em uma pessoa, ela não se
trata e acaba morrendo. Tenho que sair em busca de outra que cuide de mim.
Estou exausta e maltratada. As duas então resolvem trocar de casa. Tempos
depois se encontram: a gripe está felicíssima. Na cidade, eles me dão suco de
laranja, cuidam bem de mim. A aranha também está no céu. Na roça, teço minha
teia e ela fica lá quietinha. Ninguém se incomoda em limpá-la. Tenho vida de
madame.” Fim da história. Brilhante, né?
Por uma dessas associações (muito livres) de ideia, li uma vez um artigo sobre a morte e pensei na fábula que escutava quando era pequena. Dizia que o sexo e a morte haviam trocado de lugar na sociedade moderna. Antigamente, as pessoas adoeciam, eram tratadas em casa, morriam em suas camas e eram veladas na sala de visita. Já o sexo, era assunto da rua. Hoje em dia, assim como a aranha e a gripe, a morte e o sexo trocaram de endereço. Morre-se no hospital, o corpo é velado e enterrado no cemitério. Já o sexo, depois da revolução sexual, é tratado com naturalidade. É quase como se pudéssemos suportar só um tabu de cada vez. Não falamos sobre a morte, porque ela foi exilada para um lugar onde não estamos mais. Pelo menos gostaríamos que fosse assim.
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Boa
morte
De vez em quando o site da BBC na Inglaterra abre espaço
para a opinião do leitor. Essa semana trouxe uma matéria sobre a eutanásia na
Bélgica e perguntou: ‘É certo que uma
mulher com depressão crônica seja autorizada a ter uma morte assistida?” Em bom
português: ela pode ter uma eutanásia? (eutanásia vem do grego e significa boa
morte, morte sem dor).
Na Bélgica, assim como na Holanda e Suíça a eutanásia é
legal. Na Bélgica, desde 2013, o direito foi estendido às crianças com doenças
terminais*. Os médicos decidiram atender ao pedido de ‘Laura,’ a mulher com
depressão crônica. Ela poderá ter uma morte assistida.
‘Laura’ tem vinte e quatro anos. Sofre de depressão
crônica desde criança e, há três anos, vive internada numa clínica psiquiátrica.
‘Vida não é para mim’, ela teria dito a um jornal. Laura agora passa os dias
planejando o próprio funeral e se despedindo dos pais e da avó, que a criou.
Eutanásia na Ilha
Do lado de cá do Canal da Mancha, o assunto divide
opiniões. De tempos em tempos leio nos jornais o caso de algum paciente de
doença degenerativa, que quer o mesmo direito de um cidadão belga que esteja no
mesmo barco. Tem também familiares que vão à Justiça pedir para não serem
importunados, caso levem um ente querido para uma boa morte nos países onde a
eutanásia é legal. Desde 1961, uma lei no Reino Unido prevê até 14 anos de
prisão para quem ajudar outra pessoa a cometer suicídio.
A questão é: eutanásia é suicídio? A pergunta que a BBC publicou sobre o pedido de ‘Laura’ gerou muita discussão. O caso da mulher deprimida não é o primeiro do gênero na Bélgica. Então, por que publicar a notícia agora e abrir para discussão? Fiquei com a pulga atrás da orelha. Como acontece sempre que passamos a prestar atenção num assunto, começaram a ‘pipocar’ notícias sobre eutanásia. Até que recebi um folheto convocando os eleitores cristãos a escreverem para seus parlamentares exigindo que eles votem contra um projeto de legalização da eutanásia aqui na ilha. O material, produzido pela igreja católica, adverte que o atual Parlamento não tem ‘muito bom senso, já que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo’. Mesmo assim, continua o texto, ‘não é motivo para desanimar. Precisamos impedir que o suicídio seja legalizado. Só Deus pode tirar a vida’, concluía a publicação.
A proposta de eutanásia de Lorde Falconer (para pacientes
terminais com expectativa de vida de seis meses) deveria ter ido a voto antes
das eleições. Houve uma votação no Parlamento para decidir se a lei, caso aprovada, seria
chamada de morte assistida ou suicídio assistido (assistido não o que passa na tevê e sim de assistência - é bom deixar claro)**. Ficou morte
assistida e parou por aí. Como o tema era polêmico, os parlamentares empurraram
para debaixo do tapete. A previsão é de que o projeto deverá ser votado ainda este
ano. Desconfio que a BBC esteja sondando o que o eleitor pensa sobre o assunto.
Todos os dias, em média cinco pessoas recebem ajuda para
morrer na Bélgica. A eutanásia tem que ser assinada por três médicos. Quatro no
caso de pacientes com depressão crônica. Um médico vai à casa do paciente,
aplica duas injeções. Tudo muito rápido. Até o último minuto, o médico pergunta
se o paciente não quer mudar de ideia. Quem é contra a eutanásia argumenta que
se a prática for legalizada, pessoas com doenças crônicas ou mesmo idosos vão
se sentir pressionados a tomar a decisão de encurtar a vida. Como se eles não
tivessem valor, porque não são saudáveis. Quem é a favor diz que só porque é
legal, não significa que seja obrigatório e que a legalização vai sim poupar o
sofrimento de muita gente.
Eutanásia em doentes terminais, como a minha vizinha, é
mais fácil entender. Mas e no caso de alguém que esteja deprimido como ‘Laura’?
Muita gente argumentou que se ela não está mentalmente saudável, não poderia
tomar uma decisão, que literalmente é de vida ou morte. Discutiu-se também se
depressão crônica tem ou não cura.
Se ela não suporta
viver, por que não tira a própria vida ao invés de delegar ao outro a tarefa?
Este também foi um dos argumentos que li nos comentários da matéria da BBC. A
resposta de um dos leitores foi de que o suicídio geralmente é uma morte violenta
e que deixa um rastro de sofrimento muito grande para os que ficam.
De fato, este não é um assunto fácil. Envolve questões
éticas, morais, religiosas e práticas. Como evitar abusos? Como regulamentar a
eutanásia? Como começar a falar de morte?
Será que estamos prontos para conversar sobre o tabu da vez?
** No dia 11 de setembro de 2015, 330 membros do parlamento votaram contra o projeto de lei. 118 a favor. A Lei da Morte Assisitda não foi aprovada.
Coincidentemente, no mesmo dia,o estado a California aprovou a lei que não passou em Westminster. 23 votos a 14. A California se junta agora aos estados de Oregon, Washington, Montana e Vermont, onde medicos podem ajudar pacientes terminais a morrer.
Taí uma questão realmente difícil. Mas acredito que para quem realmente decide partir, melhor que seja de uma forma mais tranquila, ou seja, que tenha direito à morte assistida.
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